segunda-feira, 3 de março de 2025

Conversa de carnaval – Fernando Gabeira

O Globo

Apesar de tantas mudanças, das análises sociais da folia, da comercialização e tudo o mais, a chama ainda está acesa

Apesar de ter quase meio século, a teoria do querido Roberto DaMatta ainda é uma insuperável explicação do carnaval brasileiro. É uma análise mostrando a quebra da hierarquia social que funciona magicamente até Quarta-Feira de Cinzas.

As teses de Darwin sobre a evolução das espécies, sobre a sobrevivência dos mais aptos por meio das dificuldades diante dos obstáculos também é inquestionável. No entanto há espaço para avaliar não apenas o carnaval, como também a teoria de Darwin sob outro ângulo: o impulso para namorar, acasalar, a escolha sexual. Uma das figuras que desafiam a visão clássica de Darwin é o pavão. Com suas longas caudas radiais de azul iridescente, aqueles olhos em círculos de bronze, ele não pode ser considerado apenas sob a ótica da sobrevivência.

Sua estrutura é incômoda para buscar alimentos e absolutamente ineficaz para escapar de predadores. No entanto o pavão maravilhoso sobrevive assim pois essa é sua maneira de agradar à pavoa, de acasalar. Tanto o pavão quanto a música — ou mesmo a arte, vistos sob o prisma da pura sobrevivência material — são perda de energia. Mas os pássaros cantam nos bosques e na floresta também para seduzir suas fêmeas.

Alguns autores — como Geoffrey Miller no livro “The Mating Mind” — acham que a escolha sexual moldou a evolução da mente humana. Como se ela tivesse se formado com o mesmo software da cauda do pavão, contando piadas, compondo sonatas, usando dezenas de ornamentos sexuais para impressionar os potenciais parceiros. Do ponto de vista estritamente darwiniano, tudo isso seria inútil.

Acho que o carnaval também faz parte dessa evolução humana, a partir das escolhas sexuais. Não vou muito além das memórias de juventude. Houve um tempo que tínhamos o hábito de jogar confete. Era tática de sedução. Tanto que, apesar de ter desaparecido, sobrevive na linguagem popular como um ato destinado a agradar: jogar confete significa também elogiar.

O mais importante foi a aparição do lança-perfume. Embora tenham na História funções religiosas e de purificação, os perfumes foram capturados por uma indústria gigantesca, cujo objetivo é vender sedução. Temos substâncias químicas em nossos corpos, os feromônios, que influenciam o comportamento do outro, sobretudo na atração sexual. A indústria é tão sofisticada que inclui os feromônios sintéticos em algumas fragrâncias, precisamente com o objetivo de seduzir o parceiro.

O lança-perfume era uma extensão do nosso braço e se dirigia precisamente à sedução. O uso se perdeu um pouco, quando começaram a usá-lo como droga. Mas ainda sobrevive em sua pureza original na canção de Rita Lee: Lança, menina, lança todo esse perfume/ Desbaratina, não dá para ficar imune/ Ao teu amor que tem cheiro de coisa maluca.

A inversão de regras e hierarquias continua sendo uma realidade do carnaval. Aglomerações como blocos e desfiles de escolas de samba talvez tenham transformado um pouco esse impulso para o namoro e a sedução. Outro dia, li nos jornais, num camarote em fase de decoração no Sambódromo do Rio, para indignação dos repórteres e possivelmente dos visitantes, havia um casal fazendo amor.

O que dizer disso?Apesar de tantas mudanças, das análises sociais do carnaval, da comercialização e tudo o mais, a chama ainda está acesa.

Lua de São Jorge, Lua deslumbrante/ Azul verdejante/ Cauda de pavão. Como na canção de Caetano, a beleza do encontro da luz com a cauda de pavão estará sempre nos lembrando que a batalha é bem maior que só pela sobrevivência.

 

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