quinta-feira, 27 de março de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Fatos justificam que Bolsonaro seja considerado réu

O Globo

Apenas as reuniões em que ele tentou aliciar os chefes militares já bastariam para embasar acusações

Tendo usufruído amplo direito de defesa, Jair Bolsonaro é agora réu. Os cinco integrantes da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) foram unânimes em aceitar a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra ele e os demais acusados de tramar um golpe de Estado. O caso é histórico. Nunca antes um ex-mandatário foi acusado formalmente de tentar acabar com o Estado Democrático de Direito. Há provas graves e contundentes. A solidez delas é suficiente para que Bolsonaro seja julgado. Se condenado, a pena máxima poderá chegar a 43 anos de prisão. Desde agora até o julgamento, é preciso sobretudo haver esforço para descontaminar o processo da influência política. O mais sensato é se ater às provas.

Basta rememorar a cronologia dos fatos apurados pela Polícia Federal (PF) para entender a gravidade dos crimes atribuídos ao ex-presidente e àqueles que a PGR incluiu no “núcleo crucial” do golpe — os oito declarados réus. A acusação de que houve tentativa de ruptura democrática está documentada e se apoia, sobretudo, na sequência de reuniões entre Bolsonaro e os então chefes militares em dezembro de 2022. O objetivo das reuniões, segundo a PGR, era convencer os comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica a participar da intentona.

No dia 7 de dezembro, os então comandantes do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, da Aeronáutica, Baptista Júnior, e da Marinha, Almir Garnier, encontraram Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Foi-lhes apresentada a minuta de um documento decretando estado de sítio, alegadamente “dentro das quatro linhas [da Constituição]”, e, posteriormente, uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). A reunião foi revelada na colaboração premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, e confirmada pelos depoimentos de Freire Gomes e Baptista Júnior. Ambos afirmaram ter se recusado a aderir.

No dia 9, Cid disse a Freire Gomes, em mensagem de áudio, que Bolsonaro modificara o texto. Era, segundo ele, uma nova tentativa de aliciar os chefes militares. Na semana seguinte, eles voltaram a encontrar Bolsonaro e foram apresentados a uma nova minuta, desta vez decretando estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral. Mais uma vez, Freire Gomes e Baptista Júnior afirmaram ter se negado a apoiar o golpe. Garnier foi o único a colocar a tropa à disposição de Bolsonaro.

Pelos fatos revelados até aqui, é possível inferir que Bolsonaro tentava se proteger usando Cid como interlocutor nas frentes golpistas. Nas conversas diretas com os chefes das Forças Armadas, porém, não teve como terceirizar a tarefa e se expôs como mentor da trama. Foi o clímax de um movimento iniciado antes das eleições para garantir sua permanência no poder, que culminaria nos ataques às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023.

Cada um dos oito réus terá ao longo do julgamento a oportunidade de se defender das acusações. Nesta quarta-feira, Bolsonaro voltou a desqualificá-las, como já fizera antes. “Golpe tem povo, mas tem tropa, tem armas e tem liderança. Um ano, dois anos de investigação, não descobriram quem porventura seria esse líder”, afirmou. É uma tese frágil. Conspiração houve, não resta dúvida. Apenas os fatos reconhecidos pelos ex-chefes militares já bastariam para que Bolsonaro e os demais réus fossem julgados por crimes contra a democracia.

Nome das forças municipais de segurança é o que menos importa

O Globo

Podem ser guarda ou polícia, desde que atuem em harmonia com demais corporações e protejam o cidadão

O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que Guardas Municipais podem fazer policiamento ostensivo, desde que as prefeituras criem leis específicas para isso e que as atribuições da corporação local não se sobreponham às da polícia estadual, levou prefeitos de todo o país a uma corrida para turbinar ou criar novas guardas para atuar na segurança urbana.

No Rio, onde a Guarda Municipal não usa arma de fogo, o prefeito Eduardo Paes (PSD) anunciou a criação da Força de Segurança Municipal armada. A intenção é que atue sobretudo nas áreas de maior incidência dos crimes de rua, como roubos e furtos. Pelos planos da Prefeitura, a nova corporação terá 4.200 agentes, contratados de forma gradual. Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) trava batalha jurídica para tentar alterar o nome da Guarda Civil Metropolitana. Neste mês, a Câmara aprovou emenda à Lei Orgânica do Município ampliando as atribuições da corporação, rebatizada Polícia Municipal. Como tem acontecido noutras cidades, a Justiça não chancelou a troca de nome. Pelo entendimento dos juízes, a Constituição estabelece polícias como corporações específicas. Nunes tem dito que não desistirá da mudança.

A despeito da queda de braço entre prefeituras e Judiciário, nomenclatura é o que menos importa na atual crise de segurança pública que acossa o país. Cidadãos estão alarmados. No dia a dia, a violência se traduz em furtos e roubos de celulares, veículos ou cargas, por vezes com desfecho trágico. Chamar as guardas de polícia poderia conferir mais peso simbólico, porém o mais importante é que essas corporações, historicamente usadas na vigilância do patrimônio público ou na fiscalização de trânsito, possam também atuar no policiamento ostensivo, proporcionando maior sensação de segurança aos moradores.

O certo seria colocar menos foco no nome e mais nas atribuições. Como estabeleceu o STF, as guardas, ou seja lá que nome tenham, não devem fazer o mesmo que as polícias Militar e Civil, pois seria desperdício de recursos. É fundamental que trabalhem em estreita cooperação com as demais forças de segurança e com instituições estaduais e federais, para que possam de fato somar, e não competir. É essencial, ainda, que façam uso da inteligência e da mais moderna tecnologia, baseando seu trabalho em evidências, de modo a obter os melhores resultados. Não são as armas mais poderosas que tornam o policiamento mais eficaz.

Por executarem policiamento mais próximo do cidadão, atuando em áreas de grande circulação, os guardas precisam ser bem treinados e seguir rigorosamente os protocolos de abordagem e uso da força, em especial das armas de fogo. Deve ser obrigatório o uso de câmeras corporais para dar mais transparência às ações, tanto em benefício dos guardas quanto dos cidadãos. O reforço das Guardas Municipais no policiamento urbano tem tudo para melhorar a segurança nas cidades, desde que, ao mesmo tempo, proteja e respeite o cidadão.

Derrota unânime no Supremo complica situação de Bolsonaro

Valor Econômico

Todos os cuidados do Supremo serão necessários para que o argumento de perseguição política seja derrubado com evidências consistentes de que promoveu o maior ataque à democracia brasileira desde o fim do regime militar

Inelegível, o ex-presidente da República Jair Bolsonaro terá agora de acertar contas definitivas com a Justiça, depois de o inquérito que o acusa de compor o núcleo principal de uma tentativa de golpe de Estado para perpetuar-se no poder foi considerado sólido o suficiente para torná-lo réu. Em seu mandato, dezenas de pedidos de impeachment foram protocolados no Congresso, com base em uma série variada de crimes a ele atribuídos. O então presidente da Câmara, Arthur Lira, não deu seguimento a nenhum. Agora é diferente. Em uma peça de 272 páginas, o Procurador Geral da República, Paulo Gonet, reuniu amplo material documental que convenceu os cinco membros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) a abrirem processo judicial. Se for considerado culpado, Bolsonaro poderá ser condenado a 43 anos de prisão.

Em sessões públicas do STF, as defesas de Bolsonaro, do ex-ministro e companheiro de chapa presidencial, Walter Braga Netto, de Augusto Heleno, ex-ministro do GSI, de Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, de Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin, e de Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, fizeram o que se esperava delas. Levantaram cinco objeções questionando o foro adequado para o julgamento, a suspeição de ministros, a ausência de um juiz de garantias e, fundamentalmente, a validade da delação premiada de Cid. A argumentação básica de boa parte dos advogados foi de que a delação é uma peça de ficção e que, se houve alguma tentativa de golpe, nenhum dos considerados suspeitos no inquérito teve qualquer participação nela.

Após o julgamento que o colocou na condição de réu, Jair Bolsonaro deu longa entrevista dizendo-se inocente e respeitador da Constituição. Ironizou o decreto que circulou entre seu então ministro da Justiça Anderson Torres e ministros militares, que seria uma das provas de um golpe em gestação, dizendo que não se preparam documentos para isso. “Golpe não tem lei, não tem norma. Golpe tem conspiração”. Na véspera do julgamento, em entrevista ao Financial Times, o ex-presidente disse mais uma vez ser vítima de perseguição e pediu “ajuda externa” para deter o que chamou de marcha em direção à ditadura no Brasil. O país não teria condições de impedir esse destino por si próprio, segundo Bolsonaro.

Bolsonaro é defensor fanático da ditadura militar, que tentou emular em seus ataques às instituições democráticas quando chegou à Presidência. Após 28 anos eleito por meio de votação eletrônica, insuflou a desconfiança nelas como motivo básico para não tentar anular qualquer resultado das eleições de 2022 que não fosse o de sua vitória. Em julho de 2022, fez uma inacreditável reunião com embaixadores estrangeiros para espalhar notícias falsas sobre um sistema de votação, elogiado internacionalmente. Esse foi um dos crimes pelos quais o Tribunal Superior Eleitoral o tornou inelegível até 2030.

Ao perder as eleições, segundo a peça da PGR, Bolsonaro e mais 33 pessoas aceleraram preparativos para impedir a posse de Lula. Houve uma minuta de golpe, consulta aos ministros militares, planos que envolveriam o assassinato do presidente e seu vice, Geraldo Alckmin, além do “arquirrival” do STF, Alexandre de Moraes, concentração de manifestantes nas portas dos quartéis e várias outras providências, cujos rastros foram capturados nos celulares de Mauro Cid e nos diálogos também eletrônicos entre os participantes da trama. O golpe não foi adiante porque os ministros do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Junior, se recusaram a aderir.

A PGR tem vasto material sobre os preâmbulos de um golpe abortado, que poderão ser suficientes, em tese, para condenar o núcleo formado por Bolsonaro e ministros militares próximos. As evidências da ligação entre esse núcleo e as manifestações de 8 de janeiro, já com Bolsonaro fora do país, não são tão claras. Teria havido a derradeira tentativa de semear o caos para forçar uma intervenção das Forças Armadas que tornasse o governo de Lula refém do comando militar, por meio de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem, que Lula não assinou. Na invasão da Praça dos Três Poderes, o esquema de prevenção foi desmobilizado, abrindo o caminho para a destruição de patrimônio público.

A maior esperança para escapar da condenação que os réus têm é a de anular a delação de Mauro Cid, testemunha presencial de boa parte da trama. Os ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia fizeram reparos a ela, mas consideraram que a denúncia da PGR tem elementos sólidos para indiciar Bolsonaro e membros de seu governo. Abre-se agora período de consideração das provas, produção de novas evidências e amplo espaço para que as defesas dos réus possam exercer seu direito. Todos os cuidados do Supremo serão necessários para que o argumento de perseguição política, no qual se escuda Bolsonaro, líder de direita com amplo apoio em camadas da população, caia por terra diante de evidências consistentes de que ele orquestrou o mais grave ataque à democracia brasileira desde o fim do regime militar.

Supremo dá início a um processo histórico

Folha de S. Paulo

Corte torna réus por golpismo Bolsonaro e militares de alta patente; divergências de Fux sugerem debate sobre dosimetria

Pela esperada unanimidade dos cinco membros da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), Jair Bolsonaro (PL) e mais sete pessoas, incluindo quatro oficiais-generais das Forças Armadas, tornaram-se réus por tentativa de golpe de Estado e outros crimes associados.

É a primeira vez na história do país que civis e militares acusados de comandar uma ofensiva golpista —felizmente fracassada— serão responsabilizados por seus atos. É avanço institucional importantíssimo, especialmente quando se considera que a própria República brasileira foi fundada por um golpe de Estado.

No que diz respeito à denúncia oferecida pelo procurador-geral da República, não cabe dúvida de que ela deveria ser recebida. Denúncias, cumpre recordar, não se confundem com o julgamento propriamente dito. Para que sejam recepcionadas, basta que existam indícios suficientes de materialidade e de autoria dos crimes. Isso há de sobra.

É a partir de agora que os réus e seus advogados terão oportunidade de examinar minuciosamente as provas já reunidas, produzir outras, contestar as acusações e apresentar a sua versão dos fatos, em consonância com o princípio do devido processo legal, assegurado nas democracias.

Na verdade, tanto o procurador-geral como os defensores foram mais caudalosos do que seria necessário nessa fase do processo, o que se mostra compreensível. Dada a importância jurídica e política do julgamento, as partes aproveitam todas as ocasiões que têm para testar suas teses e recalibrar estratégias.

Pelo que os ministros já sinalizaram na discussão de preliminares e em seus votos, é altamente improvável que rejeitem todas ou a maioria das acusações feitas.

Se a infantaria celerada do 8 de janeiro amargou penas de até 17 anos —um exagero que parece evidente— em julgamentos tanto pelo plenário do Supremo como pela turma, é apenas lógico que os cabeças da intentona recebam sanções ainda maiores.

Nesse contexto, é positivo que o ministro Luiz Fux já tenha aberto divergências em relação a posicionamentos do relator, Alexandre de Moraes, incluindo uma defesa da revisão da dosimetria de já condenados pela invasão das sedes dos Poderes em 2023.

Independentemente do mérito dessas divergências, a atitude de Fux —que foi de algum modo referendada por outros ministros, que disseram haver muito a discutir na fase de instrução— sugere que existe real disposição da corte para avaliar a situação de cada réu e julgá-lo de acordo com as provas, como precisa ser.

O fundamental é que as instituições brasileiras resistiram a uma ofensiva golpista, que não obteve a adesão necessária da cúpula das Forças Armadas, e estão respondendo à altura, levando os responsáveis ao banco dos réus.

Não é pouco. Os Estados Unidos, uma democracia muito mais madura, não conseguiram fazer o mesmo após enfrentarem percalços semelhantes.

Putin leva vantagem em debate sobre trégua na Ucrânia

Folha de S. Paulo

Americano não consegue controlar processo sem que o principal favorecido seja o Kremlin; russo quer o fim das sanções

A retomada de conversas para encerrar a Guerra da Ucrânia é motivo de celebração contida. Negociar a paz em um conflito sem vencedor claro é sempre mais difícil, já que os lados envolvidos tendem a jogar com seu rol de concessões.

Foi assim quando os Estados Unidos decidiram deixar o atoleiro da Guerra do Vietnã. A primeira reunião entre americanos e norte-vietnamitas em Paris ocorreu em maio de 1968, mas a paz só seria impressa em tinta na capital francesa quase cinco anos depois, em janeiro de 1973.

A campanha de Donald Trump para cessar a carnificina iniciada por Vladimir Putin em 2022, por válida que seja, reflete sua impaciência num cenário de imediatismo inconsequente —tudo o que ele quer é poder dizer que acabou com a guerra. E também espelha uma visão de mundo em que a força bruta é o maior ativo.

Ponto para o autocrata russo, portanto. Com efeito, o americano iniciou sua jornada pacificadora com alteração da política do país que de fato prolongava a guerra de forma indefinida. Para tanto, endossou a versão de Moscou para a origem do conflito e aceitou os termos colocados por Putin para a paz.

Trump forçou o presidente ucranianoVolodimir Zelenski, a negociar e sabe que Putin pode não ter dobrado o vizinho, mas tem vantagem em campo. O republicano busca uma posição de controle do processo que, ao fim, não exerce sem que o principal favorecido seja o Kremlin.

O vaivém nos anúncios de algum tipo de trégua no combate decorre disso. Primeiro, Trump disse que haveria uma pausa completa por 30 dias, aceita pela Ucrânia e rejeitada pela Rússia. Depois, fatiou a proposta, focando na suspensão pelo mesmo período de ataques mútuos à infraestrutura energética.

Faltou o averbado, e os drones seguiram voando de lado a lado. Ante essa realidade, direcionou equipes de negociadores aos dois antagonistas. Enfim, obteve documentos que visam parar tais ataques e logrou trégua nas atividades ofensivas no mar Negro.

O Kremlin afirma que só vai aderir ao cessar-fogo marítimo se suas exportações de fertilizantes forem liberadas por lá —o que depende do fim das sanções ao banco de fomento agrícola russo. Vale lembrar que o mar Negro hoje é local secundário, do ponto de vista militar, na guerra.

Assim, Putin oferece migalhas por um prêmio maior: a volta paulatina da Rússia ao sistema de comércio internacional. Faz isso manipulando Trump, que sinalizou aprovar a manobra só para poder exibir vitória pontual.

Bolsonaro ‘et caterva’ no banco dos réus

O Estado de S. Paulo

Sem surpresa, STF acolheu a denúncia contra os acusados de tramar um golpe de Estado. A Corte não pode errar nesse processo, pois a impunidade dos golpistas será nefasta para o País

Por unanimidade, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) tornou réus o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete civis e militares que a ele teriam se associado para cometer, entre outros crimes gravíssimos, uma tentativa de golpe de Estado. A partir de agora, o País terá a chance de assistir à prestação de contas à Justiça daqueles que são acusados de ter cometido o mais desabrido ataque ao Estado de Direito no Brasil desde ao menos 1985, quando a sociedade brasileira, enfim, reconquistou suas liberdades democráticas após 21 anos sob o tacão de uma feroz ditadura militar – a mesma que Bolsonaro louva como se tivesse sido um período áureo da história nacional.

A admissibilidade da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Bolsonaro et caterva era dada como certa. De tão previsível, o desfecho do julgamento de ontem já vem influenciando as articulações políticas com vistas à eleição de 2026 desde muito antes de o parquet apresentar sua peça acusatória ao STF. E a razão é simples: Bolsonaro jamais escondeu que o respeito aos princípios democráticos lhe provoca urticária. Bolsonaro nunca cogitou transferir o poder pacificamente ao sucessor, chegando a verbalizar, em agosto de 2021, que só via três opções de futuro para si: estar preso, morto ou reeleito presidente da República. Desde ontem, a distância entre ele e o cárcere ficou consideravelmente mais curta.

É um erro, portanto, confundir um resultado amplamente esperado com uma suposta demonstração de “parcialidade” dos julgadores de Bolsonaro e seus corréus – os generais de quatro estrelas Augusto Heleno, Walter Braga Netto e Paulo Sérgio Nogueira, o almirante Almir Garnier, o tenente-coronel Mauro Cesar Cid, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres e o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ). Na verdade, a certeza de que o ex-presidente passaria à condição de réu diz muito mais sobre a audácia de seus propósitos liberticidas. Relembra à Nação quão desabridos foram seus esforços, ao longo de todo o mandato presidencial, para se manter no poder fosse qual fosse o resultado das urnas.

Se o comportamento de cada um dos oito réus que compõem o “núcleo crucial da organização criminosa”, no dizer da PGR, de fato, contribuiu para a consecução da tentativa de golpe e, assim, estarão configuradas ações ou omissões tipificadas como crime, saberemos ao final da ação penal. O que é possível afirmar, como este jornal já fez não poucas vezes, é que o governo de Jair Bolsonaro foi inspirado do início ao fim por um espírito golpista. A depredação dos pilares democráticos foi um diligente labor entre 2019 e 2022. A bem do País fracassou, mas isso não impede, muito ao contrário, que todos os que eventualmente tenham tomado parte nesse assalto à democracia paguem exemplarmente por seus crimes.

Eis, portanto, a enorme responsabilidade que paira sobre o STF, em particular sobre os ministros integrantes da Primeira Turma. O julgamento dos acusados de atentar com violência contra a ordem constitucional democrática deve ser imaculado do ponto de vista processual. O STF não tem o direito de errar, em primeiro lugar por compromisso inabalável com a “Constituição Cidadã”. Ademais, não pode frustrar as expectativas da esmagadora parcela da sociedade brasileira que acalenta o regime democrático como a melhor forma de governança de uma nação. Como ensina o amargo rescaldo da Operação Lava Jato, a consequência do atropelo do devido processo legal em nome do propósito de colocar os golpistas atrás das grades não só abastardará a mesma democracia que se pretende defender, como ainda levará à impunidade que, mais adiante, pode assanhar protoditadores que se aventurem a governar o Brasil.

Tudo é inédito neste julgamento, que apenas começou. Há militares de alta patente no banco dos réus por sedição. Trata-se da primeira ação penal de grande repercussão sob a égide da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. No entanto, o STF há de ser previsível; à Corte não é dado nem sequer parecer um tribunal de exceção. Ao fim de um julgamento que decerto capturará as atenções do País, só pode restar aos eventuais condenados o sagrado direito de espernear.

Não adianta quebrar o termômetro

O Estado de S. Paulo

Ao sugerir que o BC exclua alimentos e energia do cálculo da inflação para reduzir os juros, Alckmin expõe a incompreensão do governo Lula sobre um fenômeno que corrói sua popularidade

O vice-presidente Geraldo Alckmin julga ter encontrado uma solução mágica para reduzir as altas taxas de juros brasileiras. Para ele, em vez de tomar decisões com base na inflação cheia, o Banco Central (BC) deveria excluir itens mais voláteis como alimentos e energia elétrica para tomar suas decisões sobre a política monetária. “Entendo sim que é uma medida que deve ser estudada pelo Banco Central brasileiro”, afirmou, ao participar de um evento realizado pelo jornal Valor.

Juros elevados, na avaliação de Alckmin, só aumentam a dívida e prejudicam a economia sem resolver a origem dos problemas. “Não adianta aumentar os juros que não vai chover”, disse, ao discorrer sobre o impacto do clima na produção agrícola. “Não adianta aumentar os juros que não vai baixar o preço do barril de petróleo. É guerra, é geopolítica”, acrescentou.

Por mais pueris que pareçam, declarações como a do vice-presidente não devem ser menosprezadas. Ao falar sobre a inflação de forma tão irrefletida, Alckmin não revela somente seu próprio desconhecimento, mas a incompreensão de boa parte do governo sobre um fenômeno que tem corroído a popularidade do presidente Lula da Silva.

Uma Selic elevada não faz chover nem impede conflitos internacionais, mas contém o ímpeto dos consumidores por adquirir outros produtos e serviços cujos preços sobem tanto ou mais que os alimentos e o barril de petróleo. Reduzir a demanda é, portanto, um meio para moderar o aumento dos preços de maneira geral.

Aumentar os juros seria uma estratégia ineficaz se o problema da inflação estivesse de fato restrito ao comportamento de poucos itens, como alimentos e energia elétrica. Mas não é isso que o índice mostra. Em 12 meses, a inflação registrou alta de 5,06%, ou seja, superou a meta de 3% e seu teto de 4,50%. Não se pode atribuir esse resultado unicamente às tarifas de energia, que subiram significativamente no mês passado depois da redução pontual registrada em janeiro, quando houve um desconto nas contas de luz em razão do bônus de Itaipu.

Afinal, em fevereiro, oito dos nove grupos que compõem o IPCA tiveram alta de preços, bem como 61% de todos os itens pesquisados. E, ainda que se leve em conta apenas os alimentos, o índice de difusão mostrou que 55% dos produtos alimentícios subiram no mês passado. Não é algo que esteja limitado a café e ovo, como o governo tenta fazer parecer.

Não ficou muito claro, mas supõe-se que Alckmin tenha se referido à possibilidade de que o Banco Central passe a considerar também os núcleos da inflação, que excluem choques temporários, e não somente o índice cheio, que leva em conta uma cesta de consumo mais ampla de produtos e serviços. Mas o BC já faz isso, e os núcleos tampouco mostram nada muito diferente. De acordo com o Broadcast, a média de cinco núcleos acompanhados pela instituição atingiu 4,64% nos 12 meses encerrados em fevereiro, também acima da meta, portanto.

O IPCA representa a variação de preços de uma cesta de produtos e serviços que reflete o consumo de 90% das famílias brasileiras em áreas urbanas. A percepção que cada um tem sobre a inflação pode ser maior ou menor, mas isso não invalida a apuração do IBGE. Isso porque a relevância de um índice confiável de inflação está no fato de que ele espelha o valor da moeda brasileira ao longo do tempo.

Não é difícil compreender esse conceito na prática. Basta ir a um supermercado para perceber que o dinheiro não compra mais aquilo que comprava no passado. É improvável encontrar alguém disposto a relativizar essa questão, a não ser que essa pessoa frequente a Esplanada dos Ministérios.

Passados mais de 30 anos do único plano econômico que debelou a hiperinflação, o Real, é inacreditável que integrantes do governo Lula ainda tenham tanta dificuldade para entender a dinâmica da evolução dos preços na economia. A recusa em compreender o fenômeno a fundo mais parece negação do que ignorância.

Há meses o governo Lula da Silva anda em círculos tentando eleger vilões e encontrar culpados pelo avanço dos preços. Usar de subterfúgios para reduzir a importância da inflação cheia é o mesmo que combater uma febre alta sem administrar antitérmicos. O paciente continuará a sentir calafrios, ainda que o médico quebre o termômetro para convencê-lo de que está tudo bem.

Para seguir adiante

O Estado de S. Paulo

Embora tardia, é bem-vinda a medida que reconhece Vladimir Herzog como anistiado político

Quase 50 anos depois de sua morte, o jornalista Vladimir Herzog foi oficialmente declarado anistiado político. Com a medida se avança mais um degrau numa escada civilizatória no Brasil: o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de sua responsabilidade pela violação de direitos humanos cometida por seus agentes durante a ditadura militar (1964-1985). Também se oficializou uma indenização vitalícia para a viúva, Clarice Herzog, atendendo a uma determinação da Justiça Federal. Em abril do ano passado, a Comissão de Anistia, órgão responsável por políticas de reparação e memória para as vítimas do período, já havia reconhecido que Clarice também foi perseguida em razão de sua luta após a morte do marido.

Trata-se de uma declaração bem-vinda e significativa, não obstante tenha levado tempo demais para ser oficializada. Famílias como a de Herzog, a do ex-deputado federal Rubens Paiva e muitas outras que tiveram parentes desaparecidos e mortos por ação direta e criminosa do Estado brasileiro de então passaram e ainda passam por longo calvário em busca de reconhecimento, reparação e justiça. Em tempos de elogio à truculência na política, elas são símbolos e testemunhas do que acontece quando liberdades básicas são sacrificadas pelo autoritarismo.

Era 25 de outubro de 1975 – ano em que o então presidente Ernesto Geisel iniciou a abertura “lenta, gradual e segura” – quando Vladimir Herzog teve a morte anunciada. Sob acusação de pertencer ao Partido Comunista, o então diretor de Jornalismo da TV Cultura foi detido, torturado e assassinado. Atestada por um inquérito fajuto que durou apenas cinco meses, sua morte foi encenada para parecer um suicídio, em farsa tão evidente que o cemitério israelita nem sequer considerou a hipótese de enterrar o corpo na área reservada aos suicidas, como determina a religião judaica.

Enquanto parte do Brasil enfrentava o medo e se mobilizava pela volta à democracia, a linha-dura militar sabotava os planos de abertura. A farsa do suicídio de Vladimir Herzog era parte daquela sabotagem, com repressão, tortura e assassinatos nos chamados “porões da ditadura”, além de atentados que durariam anos. “Interessa-nos saber a responsabilidade por esse clima de terrorismo: pois é de terrorismo que se trata”, dizia um editorial do Estadão dias depois da morte do jornalista.

Desde então o País ainda deve o reconhecimento e a reparação por atrocidades cometidas naqueles anos, apesar da desconfiança notória de quem ainda busca celebrar o “movimento revolucionário” de 1964 como símbolo da vontade geral do povo e da liberdade contra o radicalismo. É uma lacuna que só atrapalha a esperança de que possamos seguir adiante – sem traumas, medos nem dívidas do passado.

O reconhecimento aos Herzogs se presta a isto: seguir adiante. Como este jornal já sublinhou outras vezes, anistiar não significa esquecer. Mais: reconhecer e reparar não significam revanche, tampouco significam negar a Lei da Anistia, de 1979. Essa distinção é fundamental e garante a exata compreensão da responsabilidade do Estado pela morte presumida de cidadãos que estavam sob sua custódia porque ousaram se contrapor a um regime de exceção.

Em defesa da vida, vacinar é preciso

Correio Braziliense

Há menos de um mês no cargo, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, reconheceu, no discurso de posse, que elevar a adesão dos brasileiros à vacinação tem sido um desafio no país, enfrentado com bons resultados pela sua antecessora, a sanitarista e socióloga Nísia Trindade

Entre abril e outubro, quando há oscilação acentuada da temperatura — ora chove muito, ora ocorre intenso calor —, aumentam os casos de gripe na população. Idosos e crianças no primeiro ano de vida são os mais suscetíveis ao ataque dos vírus, assim como gestantes e profissionais que têm muito contato com públicos diversos, como os professores. Por isso, formam o grupo prioritário nas campanhas anuais contra a influenza. 

Neste ano, a campanha em âmbito nacional será iniciada no próximo dia 7, mas o Distrito Federal antecipou a iniciativa e imuniza a população contra a influenza A (H1N1 e H3N2) e B, os vírus que mais afetam os brasileiros, desde terça-feira. O primeiro lote de 80 mil doses deve ser aplicado em 1,2 milhão de indivíduos. E a expectativa é de que, em 2025, a capital federal atinja a meta estipulada pelo governo federal: vacinar ao menos 90% dos mais vulneráveis.

Há menos de um mês no cargo, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, reconheceu, no discurso de posse, que elevar a adesão dos brasileiros à vacinação tem sido um desafio no país, enfrentado com bons resultados pela sua antecessora, a sanitarista e socióloga Nísia Trindade. Padilha, que é médico de formação e ocupou a mesma pasta no governo Dilma,  prometeu "impulsionar um movimento nacional pela vacinação e defesa da vida que consolidará o Brasil como o mais amplo e diverso programa público de vacinação do mundo".

O engajamento da sociedade nas campanhas de vacinação é, sem dúvidas, indispensável à saúde coletiva. Mas os quase dois anos e meio de gestão de Nísia Trindade, mesmo com avanços reconhecidos nas taxas de imunização, evidenciam a necessidade da adoção de novas estratégias para se chegar a um cenário de tranquilidade sanitária. No ano passado, por exemplo, a cobertura vacinal contra a influenza chegou a 55%. Em 2023, a 60%.

Ter dúvidas quanto à importância de vacinas, principalmente depois da pandemia da covid-19, é retrocesso. No início de 2020, o  mundo se viu diante da maior tragédia sanitária dos últimos 100 anos. Quase 20 milhões de pessoas não resistiram ao Sars-Cov-2, calcula a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 700 mil no Brasil, e a onda letal provocada pelo coronavírus só começou a arrefecer com o surgimento dos imunizantes. Cientistas e médicos uniram-se e, em tempo recorde — menos de um ano —, conseguiram produzir fórmulas capazes de interromper a escalada de mortes.

 Mesmo diante de um cenário macabro, negacionistas fizeram  campanhas contra as vacinas e as orientações dos especialistas. Não pararam mesmo quando, por conta do aumento de vacinados, pode-se declarar o fim da crise sanitária global. Cinco anos depois do surgimento da covid-19, o vírus das fake news segue contaminando a sociedade e ceifando vidas.

 Imunizantes são grandes saltos da ciência e da medicina para a vida das pessoas, desde a infância à velhice. O Brasil, reconhecido internacionalmente pela forma como usufrui desses imunizantes, por meio de um sistema complexo e eficaz de imunização de sua população, não pode perder esse status. A atual campanha da gripe pode ser um momento de volta ao passado, não para impor um retrocesso, mas para recuperar uma prática exemplar de proteger vidas e que é exemplo para muitas nações.

 

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