Renata Galf / Folha de S. Paulo
Com papel no impeachment
de Dilma e na origem da lei pela qual ex-presidente é acusado, jurista defende
processo no STF, mas avalia que condenação poderia ser por menos crimes
Advogado e professor aposentado de direito penal da USP (Universidade de São Paulo), ele vê como positivo que o Brasil tenha revogado a Lei de Segurança Nacional e aprovado a que tipifica os crimes contra o Estado democrático de Direito em 2021 —apesar das críticas ao que classifica como açodamento na tramitação da proposta, com a qual contribuiu ativamente, junto a outros juristas.
Para Reale Júnior, 81, que foi ainda um dos autores do pedido que desembocou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e chegou a protocolar também um pedido contra Bolsonaro após a CPI da Covid, o julgamento que começa nesta semana é um momento de cura e reafirmação da democracia e de seus valores, frente às ações que desaguaram no 8 de Janeiro.
Crítico do lobby da família
Bolsonaro por sanções junto a Donald Trump,
ele diz ainda que a anistia seria
uma "traição à democracia", sob argumento de que nenhuma das
hipóteses que, na sua visão, permitiriam a medida estariam presentes.
Ele entende, por outro lado, que caberia a condenação dos réus da trama golpista e do 8 de Janeiro apenas pelo crime de tentativa de golpe de Estado, pois ele já absorveria, a seu ver, o crime de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito. A posição também é defendida pelo ministro Luís Roberto Barroso nas ações do 8 de Janeiro, mas não alcançou mais adeptos na corte.
O STF vai começar a julgar um ex-presidente e militares acusados de tentativa de golpe. Como o sr. define esse momento do ponto de vista político e jurídico?
É um momento muito importante de reafirmação da democracia brasileira. Nós
estamos num período de consolidação da democracia.
Foi um choque ao país
essas medidas que desaguaram no 8 de Janeiro. É uma ferida que ficou na democracia
brasileira, e ela precisa ser curada. A cura se faz por via do processo
criminal, em que os responsáveis sejam julgados com pleno direito de defesa,
com contraditório, como está sendo.
O direito penal tem
uma função primordial, que é a de reafirmar, através da sua aplicação, valores
importantes que a lei protege e que foram feridos.
O sr. fala em cura. Uma parte da população não concorda com essas eventuais punições. Isso pode ser um desafio?
Na verdade, é uma minoria.
Quando se mistura
política com paixão, e com religião também, cria-se uma ebulição que leva a
posições radicais, não pensadas, não meditadas. Mas eu acredito que isso não
interrompe de jeito nenhum o processo, nem terá possibilidade de avanço para
uma eventual anistia. Acho que a anistia não corresponde de forma nenhuma ao
sentimento brasileiro. A anistia seria uma traição à democracia.
Por quê?
A anistia tem razões que possam justificá-la. Uma delas é no sentido de que a
forma como o fato foi praticado, ele não mais atinge a consciência cívica, o
sentimento valioso que teria sido ofendido.
Também pode ter
cabimento como processo de transição, ou seja, passagem de um governo
autoritário para um governo de Estado de Direito –como aconteceu em 1979, ainda
que com todas as falhas desse projeto.
Em
2021, ao aprovar os crimes contra o Estado democrático de Direito, o Congresso
adotou um projeto apresentado pelo sr. em 2002 como base. Agora com a lei em
uso, qual balanço o sr. faz?
Esse projeto foi apresentado em 2002, realizado por uma comissão presidida pelo
Cernicchiaro [ex-ministro do STJ], com a participação do Barroso. Tinha várias
virtudes, [mas] precisava ser modificado, pensado. Eu fui surpreendido com o
aparecimento de um interesse do [Arthur] Lira por
votar esse projeto e com a votação de urgência.
Houve uma sorte de
não estarmos com a Lei de Segurança
Nacional para apurar o golpe de Estado de Bolsonaro. Senão nós
teríamos sempre essa pecha. Porque o valor que estava sendo protegido ali não é
a democracia, não é o Estado de Direito. Era a ideologia da Segurança Nacional,
que prevaleceu durante o regime militar.
Evidentemente,
existem vários problemas nessa lei [de 2021]. Mas dois tipos fundamentais, que
são a abolição do Estado democrático de Direito e golpe de Estado, se amoldam,
são suficientes para a proteção da democracia. Ou seja, a democracia tem que
ser uma democracia militante, que defende a si mesma, que não é ingênua de
imaginar que deve dar liberdade para que a liberdade seja destruída.
Qual balanço o sr. faz desses dois crimes, que estão sendo usados no julgamento?
Eles são crimes de empreendimento, em que não precisa haver efeitos, resultados
materiais, basta o processo de tentar para que o crime se dê por consumado. É o
chamado crime de atentado.
E eu tenho uma
posição igual à do Barroso [nas ações do 8 de Janeiro]. Não vejo dois crimes
que se somam. Vejo o crime de golpe de Estado absorvendo o crime de impedimento
do exercício de poderes. Ou seja, o impedimento do exercício de poderes era um
meio por via do qual se dava o golpe de Estado.
A defesa de Bolsonaro alega que em muitos dos fatos que a PGR traz na denúncia não há elementos que liguem diretamente ao ex-presidente. Como o sr. vê esse argumento?
É um argumento lógico da defesa. Aliás, a defesa é muito bem insinuada. Mas eu
acredito que, no processo, existem elementos que podem contestar essa posição.
Quanto
às conversas com os comandantes, a
defesa alega, em linhas gerais, que seriam atos não puníveis e sem ameaça ou
violência. O sr. avalia que essas conversas configurariam crime?
Sim. É uma grave ameaça você, como presidente da República, na sua condição de
chefe das Forças Armadas, apresentar uma proposta de intervenção militar no TSE
ou querer o estado de sítio, que não tinha cabimento nenhum, que exige uma
situação que não estava presente de forma nenhuma. Isso é um subterfúgio. Já
atinge o bem jurídico democrático.
Há críticas de que o ministro Alexandre de Moraes teria participado de uma forma muito proativa ao longo da investigação e que isso teria impacto na imparcialidade. O sr. concorda?
A turma já decidiu
diversas vezes pela competência do Alexandre de Moraes para a
condução do processo. Eu creio que é o estilo dele um pouco Ministério Público,
de onde ele é oriundo, mas não há incompetência dele ou impedimento. Porque
senão todos estariam impedidos. O que foi ferido e lesado ali não foi um
ministro, foi o STF.
E
o sr. tem alguma crítica?
O problema da consunção [absorção], porque eu creio que é um crime só. E acho
que as penas são muito elevadas também. Poderia haver uma redução da quantidade
de pena [aos condenados do 8 de Janeiro] talvez por uma revisão criminal.
Eu talvez teria dado
mais tempo para a apreciação das provas. Não que isso crie nulidade, mas acho
que o tamanho do processo e o conjunto tão elevado de elementos probatórios
exigiria que se concedesse mais tempo, tanto para o Ministério Público quanto
para a defesa.
O
sr. concorda com os que sustentam que o julgamento do ex-presidente deveria ser
no plenário?
Não, porque isso está no regimento interno. Faz tempo já que foi decidido que
os processos criminais são julgados pelas turmas. Isso não é uma decisão que
foi tomada para esse processo.
Há
quem argumente que, pela previsão de que o presidente é julgado pelo plenário,
isso também deveria se aplicar ao ex-presidente.
Não vejo nenhuma analogia que se estabeleça.
Quanto
ao questionamento das urnas por Bolsonaro, há quem faça referência ao episódio
com Aécio Neves, em 2014. Como o
sr. vê hoje o pedido de auditoria das urnas feito
na ocasião?
Eu acho que ali era um engano do Aécio, efetivamente um engano. Mas não foi ali
que se estabeleceu uma política de descrédito do processo. Houve uma arguição,
mas não houve uma política de desfazimento da validade, da legitimidade do
processo eleitoral.
E
o sr. vê como um engano por quê?
Porque eu acho que ali não tinha elementos suficientes, tanto que foi rejeitada essa arguição.
E também não teve
essa repercussão efetiva, não teve movimento popular, não foi assolada a
população, os seus correligionários contra o TSE, contra o processo eleitoral.
É diferente. Não foi uma exploração de descrédito da instituição.
Pode
ter plantado uma semente?
Não precisa, né? Essa semente estava correndo o mundo.
Em 2022 o sr.
declarou voto no Lula ainda antes do 1º turno. Qual o
balanço que o sr. faz do governo?
É triste o balanço na medida em que não houve a possibilidade de efetivamente
um governo de união e uma ideia de governo, quer dizer um plano de execução do
governo. E ficou perdido em algumas guerras desnecessárias, como a guerra
contra o Banco Central, inimigo do Roberto Campos [Neto], ou seja, pequenas
guerras que só prejudicaram o país.
O
sr. foi filiado ao PSDB por mais de 25 anos. Como que o sr. vê a trajetória do
partido, que esse ano perdeu seu último governador?
O PSDB foi um partido que nasceu de cima para baixo. Ele nasce na Constituinte
com grandes líderes. Eles foram morrendo ou envelhecendo e não houve
substituição. E não se criou uma base. Foi um partido constituído dentro da
Constituinte para se opor ao Quércia e ao presidencialismo.
Em
2022, quando o sr. declarou apoio ao Lula,
a então presidente do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que ‘várias pessoas’ que
participaram do impeachment [de Dilma]
avaliavam ‘que aquilo foi um erro’. O sr. concorda?
Ela não entendeu nada. Não tinha nada a ver com arrependimento, com
impeachment. Eu estava dizendo que votava no Lula porque tínhamos que nos unir
contra o malefício do Bolsonaro.
Era um processo de
salvação do país do desastre que era Bolsonaro. E o risco que era um segundo
turno. Infelizmente, o segundo turno veio e foi um sufoco.
O
sr. faz alguma ressalva ou vê com outros olhos como foi o processo do
impeachment?
Não. As pedaladas levaram o país à maior recessão da sua história. Se não
tivesse havido o impeachment, mas a continuidade de Dilma, o país tinha
afundado.
O
sr. avalia que, da forma como foi feito, esse processo teve influência no que
aconteceu nos anos seguintes?
Não, eu acho que nós estamos esquecendo que existiu um governo Temer, que estava fazendo algumas medidas benéficas, mas que se complicou no processo de corrupção. E aí deu, sem dúvida nenhuma, azo à antipolítica que já vinha desde 2013.
*Advogado e professor
titular aposentado de direito penal da USP. Foi ministro da Justiça no governo
FHC, em 2002, e presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, de
1995 a 2001. Também foi secretário de segurança pública de São Paulo em 1983 no
governo de Franco Montoro. Foi um dos autores do pedido que levou ao
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e assessor especial
presidência da Assembleia Constituinte.
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