segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O centenário de um discurso histórico


Paulo Brossard
DEU NO ZERO HORA (RS)

Sábado próximo registrará o aniversário da Revolução Farroupilha, mas evoca também o centenário de um discurso memorável, proferido por Assis Brasil em Santa Maria, onde se pretendia organizar o Partido Republicano Democrático. Ninguém ignora os atributos intelectuais do orador de 20 de setembro de 1908, de modo que não surpreende o quilate da oração proferida por quem se achava em plena maturidade e, além do mais, portador de variada experiência nada desprezível. Foi publicado sob o título Ditadura, Parlamentarismo, Democracia, seguido de uma versão em língua alemã e reeditado em 1927. O Senado, entre outras obras doutrinárias do estadista, inseriu o discurso de Santa Maria. Passado um século, ele não perdeu o merecimento, quando nesse entretempo tudo mudou e o Brasil conheceu dias de progresso inegável e de amarguras deploráveis.

A esse tempo, Assis Brasil, que se retirara das pugnas internas, acumulara valiosa experiência diplomática na Argentina, em Portugal e nos Estados Unidos. Nesse país enfrentou situação difícil com a entrega pela Bolívia a um sindicato anglo-americano de rico pedaço de seu território, segundo modelo praticado em África. Tanto assim, que Rio Branco, ao assumir o Ministério do Exterior, no governo de Rodrigues Alves, chamou o nosso representante em Washington para atuar no que viria a ser o Tratado de Petrópolis, que pôs termo ao caso do Acre. Sem favor, foi relevante o papel desempenhado pelo gabrielense no mundo diplomático, como também pelo gabrielense Plácido de Castro no campo da luta, tanto mais importante quando o Itamaraty defendera ponto de vista oposto.

A uma análise dos fatos ocorridos desde a adoção da República, vigorosa na crítica, mas cortês na forma, seguiu-se a glosa às teses programáticas inseridas no programa exposto, bem diferente do estilo oratório do tempo. A linguagem é simples, objetiva e cristalina, sem falar na invejável vernaculidade. Aqui e ali o epigrama espirituoso, para não dizer a graça que nunca faz mal à seriedade dos temas e à gravidade dos problemas. A meu juízo, é uma das grandes orações políticas em língua portuguesa. Nela não faltam conceitos lapidares e de viva atualidade. “Quem tem honra não precisa de honras”, diz a certa altura. São abundantes as comparações com outros países. Referindo-se ao nosso, aponta este dado, que não deixou de existir cem anos depois:

“Temos no Brasil uma população de muitos milhões de almas que não produzem nem consomem, que são, portanto, nihil na economia nacional. É a matéria inorgânica, o plasma primitivo que espera o sopro criador de uma administração bem orientada para vir tomar a seu lugar na torrente da vida e da atividade”.

Para dar um exemplo da limpidez da forma e da elegância do pensamento, ouso reproduzir o fecho do discurso centenário:

“Aconteça o que acontecer, sejam quais forem os meandros que tenha de descrever a fonte límpida que hoje começa a manar dos flancos da Serra Geral, este dorso inflexível do indômito Rio Grande, a que se reclina a gentil Santa Maria –, o tênue fio de linfa cristalina há de tornar-se caudal inexaurível onde o povo irá matar a sede da liberdade que o tortura. A democracia há de prevalecer. Não vos impressione o vigor aparente dos elementos que se lhe contrapõem.

Nenhum partido, nenhuma situação, pode jamais perpetuar-se fora da sua oportunidade. O que aí está há de cair também, ou modificar-se no bom sentido. A vida política obedece à mesma rotação, ao mesmo turbilhão eterno que domina todo universo. Como nas florestas, os velhos troncos, que já foram incomovíveis colunas de naves colossais de verdura, se abatem e restituem à terra e ao céu a substância de que se formaram e se nutriram, assim as combinações humanas cumprem o seu destino, percorrem o seu ciclo de crescimento, atividade, declínio e morte, morte que não é morte, porque os restos desagregados do que tomba vão fecundar o terreno donde a vida renasce”.

*Jurista, ministro aposentado do STF

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