DEU NO VALOR ECONÔMICO
No belíssimo livro publicado ano passado em tradução brasileira sob o título de "A Grande História da Evolução", Richard Dawkins, lidando lá pelas tantas com a contraposição, no processo evolucionário, entre movimentos de prazo comparativamente curto e tendências de mais longo prazo, recorre à imagem de uma rolha flutuando pela costa atlântica dos Estados Unidos. A ideia destacada é a de que, num minuto qualquer, haverá oscilações no movimento da rolha produzidas pelo jogo das ondas e contracorrentes, mas a Corrente do Golfo impõe uma deriva geral para o leste, e ela acabará sendo empurrada para alguma costa europeia.
Naturalmente, o problema que preocupa a Dawkins é um problema de ciência e de conhecimento adequado, que os dois tipos de movimento dificultam. Na área humana e social, a política incluída, o mesmo problema costuma surgir em termos do contraste entre a apreensão do "estrutural" e das tendências que lhe correspondem, por um lado, e das flutuações da "conjuntura", por outro. E as confusões são grandes. Assim, há os leninianos das "análises concretas de situações concretas", atribuindo status metodológico especial ao estudo da conjuntura e desatentos para o fato de que não é possível fazer sentido dela a menos que se recupere a "lógica do processo" que a engendra, o que nos leva à análise teórica, ou teoricamente orientada, das "situações concretas". E encontramos, às vezes, o equívoco oposto, em certo sentido, de restringir a possibilidade de conhecimento aos aspectos que de alguma forma se estabilizam e escapam ao dinamismo das mudanças: não seria possível teorizar sobre mudanças, apreendendo justamente as regularidades e tendências (a lógica) da mudança como tal.
Mas há, no campo humano, e em particular no especificamente político, outro aspecto de grande importância: o de que o problema intelectual de entender a complexidade de um processo dinâmico e a articulação de seus momentos diversos se liga com o problema da ação e de sua motivação, ou da multiplicidade de interesses e objetivos em jogo em qualquer momento dado e da possibilidade de eventualmente agregá-los em projetos coletivos de alguma amplitude ou abrangência. Em termos da analogia de Dawkins, a questão seria aqui a de apreender a conexão dos movimentos conjunturais com a "Corrente do Golfo" subjacente, como condição de que os projetos tenham sua viabilidade assegurada pela correção do diagnóstico das tendências. Mas, tratando-se de ação, tem de haver espaço para a consideração do fato de que as tendências podem ser ruins do ponto de vista dos interesses, quem sabe dos valores, e da necessidade eventual de agir contra elas, ainda que o êxito dessa ação seja ele próprio condicionado pelo entendimento tão lúcido quanto possível do processo geral.
Cabe um par de reservas. Por um lado, há as dificuldades ligadas à ideia de qualquer "projeto" coletivo de maior amplitude (projeto "nacional"?), que supõe não apenas o compartilhamento de traços culturais ou de identidade, mas na verdade a existência, sob a diversidade de interesses, de uma vontade comum e convergente em torno de objetivos de grande alcance - e há os perigos autoritários da problemática pretensão de uma elite real ou suposta de apreender e dar expressão a essa vontade. Por outro lado, isso se desdobra nas dificuldades acarretadas para o aspecto de diagnóstico intelectual do processo geral e das condições da ação: se tínhamos até há pouco, à esquerda, o vigor com que se brandia a ideia do determinismo histórico (a "Corrente do Golfo") a conduzir "automaticamente" ao socialismo, vimos em seguida a afirmação do neoliberalismo associada com a visão em que a afirmação irrestrita do mercado e o empobrecimento de um ideal ambicioso e socialdemocrático de cidadania seriam imposições inelutáveis de uma "Corrente do Golfo" de rumo novo, as "tendências objetivas" da realidade econômico-tecnológica dos dias atuais - até que as crises várias acabassem por empolgar o centro mesmo do sistema mundial, trazendo o que ameaçava (ameaça?) tornar-se a mãe de todas as crises. Em síntese: a lucidez no diagnóstico das tendências tende a ser comprometida por ideologias, em que a apreciação dos fatos é fortemente contaminada por interesses estreitos e de conexão problemática com um interesse abrangente ou "nacional".
Se se trata de governar países (que dizer de alguma forma efetiva de governo mundial, cuja necessidade a crise sugere com força...), tudo isso indica, naturalmente, grandes dificuldades. É talvez revelador que um Barack Obama, intelectualmente tão sofisticado e correspondendo com tanta nitidez a avanços democráticos profundos da sociedade estadunidense, se veja embaraçado e confundido nos vaivéns e contracorrentes da conjuntura. Quanto ao Brasil, além de também revelador, é talvez mesmo afortunado o fato de que, numa disputa como a que se esboça em torno da eleição presidencial de 2010, o tema central acabe sendo um pouco mais de Estado para cá, um pouco menos de Estado para lá - regulador, indutor, talvez ocasionalmente até executor. De todo modo, modernamente se vai tornando cada vez mais claro algo que provavelmente é certo a respeito da história política universal: que a "Corrente do Golfo" correspondeu sempre, de fato, aos embates em torno da democracia e seus avanços e recuos no plano político-institucional, em correspondência com o substrato do caráter mais ou menos democrático da sociedade como tal.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
No belíssimo livro publicado ano passado em tradução brasileira sob o título de "A Grande História da Evolução", Richard Dawkins, lidando lá pelas tantas com a contraposição, no processo evolucionário, entre movimentos de prazo comparativamente curto e tendências de mais longo prazo, recorre à imagem de uma rolha flutuando pela costa atlântica dos Estados Unidos. A ideia destacada é a de que, num minuto qualquer, haverá oscilações no movimento da rolha produzidas pelo jogo das ondas e contracorrentes, mas a Corrente do Golfo impõe uma deriva geral para o leste, e ela acabará sendo empurrada para alguma costa europeia.
Naturalmente, o problema que preocupa a Dawkins é um problema de ciência e de conhecimento adequado, que os dois tipos de movimento dificultam. Na área humana e social, a política incluída, o mesmo problema costuma surgir em termos do contraste entre a apreensão do "estrutural" e das tendências que lhe correspondem, por um lado, e das flutuações da "conjuntura", por outro. E as confusões são grandes. Assim, há os leninianos das "análises concretas de situações concretas", atribuindo status metodológico especial ao estudo da conjuntura e desatentos para o fato de que não é possível fazer sentido dela a menos que se recupere a "lógica do processo" que a engendra, o que nos leva à análise teórica, ou teoricamente orientada, das "situações concretas". E encontramos, às vezes, o equívoco oposto, em certo sentido, de restringir a possibilidade de conhecimento aos aspectos que de alguma forma se estabilizam e escapam ao dinamismo das mudanças: não seria possível teorizar sobre mudanças, apreendendo justamente as regularidades e tendências (a lógica) da mudança como tal.
Mas há, no campo humano, e em particular no especificamente político, outro aspecto de grande importância: o de que o problema intelectual de entender a complexidade de um processo dinâmico e a articulação de seus momentos diversos se liga com o problema da ação e de sua motivação, ou da multiplicidade de interesses e objetivos em jogo em qualquer momento dado e da possibilidade de eventualmente agregá-los em projetos coletivos de alguma amplitude ou abrangência. Em termos da analogia de Dawkins, a questão seria aqui a de apreender a conexão dos movimentos conjunturais com a "Corrente do Golfo" subjacente, como condição de que os projetos tenham sua viabilidade assegurada pela correção do diagnóstico das tendências. Mas, tratando-se de ação, tem de haver espaço para a consideração do fato de que as tendências podem ser ruins do ponto de vista dos interesses, quem sabe dos valores, e da necessidade eventual de agir contra elas, ainda que o êxito dessa ação seja ele próprio condicionado pelo entendimento tão lúcido quanto possível do processo geral.
Cabe um par de reservas. Por um lado, há as dificuldades ligadas à ideia de qualquer "projeto" coletivo de maior amplitude (projeto "nacional"?), que supõe não apenas o compartilhamento de traços culturais ou de identidade, mas na verdade a existência, sob a diversidade de interesses, de uma vontade comum e convergente em torno de objetivos de grande alcance - e há os perigos autoritários da problemática pretensão de uma elite real ou suposta de apreender e dar expressão a essa vontade. Por outro lado, isso se desdobra nas dificuldades acarretadas para o aspecto de diagnóstico intelectual do processo geral e das condições da ação: se tínhamos até há pouco, à esquerda, o vigor com que se brandia a ideia do determinismo histórico (a "Corrente do Golfo") a conduzir "automaticamente" ao socialismo, vimos em seguida a afirmação do neoliberalismo associada com a visão em que a afirmação irrestrita do mercado e o empobrecimento de um ideal ambicioso e socialdemocrático de cidadania seriam imposições inelutáveis de uma "Corrente do Golfo" de rumo novo, as "tendências objetivas" da realidade econômico-tecnológica dos dias atuais - até que as crises várias acabassem por empolgar o centro mesmo do sistema mundial, trazendo o que ameaçava (ameaça?) tornar-se a mãe de todas as crises. Em síntese: a lucidez no diagnóstico das tendências tende a ser comprometida por ideologias, em que a apreciação dos fatos é fortemente contaminada por interesses estreitos e de conexão problemática com um interesse abrangente ou "nacional".
Se se trata de governar países (que dizer de alguma forma efetiva de governo mundial, cuja necessidade a crise sugere com força...), tudo isso indica, naturalmente, grandes dificuldades. É talvez revelador que um Barack Obama, intelectualmente tão sofisticado e correspondendo com tanta nitidez a avanços democráticos profundos da sociedade estadunidense, se veja embaraçado e confundido nos vaivéns e contracorrentes da conjuntura. Quanto ao Brasil, além de também revelador, é talvez mesmo afortunado o fato de que, numa disputa como a que se esboça em torno da eleição presidencial de 2010, o tema central acabe sendo um pouco mais de Estado para cá, um pouco menos de Estado para lá - regulador, indutor, talvez ocasionalmente até executor. De todo modo, modernamente se vai tornando cada vez mais claro algo que provavelmente é certo a respeito da história política universal: que a "Corrente do Golfo" correspondeu sempre, de fato, aos embates em torno da democracia e seus avanços e recuos no plano político-institucional, em correspondência com o substrato do caráter mais ou menos democrático da sociedade como tal.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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