DEU EM O GLOBO (PROSA & VERSO)
Na campanha, o feminino foi tanto promessa do novo quanto um velho clichê
Na campanha, o feminino foi tanto promessa do novo quanto um velho clichê
A participação das mulheres na vida política de um país é condição para o avanço da democracia. Desde a Revolução Francesa - quando Olimpe de Gouges foi para a guilhotina por reivindicar os mesmos direitos de cidadania conquistados pelos homens -, as mulheres lutam por um lugar na política. A primeira grande bandeira foi a do sufrágio universal, só conquistado principalmente a partir dos primeiros anos do século XX, e antes do qual não se poderia falar em democracia, já que os governantes eram eleitos apenas pela metade do eleitorado. É sinal de uma democracia consolidada como a que o Brasil aspira ser que homens e mulheres ocupem o poder em partes iguais, e a redução da histórica hegemonia masculina na política, um indicador de mais e melhor democracia. Sobretudo, é fundamental para enfrentar a persistente disparidade de gênero numa sociedade tão profundamente desigual como a brasileira que haja mulheres no comando: do país, das empresas, das universidades e de diferentes instituições da sociedade.
Candidatas não têm ligação com o feminismo
O que se vê no cenário eleitoral de 2010 no Brasil não é muito diferente do que já aconteceu em outros países da América Latina. Argentina e Chile passaram pela experiência de eleger mulheres para a Presidência, o que pôde ser comemorado em ambos os países, apesar das imensas diferenças entre Cristina Kirchner e Michelle Bachelet. Há uma peculiaridade no caso brasileiro: existem duas mulheres candidatas à presidência da República, mas o país tem uma das menores taxas de representação parlamentar feminina no continente - 9%, à frente apenas da Colômbia, 8%, e do Haiti, 4%.
Nem Dilma Rousseff nem Marina Silva exibem em seus currículos qualquer trajetória nos diferentes movimentos de mulheres que emergiram no Brasil, a partir dos anos 1970. Também não se apresentam como identificadas com as causas feministas. Muitas outras mulheres já chegaram ao poder sem estar necessariamente associadas a esta militância. No entanto, ainda que não sejam explicitamente defensoras da igualdade de gênero, as duas apelam ao eleitorado se valendo da sua condição feminina como um sinal de inovação na política.
Que é um avanço inegável, não há dúvida. Trata-se apenas de pensar como esse avanço está se dando.
Quando o presidente Lula chama Dilma de "mãe do Brasil", adere ao mais antigo dos estereótipos sobre a mulher: a valorização do feminino pelo seu destino biológico, que se sobrepõe a qualquer outra qualidade como indivíduo. Apesar de Dilma não ter pautado sua vida por ideais como a família, e mesmo que tenha feito uma carreira pública na qual está também apoiada sua candidatura, o apelo à figura materna é uma forma de associar cuidado (com o povo, com o país) aos estereótipos do feminino como lugar de interioridade e domesticidade.
Paradoxalmente, essa mesma imagem tem servido, ao longo da história, para reforçar a divisão entre esfera doméstica - como pertinente às mulheres - e esfera pública - privilégio dos homens. Dessa separação se valiam os franceses, quando redigiram a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, excluindo as mulheres sob a alegação de que, por causa do inexorável papel de mães, o lugar delas era em casa.
Já Marina lista o fato de ser mulher como uma das 43 razões para que o eleitor vote nela. Associa o feminino ao novo e também apela para a ideia do cuidado, dizendo que será a primeira mulher a "cuidar do Brasil". Em entrevistas, chegou a convocar o eleitorado a elegê-la por ser "mulher de verdade". Em parte, pode ser uma referência à ausência de atributos femininos clássicos na figura de Dilma Rousseff, como beleza ou delicadeza. Mas, principalmente, é a afirmação de uma perspectiva há muito superada: a idéia de que existe uma definição prévia, única e determinada do que é ser mulher. Foi contra essa determinação que as mulheres sempre lutaram, porque daí partiram as mais violentas tentativas de aprisionar o feminino como um lugar subordinado e imutável ao qual as mulheres deveriam se contentar.
Talvez o conservadorismo da sociedade brasileira ainda não dê espaço para que as mulheres pretendam chegar ao poder com bandeiras de combate à desigualdade de gênero ou de defesa dos direitos das mulheres. Talvez ao eleitorado só seja aceitável colocar uma mulher na Presidência se a ela estiverem associadas essas representações arcaicas, de tal forma que ser mulher só seja um valor de reforço à democracia pelo ineditismo, não pelo conjunto de mudanças que poderia se dar a partir dessa escolha.
Se for assim, a única esperança é que ter uma mulher no poder não seja apenas um símbolo de mais democracia, mas se traduza, de fato, numa forma de as mulheres mudarem também a cara do século XXI. Como reconhece Eric Hobsbawm, as mulheres fizeram a maior e mais importante revolução do século XX e alcançaram prodigiosas conquistas, entre as quais o voto e o direito de participar da vida pública. Infelizmente, ainda há muito a ser feito. Violência, saúde, acesso ao poder, renda, e tantos outros sinais cotidianos - e ancestrais - de discriminação contra as mulheres são a manifestação, na cultura, de uma desigualdade que ainda não foi superada.
Lula conteve avanços para as causas das mulheres
Mais do que pela sua condição de mulher, o que eleva o desempenho eleitoral de Dilma é o apoio do presidente Lula. Em que pesem os inúmeros e importantes esforços da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Lula foi um presidente que conteve propostas de avanço para as causas das mulheres em nome de acordos por maioria no Congresso. Se nesse campo Dilma seguir os passos de seu padrinho político, não se deve esperar dela muito mais do que a mesma atitude de ainda considerar a agenda feminista como "coisa de mulher" - expressão pejorativa por excelência. Já Marina, que se apresenta como inovadora porque associada à causa ambiental, ao desenvolvimento sustentável e ao futuro, é uma incógnita no que diz respeito à agenda de superação das desigualdades.
Embora o combate às disparidades existentes entre homens e mulheres não devesse depender de governantes que usam saias para ser enfrentadas, a eleição de uma mulher para a presidência cria a expectativa de que se abram novos horizontes para problemas tão arcaicos. Pena que, para vir a superá-los, as duas candidatas, antes, precisem reforçá-los.
Carla Rodrigues é jornalista, professora da PUC-Rio, doutoranda em Filosofia, e autora, entre outros, de "Coreografias do feminino"
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