
No caso do Egito, entender o que vai pela cabeça dos manifestantes e da cúpula do governo não me parece ser a pior dificuldade. Os manifestantes pedem democracia. Não sei se têm uma idéia clara do que seja em abstrato a democracia. E com certeza não vão querer discutir conceitos agora.
No momento, o que querem é mudar o modus faciendi político do país, e entendem, creio eu que acertadamente, que o primeiro passo nessa direção é a saída de Hosni Mubarak. Querem um governo no qual possam confiar. Para eles, no momento, democracia é isso.
O atual regime egípcio é do mesmo tipo que o país vem tendo desde os tempos de Nasser: pequenas variações em torno de uma média bastante autoritária por padrões brasileiros.
Lembra o que Juan Linz, um grande estudioso da Espanha franquista, insistia em designar como regime autoritário, em vez de totalitário.
Em regimes autoritários existe alguma competição política – um “pluralismo limitado”, ainda segundo Linz -, com os partidos e o processo eleitoral mantidos sob certo controle. Os sindicatos são controlados pelo governo, o que para nós não é novidade, disso o Brasil também já teve muito.
Resumindo, o regime egípcio não é totalitário (do tipo que prevalecia na URSS e no leste europeu), mas democrático, aberto, competitivo, com certeza também não é.
Por outro lado, seria um grave equívoco confundir o governo presidido por Hosni Mubarak com qualquer das numerosas ditaduras pessoais que tanto infelicitaram a América Latina: os “somozas”, “stroessners” e “batistas” da vida.
Não, o Egito tem uma estrutura de Estado institucionalizada, complexa, despersonalizada, com forte preponderância do Exército. A comparar com países da América Latina, seria mais correto pensar no Brasil dos militares ou no México de até uns 20 anos atrás, quando o PRI (Partido Revolucionário Institucional) ainda dava praticamente sozinho as cartas.
Dentro desse padrão autoritário, o Egito tem sido o que os americanos costumam descrever como um “no nonsense kind of place”. Não se faz de rogado quando entende que é preciso reprimir. Neste sentido, ele tem se mostrado em média muito mais violento que os citados México do PRI e Brasil dos militares. Por causa do terrorismo, desde logo.
Pelo menos em parte isso se explica pelos problemas que enfrenta, bem mais complicados, por causa da geopolítica e dos diversos grupos que volta e meia recorrem à ação armada.
Neste particular, o que logo nos vem à mente é o islamismo radical.
Nunca é demais lembrar que a Al-Quaeda surgiu no Egito, e quanto a isso vale a pena ler o relato de Lawrence Wright no livro “The Looming Towers” (publicado em português pela Companhia das Letras como “O Vulto das Torres”).
Dou como improvável – direi até impensável – qualquer ingerência direta por parte das grandes potências. Elas têm manifestado preocupação, sugerido negociações etc, mas com cuidado para não avançar o sinal.
É óbvio que elas (não só as ocidentais) temem a turbulência e o islamismo radical. Mas o que mais temem é provavelmente a hipótese de algum envolvimento. Se a URSS se deu mal no Afeganistão e os Estados Unidos no Vietnam, no Afeganistão e no Iraque, ninguém será louco a ponto de se meter no Egito, um país muito mais moderno, complexo e difícil.
Do que acima vai dito eu concluo que dificilmente o governo de Mubarak será posto de joelhos ou entrará em colapso. Mas apostar eu não aposto. Enfrentamentos como o que está ocorrendo no Cairo às vezes tomam um rumo inesperado, principalmente se a violência de um lado ou de outro ultrapassa uma margem mais ou menos previsível.
Problemas há muitos, mas o busílis é com certeza o fundamentalismo islâmico. Os observadores parecem concordar em que ele não foi, até o momento, um ator fundamental.
Não tem atuado ostensivamente. Como sua base é basicamente universitária, essa não deve ser uma avaliação difícil de fazer.
Mas os observadores tampouco acreditam que esse relativo recolhimento dos fundamentalistas vá se manter se houver uma radicalização maior e uma real chance de vitória contra as forças da ordem.
Se o desfecho for alguma forma de democracia, o islamismo será sem dúvida uma grande senão a maior fonte de dificuldades, seja pelo fundamentalismo radical, seja pelo caráter teocrático de sua visão política.
A verdade é que o islamismo moderado – por mais que discorde do fundamentalismo violento, por mais que o tema e condene seu recurso alucinado à violência -, também nutre muitas e muitas reservas acerca da democracia no sentido ocidental do termo.
Concluindo, eu poderia então reiterar o meu desejo de ver um Egito democrático, mas sou obrigado a admitir que o país não tem tradição democrática e que ele enfrenta um conjunto de circunstâncias assaz adverso. Sobre não ter tradição, sim, eu bem sei que sem começar a andar, ninguém chega a lugar algum. O problema é o efeito somado da falta de tradição com o assustador conjunto de problemas que está se configurando.
FONTE: BLOG DO BOLÍVAR
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