O deputado Alessandro Molon (PT/RJ) escreveu no GLOBO (2/4, "Ataque à Constituição") um artigo insurgindo-se contra a admissibilidade de uma proposta de emenda à Constituição pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. Referia-se à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 215/2000, que inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e pelos quilombolas.
Entendo que não há qualquer vício de inconstitucionalidade na aludida PEC. Tive a honra de ser constituinte em 1988 e estou convencido de que não existe nenhuma incompatibilidade entre a proposta em questão e a garantia de reconhecimento dos direitos dos povos indígenas às terras que tradicionalmente são ocupadas por eles. Digo isso porque, embora tenha sido reconhecido pela Carta cidadã o direito dos povos indígenas ao seu território, constata-se que a Constituição não cuidou de demarcar aquelas áreas, até porque demarcação de áreas é algo fático a ser realizado e não cabe como texto constitucional.
Hoje, a demarcação dos territórios indígenas é competência exclusiva do Poder Executivo, que o faz por meio de decreto. Mas não há nada que impeça o constituinte derivado de transferir tal prerrogativa ao Congresso. Só se pode falar em "ataque à Constituição" se a proposta de emenda estiver em colisão com alguma das cláusulas pétreas, que são protegidas pelo artigo 60, § 4º, da Constituição Federal. Isso não ocorre na proposta em questão. O entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre esse tema, revelado no julgamento da demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, foi adotado tendo em vista o atual paradigma constitucional sobre a matéria, hoje de competência do Executivo. Entretanto, se o constituinte derivado quiser conceder tal competência, única e exclusivamente, ao Poder Legislativo, poderá fazê-lo sem que seja tisnado o núcleo essencial da Constituição.
Um dado interessante é que a Constituição já prevê como sendo prerrogativa exclusiva do Congresso Nacional a autorização para a pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em terras ocupadas pelos índios (artigo 49, inciso XVI). Ora, a prevalecer o argumento de que a mera demarcação das terras indígenas, se atribuída ao Congresso, ofenderia o direito daqueles povos à ocupação das respectivas áreas, haveria que se admitir que a autorização de exploração de recursos hídricos minerais pelo parlamento brasileiro também seria contrária ao texto constitucional. Mas, ao que eu tenha conhecimento, isso nunca foi arguido pelos críticos da PEC em questão.
A propósito, a proposta é mais democrática e deveria ser aprovada. A excessiva concentração de poderes nas mãos do Executivo é ruim para a democracia. O Poder Legislativo, enquanto representante do povo (Câmara dos Deputados) e das unidades federativas (Senado Federal) é o espaço mais legítimo para discussões de matérias de tal relevância, tendo em vista o confronto de ideias, que é sempre salutar, bem como o pluralismo político/partidário, que é próprio da nossa jovem democracia. Sou parlamentarista convicto e não creio em salvadores da pátria. Talvez, seja isso que me leve a ver sempre de forma positiva toda proposta que amplie as atribuições do Legislativo, sobretudo nestes tempos de hipertrofia do Executivo, que solapa a importância da representação parlamentar.
Enfim, longe de ofender qualquer dispositivo constitucional, a PEC nº 215/2000 vem para prestigiar o parlamento brasileiro. A experiência da ditadura mostrou ao país o quão nociva é a excessiva concentração de poderes no Executivo. No Legislativo, não há arbítrio, há debate. Não é preciso ter medo disso.
Roberto Freire é deputado federal e presidente nacional do PPS.
FONTE: O GLOBO
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