Fábio Brandt – Valor Econômico
BRASÍLIA - Após meses de impasse, a Câmara aprovou na noite de ontem o projeto que cria o marco civil da internet no Brasil com a ajuda de partidos que, até a semana passada, ameaçavam derrotar a proposta. Para entrar em vigor, o marco civil ainda precisa ser aprovado pelo Senado e, depois, sancionado pela presidente Dilma Rousseff. A votação foi simbólica (em que os deputados apenas erguem os braços para manifestar sua posição, sem registrar voto no painel eletrônico do plenário), mas os partidos revelaram qual orientação deram às suas bancadas. Apenas o partido oposicionista PPS orientou a bancada a votar contra a proposta. Seu líder, Rubens Bueno (PR), afirmou que a proposta representava uma interferência do Estado na cidadania.
O deputado Eduardo Cunha (RJ), líder do PMDB na Câmara e um dos parlamentares que atuaram pela derrubada do projeto, disse que a mudança de posição de sua bancada se deveu a um "recuo" do governo. Esse recuo, disse, foi o governo ter aceitado fazer duas modificações no projeto. Uma delas é a mudança na natureza do decreto que Dilma deverá usar para regulamentar as exceções à neutralidade da rede depois que a lei do marco civil estiver em vigor. A outra é a supressão do artigo que, se aprovado, permitiria ao governo obrigar empresas a terem, em território brasileiro, centros de dados para armazenamento de informações dos internautas.
"Em função do recuo que houve na mudança dos dois artigos, [a bancada do PMDB] concordou em acompanhar os demais partidos com os quais nós fizemos uma aliança informal e que já haviam concordado em alterar sua posição em função dessas [duas] mudanças [no projeto]", disse Cunha ontem. A aliança informal citada por ele é composta por PMDB, PR, PSC, PTB e Solidariedade - grupo de siglas insatisfeitas com o governo que foi apelidado de "blocão".
Em almoço também ontem os líderes do blocão manifestaram decisão igual à da bancada do PMDB. O líder do PSC, André Moura (SE), escolhido como porta-voz do blocão nesta semana, disse que o grupo tentaria mudar apenas alguns outros pontos do texto, mas que a mudança nos itens que tratam da neutralidade e dos centros de dados fez com que eles desistissem de derrotar a proposta inteira. "Nós vamos votar o marco civil da internet, mas deixando claro que só vamos votar porque o governo recua", afirmou Moura.
A neutralidade da rede é, segundo o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do projeto na Câmara e alinhado com os interesses do governo, um dos fundamentos do marco civil. A neutralidade fará, de acordo com o deputado, com que todos os internautas possam acessar qualquer conteúdo na internet, independentemente do plano de acesso que contratarem junto às empresas provedoras de conexão. Na prática, segundo Molon, a neutralidade impede as empresas de cobrarem a mais para liberar acesso a serviços como download de vídeos e uso de redes sociais. Ele diz que as empresas poderão continuar vendendo pacotes com velocidades de navegação diferenciadas, cada um com um preço distinto, mas os assinantes de todos os planos terão acesso liberado a todo o conteúdo da web.
Para chegar a um acordo com os críticos do projeto o governo não precisou mudar o conceito da neutralidade, apenas a natureza do decreto que a presidente Dilma deverá usar para regulamentar as exceções à neutralidade. Essas exceções, segundo os governistas, servem para que serviços prioritários, como procedimentos médicos feitos pela internet, não sejam atrapalhados pelo tráfego de dados referente a outras aplicações. Na semana passada, o governo aceitou mudar a redação para dizer que, em vez de um decreto autônomo, a presidente deverá usar um decreto segundo o estabelecido pelo artigo 84 da Constituição, que diz que o decreto só pode ser editado para determinar a "fiel execução da lei". Os críticos diziam que o decreto autônomo daria à presidente o poder de dispor sobre temas não incluídos no marco civil.
A outra mudança determinante para o clima da votação ter se tornado mais favorável ao governo foi a supressão do artigo que permitia ao Executivo, também por decreto, obrigar empresas a terem, em território brasileiro, centros de dados para armazenamento de informações. Esse artigo não estava no projeto original. Foi colocado na proposta, com o apoio da presidente, após serem divulgadas notícias de que ela teria sido espionada pelos Estados Unidos. O governo alegou que empresas que não mantêm dados no país atrapalham investigações porque se recusam a cumprir ordens da Justiça brasileira dizendo que sua operação é protegida pelas leis dos países onde estão armazenados os dados.
Apesar de ser claro o recuo do governo na questão dos centros de dados, nem todos os deputados concordaram que houve recuo no trecho relacionado à neutralidade da rede. Alguns deputados do PMDB, sob condição de anonimato, disseram que a alteração da natureza do decreto representa somente uma saída política para Eduardo Cunha que, isolado pelo governo, precisava de uma alteração no projeto, mesmo que pequena, para assumir em público uma mudança de posição.
Confrontado com a opinião dada nos bastidores por seus correligionários, o deputado Lúcio Vieira Lima (BA), que é próximo a Cunha, disse que "em política, o pequeno pode ser grande" e que a mudança no texto, "politicamente, muda muito". Colbert Martins (BA) também defende Cunha. Para ele, a mudança melhorou o texto ao dizer que o decreto presidencial que vai regulamentar as exceções à neutralidade deverá estar de acordo com a Constituição.
Os partidos que deixaram de criticar a proposta do governo prometeram, antes do início da sessão destinada à votação do projeto, apresentar propostas de mudanças pontuais no texto. Mas, quando a sessão começou, todos retiraram essas propostas. "Parte das emendas [ao projeto] perdeu apoio. E o relator aceitou muitas das nossas sugestões", disse o deputado Fernando Francischini (PR), líder do Solidariedade.
Molon conseguiu evitar as emendas ao texto incluindo, por exemplo, a possibilidade de levar questões de danos morais provocados pela internet para juizados especiais. Um ponto criticado mas que continuou no projeto foi o que estabelece que portais na internet só podem ser civilmente responsabilizados por conteúdos publicados por internautas em suas páginas após alguma decisão judicial. Ele disse que votaria a favor da supressão desse artigo caso algum outro partido sugerisse essa mudança na hora da votação.
Colaborou Raphael Di Cunto
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