- O Estado de S. Paulo
Difícil subestimar o alcance das transformações em nossa vida institucional a partir da vigência da Constituição de 1988, sob cuja égide se anuncia com invejável regularidade, depois das já distantes turbulências do impeachment do primeiro presidente escolhido por via direta, a sétima eleição política geral, com a livre participação de todas as forças partidárias. Tal sequência não é fato de menor importância, considerando a frequência com que antes se interrompiam as experiências democráticas, ainda mais se acrescentarmos que a perspectiva de efetiva competição, sem anular o favoritismo da presidente Dilma Rousseff, também estimula a construção de cenários de alternância.
Esta última, longe de significar aterrorizadora volta ao passado, constitui requisito mínimo de funcionamento dos regimes democráticos, que supõem a existência de oposições organizadas e capazes de chegar legitimamente ao poder.
Reafirmar esses princípios genéricos, a partir dos quais se pode reunir amplo consenso em torno de um "projeto de Estado" acima de partes e facções, delineia um roteiro modesto, mas seguro, para enfrentar situações que de outro modo seriam motivo de alarme sobre a saúde institucional do País.
É certo que há, nas publicações, nas redes e nas ruas, um sistema de "ódios organizados" e polarização exasperada, que a rigor não corresponde aos movimentos profundos da sociedade, os quais, especialmente depois de junho de 2013, deveriam ser canalizados para a consolidação e o aprofundamento da democracia. Ou, como se tem dito à exaustão, postos a serviço da aproximação entre ruas e palácios, participação e representação, demandas sociais e instituições políticas.
O fim da contraposição simples entre tucanos e petistas, representado pela aliança entre o PSB, sigla de nobres antecedentes históricos, e a Rede, sigla portadora de novidades que vieram para ficar, é algo a ser visto com otimismo, independentemente de dificuldades objetivas decorrentes do maior poder de fogo eleitoral de candidaturas mais competitivas. Como de antemão se sabia, não seria fácil combinar a política mais tradicional dos socialistas e a nova política proclamada pela Rede, mas o fato de se tratar de forças minimamente dotadas de conteúdo valoriza sua desassociação do bloco no poder, cujo pragmatismo - simbolizado por aliados como Maluf, Collor ou Newton Cardoso - põe à prova o poder de explicação de quem acompanhou a trajetória pretérita do petismo.
O principal desafiador do bloco governamental surge com um discurso econômico afiado, concorde-se ou não com ele. Em boa parte, o núcleo de economistas que gestou o Plano Real e, posteriormente, as metas de inflação foi quem nos acostumou a expressões como "âncora cambial" ou "âncora fiscal", lastros no combate ao descontrole de preços e à perda de valor da moeda. O ponto forte da postulação oposicionista atual deriva dos índices cronicamente baixos de crescimento, o que mais cedo ou mais tarde terá implicações sociais negativas.
Na política, embora inimaginável a hipótese de se contraporem à alternância - haja vista a transição exemplar entre Fernando Henrique Cardoso e seu sucessor -, há entre os tucanos formulações aventurosas, demonstrando uma menor preocupação com o que, por analogia, chamaríamos de "âncora constitucional". É o caso da proposição de coincidência geral de mandatos estabelecidos em cinco anos: tempo demais para manter afastados das urnas os eleitores, a requerer, ainda por cima, emenda constitucional para a implementação. Objetivos razoáveis de reforma podem perfeitamente ser alcançados por medidas infraconstitucionais, menos traumáticas por definição. Por que não testar esse caminho, afastando-nos da tentação da grande reforma salvadora?
O petismo - produto de variadas tradições da esquerda (inclusive autoritárias) e protagonista de curiosa "dualidade de poderes" entre dois presidentes, o criador e a criatura - tem dado curso a uma pré-campanha com traços de enigma, como quando, ao contrário do lance ensaiado pela Carta aos Brasileiros de 2002, radicaliza o discurso e sugere iniciativas - a tal Constituinte exclusiva para a reforma política é uma delas - que supõem perigoso salto no escuro, além da letra e do espírito da Carta de 1988.
De novo aqui, e ainda mais confusa, a ideia de reforma redentora dos costumes políticos, com seu cortejo de listas fechadas e aumento do poder das burocracias partidárias, como consta do repertório petista. Repertórios análogos, em diferentes latitudes, têm afastado representantes e representados, gerando ondas recorrentes de "indignação" e estranhamento da política. Forneceriam, entre nós, resposta crível ao mal-estar que explodiu em junho de 2013?
Na mesma ordem de ideias, o recente regulamento que amplia a participação da "sociedade civil" nas instâncias do Executivo, a despeito do saudável histórico de conselhos e comissões reforçado a partir de 1988, parece flertar com a "democracia direta", especialmente pelo fato de que, passando ao largo do Congresso, surge como "produto de decisões unilaterais do governo", além de ter sido implementado "por decreto, de modo voluntarista" - termos retirados da Carta aos Brasileiros de 2002 e que, naquela altura, se referiam a procedimentos, reais ou supostos, dos mandatos de FHC.
Inútil esperar que a luta se trave com invariável elegância, excluindo-se golpes sob a linha da cintura. Ao contrário, costuma-se fazer o diabo para ganhar e manter o poder. Isso, com certeza, só aumenta a responsabilidade dos democratas: seja em que partido estiverem, em qualquer circunstância eles são chamados a defender e a difundir o "patriotismo constitucional" como a única âncora possível da convivência cívica.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci no Brasil.
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