- O Estado de S. Paulo
Há uma dissonância querendo crescer no Planalto. Ela dá o ar da graça mediante uma velha conhecida das esquerdas no mundo todo. Pode ser assim apresentada: quanto mais complexas parecem ser as tarefas do governo reeleito, mais deveriam as forças que o apoiam pressioná-lo a ir para a esquerda, ou seja, a radicalizar suas posições, seu discurso, suas políticas e suas alianças. Se o raio de manobra diminuiu, a melhor saída seria "empoderar" o governo pela via do movimento social, libertando-o dos gargalos que lhe impõem o sistema político e a estrutura econômica.
Todos reconhecem, sem exceção, que ficou mais difícil a situação do governo, em que pese Dilma ter vencido a eleição. Há o megaevento da Petrobrás, cujos desdobramentos não se consegue prever, há o rombo nas contas públicas, a disputa pela presidência da Câmara, o crescimento econômico que não desponta e a inflação que persiste, a educação e a saúde a latejar, tudo isso combinado com a presença de uma oposição mais forte e a necessidade que o governo terá de formar nova maioria no Congresso sem se deixar levar pela chantagem excessiva do PMDB e de seus aliados.
O governo estará obrigado a dedicar tempo e atenção à política, negociar mais e melhor, dialogar de verdade, buscar novas fontes de legitimação e recuperar o tempo perdido, fazendo tudo isso com uma marca clara de inovação. Não poderá simplesmente reproduzir o toma-lá-dá-cá que tem prevalecido nas relações Executivo-Legislativo ou a rotina das políticas assistencialistas dos últimos anos, que deverão ser sustentadas e consolidadas sem que sejam tidas como a única marca registrada da ação governamental. Se o governo forçar a mão, poderá perder parte de seus apoios e comprar briga com o mercado; sua base parlamentar, aliás, que operou em regime de engorda crescente ano após ano, bateu no teto. Se mantiver tudo como está, poderá terminar engessado e frustrar os eleitores que viram na reeleição da presidente a possibilidade de "mudar mais". Caminhará, pois, no fio da navalha.
Um Ministério "mais qualificado" é esperado tanto pelo mercado quanto pelo PT, mas por motivos distintos. Os operadores econômicos querem uma equipe que estabilize e promova crescimento, ao passo que o partido quer nomes que agreguem suas correntes e seus militantes, ajudando-os a permanecer no campo da mudança e do reformismo social. O País, por sua vez, espera que a presidente lhe apresente uma agenda para o futuro.
A "reforma política", que está na ordem do dia, não poderá ser o principal recurso para enfrentar o furacão que se anuncia. Corrupção casa com financiamento eleitoral, mas tem mil tentáculos. Governos podem funcionar seja qual for o sistema de voto. E uma reforma política, por mais bem-sucedida que venha a ser, não produzirá efeitos imediatos nem sobre a dinâmica política, nem sobre a governabilidade, pouco servindo, portanto, para melhorar o desempenho governamental.
O momento indica que o PT deve reposicionar-se. Sua direção nacional fala em "construir hegemonia na sociedade". Se a expressão for bem traduzida, poderá significar que o partido dará maior atenção à elaboração de uma cultura que sirva de parâmetro para a educação política dos brasileiros, podendo até implicar maior questionamento das ações governamentais. Isso jogaria o PT mais no longo que no curto prazo, mais na guerra de posição que na guerra de movimento. O partido, porém, deseja atuar, "em conjunto com partidos de esquerda", para desencadear um amplo processo de mobilização social.
Como disse o governador Tarso Genro (RS) - defensor de uma reestruturação profunda do PT -, o partido "deve deixar de ser mero apoiador-espectador, excessivamente preocupado com cargos e espaços na máquina pública, para se tornar um partido apoiador-proponente, disputando os rumos do governo". Sua proposta põe em xeque o sistema de alianças em vigor, o que significaria aumentar a distância do PMDB: "O governo da presidenta Dilma deve não só ser defendido da direita tradicional dos tucanos, mas também da direita que integra sua própria base parlamentar". Cabe ao PT ser "o núcleo de sustentação mais coerente das medidas progressistas e democráticas do segundo governo Dilma".
Uma "frente de esquerda" voltou assim a frequentar os discursos petistas.
O contraponto tem sido feito pelo ministro Gilberto Carvalho, um dos mais próximos do ex-presidente Lula. Para ele, o momento é de valorizar o diálogo tanto para "reunificar o País" quanto para sanar deficiências que se acumularam. Imprimir outro curso ao governo, corrigir falhas e erros, mas sem implodir a base parlamentar duramente construída, mantendo próximos e unidos todos os partidos que apoiam o governo, sem vetos.
O PT da "frente de esquerda" distingue-se do PT do "diálogo" à direita, mas ambos se compõem: o governo governaria com a aliança à direita e o partido o pressionaria pela esquerda, ativando os movimentos sociais, numa espécie de "duplo poder", o do governo e o do partido.
Diante disso, três questões ficam em aberto. A primeira é se o diagnóstico acerta ao constatar a existência de forças e movimentos de esquerda para integrar uma frente como a pretendida; mesmo que existam, elas podem não ter disposição para atuar de modo unitário. A segunda é se a união dessas correntes encontraria respaldo efetivo no PT e ajudaria o governo. E a terceira tem que ver com o que a "frente de esquerda" fará com os democratas liberais e a esquerda democrática não petista. Se empurrá-los em bloco para a "direita", estará praticando uma infâmia e turbinando as oposições. O mais razoável seria agregá-los ao "novo ciclo reformista" que se deseja inaugurar em 2015. Para isso, porém, a "frente de esquerda" precisaria ser convertida numa "frente democrática", proposta para a qual a cultura petista majoritária não se mostra suficientemente preparada.
Professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
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