sábado, 22 de novembro de 2014

Ferreira Gullar expõe no Rio peças em metal e aço

• Fruto de um passatempo do poeta, colagens em relevo são lançadas em edição com livro artesanal

Nani Rubin – O Globo

RIO — Hábil como poucos com as palavras, o poeta Ferreira Gullar mantém há cerca de 20 anos um passatempo que expõe outro talento seu, menos conhecido do público, mas admirado por tantos amigos que o visitam em seu apartamento de Copacabana: o manejo de papéis e tesoura, em colagens que disputam cada espacinho vago nas paredes superpovoadas da casa. Se, como assevera Gullar, “o poema nasce do espanto” — e, por falta de espanto, de sua pena não tem saído poesia ultimamente —, as colagens são uma obra do acaso, um lance de pata de seu gato Gatinho, que certo dia mexeu nos papéis sobre a mesa, provocando uma desordem criativa.

Pois essas colagens, que já deram origem a dois livros, os infantis “Zoologia bizarra” e “Bichos do lixo”, e há pouco tempo começaram a virar tridimensionais, com tiras que saltam do papel, se retorcem e revelam o outro lado, foram transformadas agora em peças de aço e metal. São 30 diferentes obras, em tiragens de três, cada, que acompanham um requintado livro artesanal, com fotografias de Nana Moraes e poemas do próprio autor (cada livro, vendido por R$ 12 mil, contém uma obra). “A revelação do avesso — Colagens em relevo de Ferreira Gullar”, é editado pelo UQ!, selo de livros artesanais da Aprazível Edições, de Leonel Kaz e Lucia Bertazzo, em conjunto com a Dan Galeria, de São Paulo, e vem numa imponente caixa de madeira. O lançamento no Rio acontece neste sábado, a partir das 16h, na Graphos: Brasil, onde as colagens ficarão expostas até 6 de dezembro.
Gullar, que costuma apontar reiteradamente, em sua coluna semanal na “Folha de S.Paulo”, o que considera a falta de sentido de parte da produção de arte contemporânea, diz que não teme virar “vidraça”:

— Não estou preocupado com isso. Primeiro porque não me considero artista plástico. Fiz como hobby, não estou preocupado com crítica, não quero ser consagrado como artista plástico. Faço por prazer. Mas, de qualquer maneira, acho que há uma diferença muito grande entre fazer uma coisa como essa, que visa a dar alegria, agradar às pessoas, e botar cocô na lata (referência à obra “Merda d’artiste”, feita pelo italiano Piero Manzoni em 1961) ou urubu na gaiola (alusão ao trabalho "Bandeira branca”, que Nuno Ramos apresentou na Bienal de São Paulo de 2010). É algo muito diferente, não tem nada a ver uma coisa com a outra. Sempre fui a favor da criação na obra de arte, defendi todas as vanguardas, pratiquei vanguarda como poeta... Minha posição não é de crítico conservador, mas as coisas têm um limite. O cara dizer que colocar um urubu dentro da gaiola é fazer arte... não há Jesus Cristo que me convença disso.

De volta às artes visuais, após meio século
As colagens em relevo marcam o retorno de Gullar às artes visuais, décadas após o “Manifesto neoconcreto" (1959), por ele redigido, em que defendia a experimentação nas artes e a importância da intuição em sua criação, em contraponto ao racionalismo acentuado do grupo concreto de São Paulo. Parte de uma turma que congregava, entre outros, Amilcar de Castro, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, Gullar produziu, na época, os poemas-objetos e o “Poema enterrado”, construído na subsolo da casa do fotógrafo José Oiticica Filho, pai de Hélio.

— O que nós fizemos no neoconcreto foram obras de arte. Que desenvolviam, davam desdobramento à arte concreta — defende.

Os poemas-objetos eram cubos de diferentes cores, com uma palavra escrita numa plaquinha de madeira sob eles. A ideia era que depois de manuseados pelo espectador, e depois de revelada a palavra (“Lembra” era uma delas), o cubo, ao ser devolvido ao lugar, já não era o mesmo, pois havia uma palavra pulsando dentro dele. O “Poema enterrado” surgiu como um desdobramento disso: uma sala de 3m x 3m, com um cubo vermelho, dentro do qual havia um cubo verde. Este, por sua vez, trazia um cubo branco onde havia a palavra “rejuvenesça”. Gullar frisa que essas experimentações “não tinham nada a ver com épater, escandalizar as pessoas”:

— Era um trabalho que se inseria dentro da pesquisa que nós todos estávamos fazendo: a Lygia com os “bichos”, o Oiticica com os objetos dele, o Amilcar com as esculturas. Escandalizar não era a minha.

A ideia de arte de Gullar é clara. E, para não haver dúvida, ele cita Tom Jobim. Quando perguntavam ao maestro por que fazia música, ele respondia: “Para dar prazer às pessoas”.

— Arte é para dar alegria, não é para torturar as pessoas. Mesmo quando se faz algo dramático, uma peça, por exemplo, não é para torturar. É para expressar e superar o drama que se está vivendo. A arte é a superação do sofrimento, da banalidade. Agora, o sujeito fazer uma arte que é a própria banalidade, isso é antiarte.


Aos 84 anos, completados em 10 de setembro, o autor do aclamado “Poema sujo” (1976), vencedor do prestigiado Prêmio Camões de literatura (2010), recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras (a posse será no dia 5 de dezembro), conta que, em princípio, não pensava em expor suas obras, surgidas como algo despretensioso. Mais tarde, aceitou mostrá-las. E, depois, acabou persuadido a fazer o livro. Na introdução, ele escreve: “Me convenceram, alegando que não importava se eu sou ou não artista plástico; importava é que as colagens em relevo eram bonitas e originais. Tomei-me de entusiasmo e continuei a produzir estas colagens em relevo, que me divertem muito. Se são arte ou não, pouco importa, já que não me pretendo artista mesmo”, diz.

Futuramente, “A revelação do avesso” terá uma segunda tiragem, com 30 novas peças. Em papel de algodão importado do Japão, totalmente artesanal, o volume traz conhecidos poemas de Gullar que parecem feitos sob medida para ilustrar as colagens. Na caixa já vem impresso um trecho de “Improviso matinal”: “como um barulho/ a manhã/ se desembrulha/ no ar”.

Quanto aos poemas, ele não faz planos.

— O poema nasce de alguma coisa que revela a estranheza do mundo, ou a beleza, aí está criado o clima para escrever a poesia. Se não tem esse clima, não se escreve. E, se escrever, sai ruim. Muitos poetas consagrados caíram na bobagem de fazer poesia sem o espanto, para mostrar que continuam poetas. Eu estou pouco me lixando. Se eu parar de fazer poesia, parei. Imagina, um dia eu vou parar de viver. Parar de fazer poesia é o mínimo.

A revelação do avesso”
Onde: Graphos: Brasil — Rua Siqueira Campos 143 sobreloja 129, Copacabana (2255-8283)

Quando: Lançamento do livro hoje, às 16h; exposição de seg a sex, das 10h às 19h, sáb, das 10h às 14h. Até 6 de dezembro.

Quanto: Grátis

Classificação: Livre

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