- O Globo
Se o Brasil adotar uma política externa à reboque dos EUA fará o contrário do que os próprios militares implantaram no período deles
Diplomacia é arte de delicada tessitura. Mesmo para endurecer é preciso saber como fazer e qual é o passo seguinte, como num jogo de xadrez. E só deve ter um norte: o interesse do Brasil. O próximo governo tem falado qual será a política externa antes de escolher o futuro ministro. Como candidato, Jair Bolsonaro fez declarações das quais teve que recuar. Como presidente eleito deveria evitar precipitações porque suas palavras têm enorme peso agora. Nos governos Geisel e Figueiredo o Brasil retomou a política externa não ideológica e não alinhada aos Estados Unidos, que, depois, foi seguida em governos democráticos.
Os ministros Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro, nos governos Geisel e Figueiredo, conduziram o chamado “pragmatismo responsável". O Itamaraty retomou, naquela época, o caminho de uma política externa independente que havia sido abandonada no início do regime militar.
Um dos exemplos dessa política ocorreu em novembro de 1975 quando o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o novo governo angolano que havia declarado a independência em relação a Portugal, e era comandado pelo MPLA, que se declarava marxista. Uma parte do país era dominada por outro grupo guerrilheiro, a Unita, que anos depois perdeu a guerra.
Geisel, em março de 1977, rompeu o acordo militar com os Estados Unidos assinado nos anos 1950. Era uma forma de o Brasil escolher seu caminho também nesta área. O então presidente chegou a pensar num rompimento de outros acordos, mas foi aconselhado pelos diplomatas a esperar a reação americana com cartas na manga. Tudo o que os Estados Unidos fizeram foi enviar o general Vernon Walters ao Brasil para tentar demover o país, missão que fracassou.
O voto antissionista na ONU em 1975 causou bastante polêmica. Ele considerava o sionismo uma forma de discriminação. A questão dividiu a ONU e os países, mas a decisão brasileira foi vista como autônoma. Foi uma etapa importante da aproximação com os países árabes com quem o Brasil tem um comércio vigoroso. Foram instaladas unidades especiais só para fornecer frango para os árabes.
A transferência da sede da embaixada do Brasil para Jerusalém pode ter como efeito bumerangue a retaliação comercial dos árabes ao Brasil. Mas principalmente é ruim por significar um retrocesso no não alinhamento automático com os Estados Unidos, um dos avanços conseguidos na diplomacia dos últimos governos militares. Só um país do mundo, a Guatemala, seguiu os Estados Unidos nessa decisão.
No período João Figueiredo, o Brasil se recusou várias vezes a entrar em conspirações e conflitos na região, nos quais os Estados Unidos de Ronald Reagan tentaram nos envolver. Em uma dessas vezes houve um fato que ficou famoso. O subsecretário americano Thomas Enders veio ao Brasil tentar convencer o país a participar da tentativa de derrubar o governo sandinista. O ministro Saraiva Guerreiro costumava fechar os olhos e respirar profundamente no meio das conversas, o que levava o interlocutor a achar que ele dormira. Enders explicava que o Brasil deveria integrar uma força militar para a intervenção contra o governo sandinista, e Guerreiro fechou os olhos durante a longa explanação, deixando o americano desconcertado. Quando parou de falar, Guerreiro perguntou:
— Do you believe in God, mister Enders?
O subsecretário, cada vez mais confuso, disse que sim, acreditava em Deus. Ao que Guerreiro respondeu em inglês:
— Então vamos rezar pelo povo da Nicarágua.
Com essas e outras o Brasil, diplomaticamente, evitou virar uma espécie de ajudante americano na região ou entrar em brigas dos Estados Unidos, como as sanções que o governo Carter tentou aplicar contra a União Soviética. O atual presidente Donald Trump cria arestas com todo mundo, inclusive aliados. Seria um erro estratégico enorme o Brasil aceitar ser caudatário dos Estados Unidos.
O pior que pode nos acontecer é depois de termos saído de uma política externa ideológica de esquerda, irmos para outra ideológica de ultra-direita. A diplomacia tem que defender os interesses do país, de forma equilibrada e pragmática. Quando outros elementos, como manias e idiossincrasias do governo de plantão, entram nas decisões algo dá sempre errado.
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