terça-feira, 6 de novembro de 2018

Luiz Gonzaga Belluzzo: Nostalgia do futuro

- Valor Econômico

Corremos o risco de sermos piores do que já fomos, ou podemos ser muito melhores do que parecemos?

Em entrevista sobre seu filme Satyricon, Federico Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto atormentado de seus personagens. No crepúsculo do império romano e de suas glórias, as faces se contorciam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava "a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado".

Nesta hora em que muitos se submetem ao medo ou escolhem o ódio, não é despropositado recordar momentos que inspiraram vida, insuflaram esperanças e ensejaram conquistas às mulheres e homens dos Tristes Trópicos.

Vasculhar o passado com os olhos no horizonte é um saudável exercício de nostalgia do futuro. Nós, brasileiros, padecemos, hoje, as dores de uma indagação crucial: corremos o risco de sermos piores do que já fomos, ou podemos ser muito melhores do que parecemos?

Já tivemos nossos dias de grandes aspirações e realizações. Respondemos com vigor à Grande Depressão dos anos 1930 do século passado. Entre 1930 e 1945, o "fazendão" atrasado e melancólico do Jeca Tatu - a terra da hemoptise, do bicho-do-pé e da lombriga - cedeu espaço para a construção da economia urbano-industrial.

O governo brasileiro de Getúlio Vargas enfrentou derrocada dos preços do café, causada pela crise de 1929, com políticas de defesa da economia nacional: a compra dos estoques excedentes e a moratória para as dívidas dos cafeicultores. Essas medidas e a desorganização do mercado mundial - provocadas pela depressão e depois pela guerra - ensejaram um forte impulso à industrialização do país.

Compreendeu-se que industrialização era a única resposta adequada aos inconvenientes da dependência da demanda externa. A renda nacional dependia da exportação de produtos sujeitos à tendência secular de queda de preços e flutuações cíclicas da demanda.

O segundo conflito mundial ampliou as oportunidades de crescimento da indústria de bens de consumo não duráveis (têxteis, calçados, alimentos e bebidas) e de alguns insumos processados, como óleos e graxas vegetais e ferro-gusa. Esses setores cresceram rapidamente não só para suprir a demanda doméstica, mas também para atender às exportações.

Ainda durante a guerra, o presidente Getúlio Vargas negociou com os americanos a construção da siderúrgica de Volta Redonda. Esse empreendimento, crucial para as etapas subsequentes da industrialização brasileira, entrou em operação em 1946.

O projeto "desenvolvimentista" invadia o imaginário social. À revelia dos senhores da casa-grande, ele foi construído por uma singular articulação entre as camadas empresariais nascentes, a fração nacionalista do estamento burocrático-militar, as lideranças intelectuais e o proletariado em formação.

A economia dos socialites dos Tristes Trópicos deixara um legado de deficiências na infraestrutura (energia elétrica, petróleo, transportes, comunicações), para não falar das desigualdades regionais, da péssima distribuição de renda e da miséria absoluta. Eleito em 1950, Getúlio Vargas lançou, em 1951, o Plano de Eletrificação, criou em 1952 o BNDE, a Petrobras, em 1953. O avanço da industrialização só poderia ocorrer com a modernização da infraestrutura e a constituição dos departamentos industriais que produzem equipamentos, insumos e bens duráveis de consumo.

Getúlio não teve vida boa. Desde a sua eleição, em 1950, até o suicídio, em 24 de agosto de 1954, enfrentou as manobras da oposição que urdia suas habituais e tediosas maquinações para "melar o jogo", sempre, é claro, em nome da democracia. Primeiro, tentaram impedir sua posse com a tese esdrúxula e oportunista da maioria absoluta (Getúlio obteve 48% dos votos). Depois, cuidaram de imobilizar o governo. A agressividade do "establishment" civil e militar - sempre turbinada pelos esgares da imprensa livre e independente - exacerbou-se no início de 1954: Vargas comunicou o envio da Lei de Lucros Extraordinários ao Congresso Nacional.

A pancadaria chegou ao paroxismo quando o ministro do Trabalho, João Goulart, anunciou o aumento de 100% do salário mínimo. Acuado, Vargas demitiu Jango e o ministro da Guerra, general Espírito Santo Cardoso. Esse gesto não apaziguou a oposição que ameaçava o presidente com o impeachment. Getúlio reagiu e retomou a escalada nacional-desenvolvimentista. No dia 1º de maio de 1954, Getúlio decretou o aumento do salário mínimo anunciado por Jango.

A fidelidade insensata de seu guarda-costas, Gregório Fortunato, autor do atentado da rua Toneleros, deflagrou o tropel de ameaças que levaram Getúlio ao suicídio em 24 de agosto de 1954. Dias antes, o presidente escreveu seu derradeiro bilhete: "À sanha dos meus inimigos, deixo o legado de minha morte. Levo o pesar de não ter feito pelos humildes tudo o que desejava".

Vargas sabia que as conquistas trabalhistas impostas pela legislação social de 1942 não ensejavam ainda a almejada incorporação das massas aos padrões "modernos" de produção e de consumo, sobretudo em razão do secular atraso das relações de trabalho no campo e da completa exclusão política dessa camada social, mergulhada na miséria e na semiescravidão.

Em sua carta-testamento ele denunciou: "…Contra a justiça do salário mínimo se me desencadearam os ódios… Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco… Quando vos humilharem sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta sentireis em vosso peito a energia para a luta, por vós e por vossos filhos".
Só para lembrar.
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Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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