- O Estado de S.Paulo
O Brasil atual não se trata de uma fábrica de crises, mas uma usina de desvarios
Vivemos tempos convulsionados. Quando começaram? Impossível determinar um ponto de partida que obtenha concordância sequer entre a nata dos estudiosos. Sobretudo se o olhar for global e recorrermos às ocorrências típicas de vários países. E não apenas os sempre decisivos fatos econômicos, mas também tendências sociais, culturais ou institucionais que se espraiaram em distintos ambientes societários. Algumas mudanças, de fina sutileza, se insinuaram nas frestas da interação humana e, quando assomaram, já eram comportamentos sociais estabelecidos com alguma rigidez.
Exemplifico. Na década de 1990, após a queda do Muro de Berlim e o anúncio da “vitória final do capitalismo”, liquidando a dicotomia da guerra fria, os adoradores incondicionais do mercado se viram sem freios e, assim, conseguiram fixar o seu credo ortodoxo. Nascia o neoliberalismo, que passou a orientar a vida humana sem restrições. Propagou o discurso de redução do Estado e a descentralização governamental, sob a justificativa da desconcentração do poder. Em diversos países, inúmeras responsabilidades que eram antes dos governos centrais foram transferidas aos entes subnacionais (municípios, no Brasil), quase sempre sem a equivalência financeira. Aos poucos, gerou a corrosão tanto da oferta como da qualidade dos serviços, notadamente nos campos da assistência médica e da educação.
Contudo, sob as ondas democráticas da mesma época, esses fenômenos políticos fomentaram a narrativa da inclusão social e, dessa forma, aquela década evidenciou um curioso paradoxo. De um lado, aprofundou o neoliberalismo, uma ótica essencialmente conservadora. Mas, de outro, reforçou os ventos da primavera democrática, simbolizada pelo aumento da participação social – esta uma faceta típica de renovação progressista das sociedades.
Essa dualidade produziu leituras contrastantes entre os analistas, alguns reiterando euforicamente que a crescente presença do povo nos processos decisórios estaria antecipando grandes transformações na natureza dos próprios regimes políticos. Nasceram os orçamentos participativos, a via para “outro mundo (que seria) possível”. Outros, observando a crueza dos processos econômicos que dispararam sob a globalização naqueles anos, perceberam que o “fim da História” poderia estar sendo antevisto e, pelo contrário, as portas de alguma mudança significativa estariam se fechando.
É uma ilustração das crescentes confusões explicativas inauguradas com a espetacular derrocada do mundo socialista e as visões históricas acalentadas, desde a Revolução Francesa, sobre um mundo diferente daquele que foi sendo estruturado com o advento das modernas variedades do capitalismo. Não surpreende que nos últimos 20 a 30 anos a literatura especializada espelhe uma enorme incerteza sobre o futuro, ainda que, ao mesmo tempo, a magnitude das informações e o conhecimento tenham se ampliado de forma quase infinita.
E se o foco for somente o Brasil, poderíamos identificar algum momento (e suas razões) em que processos e tendências desencadearam uma infindável anomia social? Os mais conservadores insistirão nos efeitos da Constituição dita cidadã, porque esta teria consagrado direitos de custos inviáveis. Seria uma Carta para países ricos, longe da permanente confusão que nos caracteriza. Portanto, uma diretriz constitucional irrealizável. Esse diagnóstico é correto? Nosso maior obstáculo seria, de fato, um documento assinado há pouco mais de 30 anos?
Não parece plausível essa conclusão, particularmente se considerarmos o tempo já passado e seus desdobramentos. O País funcionou razoavelmente nas três décadas seguintes e experimentou momentos até gloriosos, como a fúria inflacionária que foi domada e a relativa estabilidade macroeconômica que se instalou. Tudo parecia indicar que finalmente descobríramos os trilhos futuros da prosperidade.
Então, onde tropeçamos? A resposta parece ser evidente, caso nos afastemos das disputas ideológicas que têm envenenado muitas análises. Pois as raízes do crescente desassossego coletivo devem ter sido lançadas a partir de dois momentos principais: as revelações assombrosas e inacreditáveis da Operação Lava Jato e, logo depois, a ruína econômica desencadeada no terceiro mandato petista. Foram os anos nos quais brotaram o desalento, a inquietação e, particularmente, as sementes da raiva social, sentimentos que não nos deixaram mais e que explicam, inclusive, o caricato e surpreendente (embora legítimo) resultado das eleições. Pouco antes, com o mensalão, o cotidiano dos brasileiros já havia sido abalado por revelações escandalosas, que parecem nunca ter fim. Assim evaporaram os sonhos de prosperidade econômica e alguma estabilidade social.
Há alguma luz promissora no horizonte? Claro que não, sejamos realistas, pois o contexto atual é kafkiano. Não se trata de uma fábrica de crises, mas uma usina de desvarios. É preciso abandonar o autoengano e as esperanças que acalentaram os eleitores. Talvez uma previsão prematura, mas precisaremos esperar o fim da atual administração, torcendo para que o estrago já em marcha seja o menor possível. Num país segmentado por interesses corporativos, a maior parte deles sacramentada em preceitos legais, um acordo nacional amplo é inviável e nada relevante ocorrerá. Sobretudo sob uma administração como esta, encabeçada por um presidente inequivocamente despreparado para a função. E a sorte e a oportunidade somente favorecem os espíritos preparados, como enfatizou Pasteur.
Caso consigamos sobreviver até o próximo pleito presidencial, quem sabe uma nova maioria não repetirá apostas delirantes. É assim que funciona a democracia. Não estamos gostando? Precisaremos, então, restituir a razão como o norte principal das escolhas eleitorais, não existe outro caminho.
*Sociólogo, é pesquisador em ciências sociais
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