- Nas entrelinhas | Correio Braziliense
“Diante da revolução tecnológica global, a subordinação da ciência à religião e da razão à fé não tem a menor chance de dar certo. É um tiro no próprio pé. ‘Eppur si muove!’”
Houve vários momentos históricos de resultados desastrosos em consequência de políticas que, por razões religiosas e/ou dogmáticas, trataram a ciência com censura ou indução ideológicas. Por exemplo, a perseguição do Colégio de Roma aos monges matemáticos italianos, porque consideravam uma heresia o cálculo infinitesimal, que foi fundamental para o desenvolvimento da Ciência e a Revolução Industrial na Inglaterra. O mesmo aconteceu com a medicina europeia na Idade Média, com a perseguição aos médicos seculares e o desprezo pelas culturas judaica e islâmica por parte da Inquisição espanhola.
O fundamentalismo ideológico pode ser um desastre para o desenvolvimento, como na agricultura soviética, em razão das teorias genéticas de Trofim Lizenko. Ainda mais num momento em que o mundo passa por aceleradas transformações, em razão de novas descobertas da ciência e da permanente inovação tecnológica, em todas as áreas de atividades produtivas, que são impactadas pelos novos conhecimentos. No Brasil, que já enfrenta um retardo científico e tecnológico considerável, pelos mais diversos motivos, esse risco aumenta porque o governo Bolsonaro promoveu a algumas posições estratégicas de mando pessoas obscurantistas e reacionárias, algumas das quais se ufanam do seu próprio “analfabetismo científico”, a ponto defender a tese estapafúrdia de que a Terra é plana.
O falecido astrofísico norte-americano Carl Sagan dizia que a ignorância em ciência e matemática nos dias atuais é muito mais danosa do que em qualquer outra época. Essa é a raiz, por exemplo, da negação de fatos cientificamente comprovados, como o aquecimento global, a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo e o desflorestamento da Amazônia, temas que estiveram no centro dos debates do recém-realizado Fórum Econômico Mundial, em Davos.
A nomeação de Benedito Guimarães Aguiar Neto, reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, para presidir a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes), é mais uma decisão do presidente Bolsonaro na linha de subordinação das políticas públicas do governo federal ao crivo ideológico-religioso, embora o Estado brasileiro seja laico, segundo a Constituição de 1988. A Capes é o principal órgão responsável por conceder bolsas de pós-graduação e fomentar pesquisas; boa parte do conhecimento científico produzido no país deve-se a isso.
Benedito pavimentou sua ascensão ao cargo com declarações e frases de efeito que agradaram ao presidente da República, principalmente, sua enérgica intervenção no congresso da instituição, em novembro passado, na qual defendeu “um contraponto à teoria da evolução”. Na ocasião, propôs que se discutisse o criacionismo a partir da educação básica, com “argumentos científicos”, o chamado “design inteligente”. O ensino do criacionismo em instituições oficiais, porém, é contestado no mundo inteiro. A discussão proposta pelo presidente da Capes, na verdade, é uma cortina de fumaça para o profundo golpe sofrido pela pesquisa científica no Brasil: o MEC cortou pela metade o orçamento do órgão, reduzindo-o de R$ 4,25 bilhões, em 2019, para R$ 2,2 bilhões, em 2020. Além disso, a Capes teve R$ 300 milhões contingenciados no ano passado, deixando de oferecer 2,7 mil bolsas.
As origens
A polêmica “criação versus evolução” é uma disputa cultural, política e teológica recorrente sobre as origens da Terra, da humanidade, da vida e do universo, que envolve os campos da geologia, paleontologia, termodinâmica, física nuclear e cosmologia. Hoje, é protagonizada pelos Estados Unidos, com apoio de Donald Trump. Envolve a definição da ciência, a educação científica, a liberdade de expressão, a separação entre Igreja e Estado e a teologia. É um debate rejeitado pela maioria dos cientistas. Mesmo entre os teólogos, não é uma discussão simples. No fim do século 18, com o avanço da ciência e do Iluminismo, os teólogos foram em busca de novas explicações para os fenômenos que preservassem a coexistência entre a religião e a ciência, a razão e a fé, para evitar que o cristianismo fosse ultrapassado pelo materialismo.
O pulo do gato foi equiparar a crença aos sentimentos, seguindo a trilha do romantismo, que colocava a emoção acima da razão, em vez de utilizar os mesmos critérios do conhecimento científico, equiparando experimentação e “revelação”, para provar a verdade do cristianismo. A ciência usa a razão humana para descobrir as coisas do mundo e explicar como ele existe; a Bíblia registra a experiência religiosa de seus autores, explica por que o mundo existe como ele é. Dessa forma, a ciência pertence ao conhecimento, a ação à ética e o sentimento, à religião. “Deus existe” é um sentimento que depende de algo maior do que nós mesmos, não precisa de comprovação.
Essa visão foi batizada como “liberalismo protestante”, mas acabou sendo muito contestada por teólogos neo-ortodoxos, porque afastava a autoridade religiosa do âmbito público. Esse debate estava apartado da nossa política, mas não está mais, porque o governo Bolsonaro é “terrivelmente evangélico”. Diante da revolução tecnológica global, porém, a subordinação da ciência à religião e da razão à fé não tem a menor chance de dar certo. É um tiro no próprio pé. “Eppur si muove!” (Mas ela se move), como disse Galileu Galilei, referindo-se à Terra, perante a Inquisição Católica.
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