O Globo
A máquina do tempo leva a um grande momento
No sábado, 1º de janeiro de 2022, começa o
ano do bicentenário do nascimento do Brasil. Parece pouca coisa, mas será uma
oportunidade para pensar numa terra que resolveu andar para a frente com seus
4,7 milhões de habitantes. Nela viviam duas grandes figuras: o príncipe Dom
Pedro, de 23 anos, e José Bonifácio de Andrada, de 59 anos.
Passados dois séculos, o país tem 213 milhões, convive com a cavalaria do atraso e, dia sim, dia não, é obrigado a conviver com o negacionismo e as batatadas do “coronel” Marcelo Queiroga e do capitão Jair Bolsonaro. Ninguém se livra do presente, mas o ano do bicentenário traz um refresco. Quem quiser, numa hora vaga, poderá entrar na máquina do tempo para reviver o grande ano de 1822. Por alguns minutos, graças à rede, voltará a um tempo em que o Brasil olhou para o futuro.
O ano começará no próximo dia 9 de janeiro,
quando Dom Pedro desafiou Lisboa e decidiu ficar no Rio. É o tal Dia do Fico.
Como previu a inglesa Maria Graham, que morava no Rio, ele foi “decisivo para o
destino do Brasil”. (Um coronel português achava que levaria o príncipe para
Portugal puxando-o pelas orelhas. Oito meses depois, Pedro separou o Brasil de
Portugal, e o coronel virou asterisco.)
Dom Pedro é um dos grandes personagens do
século XIX. Proclamou a Independência do Brasil e governou a nova nação até
1831. Voltou a Portugal, comandou uma revolta contra o irmão e colocou a filha
no trono. Morreu de tuberculose aos 35 anos. Pegou fama de estroina e
mulherengo, mas foi muito mais que isso. Julgá-lo pelo que fazia deitado
equivale a julgar o americano Thomas Jefferson pelos filhos que teve com a
escrava Sally Hemings. A Constituição que Dom Pedro outorgou em 1824 durou até
1891 e foi a mais duradoura da série.
Dom Pedro e José Bonifácio formaram uma
grande dupla. Mais velho, Andrada costurou a rebeldia do príncipe. Em junho de
1822, o Brasil não existia como nação, mas Bonifácio criou uma Secretaria dos
Negócios Estrangeiros, articulando-se no Prata, em Londres e em Viena. Enquanto
Pedro pegou fama de mulherengo, Bonifácio, com seus cabelos brancos, ficou com
uma aura austera. Filha natural, ele também tinha. O professor Delfim Netto diz
que o desentendimento que os separou em 1823 foi o primeiro grande drama da
história da nova nação. Andrada queria um governo forte, talvez forte demais,
com seu horror à imprensa livre. (Há 200 anos circularam no Rio centenas de
jornais, alguns com vidas breves.)
A geração de 1822 foi injustamente abafada.
Sumiram figuras como o futuro marquês de Barbacena, que, de Londres, propunha a
Bonifácio em maio o fim do tráfico (leia-se contrabando) de africanos
escravizados. O Brasil só se livraria dessa bola de ferro em 1850, mas essa é
outra história, a do atraso.
A máquina do tempo levará os curiosos de
2022 a um bonito momento. No mínimo, livrará os viajantes da mediocridade
presente. Em agosto de 1822, Bonifácio redigiu um manifesto às nações amigas.
Parece pouca coisa, mas vê-se seu tamanho quando se sabe que, passados dois
séculos, sem motivo plausível, o Brasil encrencou com China, Estados Unidos,
França e Chile, noves fora a má vontade com as vacinas, questão pacificada
antes mesmo de 1822 pelo pai de Pedro. Dom João VI criou a Junta Vacínica para
conter a varíola. Afinal, ela havia matado o seu irmão. Desde 1817,
vacinavam-se crianças no Rio.
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