O Estado de S. Paulo
No mundo civilizado, primeiro se arruma o
país. No Brasil, primeiro se arrumam os vencedores
Uma poderosa reflexão sobre as urnas como um instrumento de escolha de governantes foi feita por Machado de Assis no conto A Sereníssima República, publicado em 1882. É Richard Moneygrand, meu velho mentor harvardiano, indignado com a tentativa de ilegitimar a urna eletrônica feita por Bolsonaro, quem fala num e-mail.
Você analisou esse conto, diz meu amigo, que tem um pouco de Kipling e antecede Kafka, porque o seu centro é a comunicação de um erudito Cônego com aranhas. Tendo aprendido o idioma das aranhas, o pesquisador - a pedido delas - sugere a adoção do regime republicano no qual o poder passa por meio de urnas e votos. É obvio, portanto, que a urna e o voto sejam envoltos numa atmosfera peculiar, porque são substituídos da velha sucessão por sangue, feita nas casas reais.
Mas, aponta Moneygrand, no Brasil, o sistema
republicano enfrenta os costumes de uma sociedade aristocrática. Vocês ficam
como as aranhas de Machado, acusando as urnas, em vez de enxergar os vossos
reais problemas.
O Brasil não muda como sociedade, diz, com
exagero, o velho mestre, sem abandonar sua preocupação com o conspirador e
arrogante “trumpismo”. O Brasil não muda e não é porque há uma “direita muito
forte ou resiliente”, como se diz. Não anda, porque o mesmo modelo de governar
foi também adotado pela esquerda. Em ambos os casos, há um secular legalismo
que garante privilégios: a lei privada protege cargos e segmentos.
A diferença dos discursos impressionava,
mas as práticas (que distorcem as leis em favor de pessoas) são idênticas. A
direita usava os elos de família ligada à velha aristocracia; a esquerda
entronizou os partidários e aristocratizou o seu líder. A direita aristocrática
era dona absoluta do Brasil, a esquerda recuperou o tempo perdido
aristocratizando-se no poder e tentando o mesmo absolutismo com o coletivismo
populista.
Não se pode esquecer, reitera Moneygrand,
que tanto um lado como outro é hierarquizado. Têm seus intocáveis e têm suas
castas. “Ambos criaram suas fidalguias que imobilizam o todo e impedem a
modernização igualitária do sistema, que segue miseravelmente injusto. Ademais,
o sonho de todo brasileiro mais ou menos oportunista é usar a malandragem a
qual, conforme você disse faz tempo no seu Carnavais, Malandros e Heróis, é um
modo estabelecido de navegação social. O alvo da malandragem é o costumeiro
‘arrumar-se’ ou ‘arranjar-se’, uma figura que consiste em enganar os
ingênuos.”
No mundo civilizado, primeiro se arruma o país; no Brasil, primeiro nós, os vencedores, nos arrumamos. Os outros que se danem...
Um comentário:
Muito boa a análise,a esquerda tem muitas falhas também,mas acaba sendo melhor que a alternativa à vista.
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