Copa do Mundo traz oportunidade para Brasil se unir
O Globo
Cindido por eleição fratricida, mais que
nunca país precisa encontrar no futebol sua identidade comum
Numa entrevista sobre a façanha do
pentacampeonato em 2002, o atacante Ronaldo — principal estrela daquela
conquista — descreveu com palavras singelas o efeito da Copa do Mundo no
brasileiro: “Ter um momento de união, o país todo feliz por causa de uma coisa,
isso nunca acontece no Brasil, só o futebol consegue trazer isso”.
Único pentacampeão mundial e único a participar das 22 Copas, o Brasil, cuja seleção estreia hoje no Catar contra a Sérvia, precisa mais que nunca mirar-se nas palavras de Ronaldo. É essencial, mais que nunca, unir um país de 215 milhões cindido ao meio por uma eleição fratricida, que deixou marcas profundas na sociedade. A ponto de a camisa canarinho, reconhecido símbolo do escrete nacional, ser vista com desconfiança por parte da torcida depois de usurpada pelo bolsonarismo.
É verdade que as fissuras têm sido expostas
há tempos. Mas se acentuaram na campanha eleitoral. O país foi dividido em duas
trincheiras. Não havia meio-termo: ou se estava de um lado, ou do outro. A
guerra suja sem precedentes deixou os nervos expostos. Pior: o resultado, com a
vitória apertada de Luiz Inácio Lula da Silva, não desanuviou o ambiente. Os
ânimos continuam inflamados. Vizinhos não se olham, parentes não dialogam,
casais ainda se estranham, amigos cancelados só porque pensam diferente. Sem
falar nos gestos tresloucados inadmissíveis, envolvendo violência física e até
mortes.
Os inconformados com o resultado ainda
destilam seu rancor pelas ruas. Não aceitam as regras do jogo só porque não
ganharam. Criminosos — e violentos — bloqueios de estradas, atos em frente a
quartéis do Exército clamando por um golpe militar que afronta a Constituição,
financiamento de atos antidemocráticos, a absurda contestação do resultado
legítimo das urnas — tudo isso degrada o clima no país antes mesmo de o eleito
tomar posse.
Até a amarelinha eternizada por Pelé,
Garrincha e companhia foi vilipendiada. Sequestrada por bolsonaristas, assim
como a bandeira brasileira, passou a identificar uma facção política, não um
país. Os manifestantes que vão às ruas pedir às Forças Armadas uma descabida
“intervenção federal” vestem-se de verde-amarelo e se enrolam na bandeira. A
camisa azul da seleção, outrora coadjuvante, por ironia ganhou protagonismo
como alternativa.
A mudança da Copa para o fim do ano, devido
ao calor do Catar, e a proximidade das eleições desmobilizaram a torcida.
Diferentemente do que ocorria, são poucas as ruas enfeitadas. As tradicionais
vaquinhas entre moradores para comprar tintas e bandeirinhas se tornaram
escassas, até porque seriam confundidas com apoio político.
A partir de hoje, é vital que este país
rachado consiga vestir a mesma camisa, erguer a mesma bandeira, entoar os
mesmos cânticos e torcer pelo mesmo time. Em que pesem discordâncias ou o apoio
de jogadores a este ou àquele candidato, a seleção que entra hoje em campo como
favorita ao título merece respeito e confiança dos brasileiros — de todos os
brasileiros. O futebol, depreende-se da perspicaz frase de Ronaldo, é fator de
união, característica definidora da identidade nacional brasileira. É hora de
esquecer as divergências e mais uma vez torcer pela seleção. Vista sua camisa —
amarela ou azul, não importa —, empunhe sua bandeira, toque sua corneta. Se a
seleção trará o hexa, é outra história. Se conseguir nos unir, já terá feito um
golaço.
Novo governo deveria levar adiante ideia de
revisar subsídios tributários
O Globo
Rever benefícios e isenções que deverão
custar R$ 456 bilhões ajudaria a abrir espaço no Orçamento
Dentre todas as propostas vagas ou
descabidas para a economia que têm florescido na equipe de transição para o
novo governo, uma merece destaque positivo. Foi o anúncio de revisar os
subsídios tributários concedidos pela União. Em tempos de orçamento apertado e
demandas sociais urgentes, nada mais óbvio para aumentar a arrecadação e gerar
folga orçamentária. Enquanto a PEC da Transição pede autorização para gastar
mais R$ 198 bilhões no ano que vem, a previsão é que as diversas isenções,
benefícios e regimes especiais das mais diversas naturezas custem à Receita
Federal em 2023 mais de R$ 456 bilhões, um quinto da arrecadação — e ao redor
de 5% do PIB.
Políticas de subsídios têm como objetivo
fomentar atividades econômicas e reduzir desigualdades sociais ou regionais.
Mas, para que não virem um buraco sem fundo, precisam ser reavaliadas
continuamente. Programas que não atingirem seus objetivos devem ser revistos e
encerrados. Não de forma abrupta, naturalmente, mas de modo a não eternizar
exceções que gerem privilégios. Costuma ocorrer no Brasil o contrário, como
demonstram os dois líderes na lista de gastos tributários da União: o programa
Simples Nacional (custo de R$ 88,5 bilhões) e a Zona Franca de Manaus (R$ 55,3
bilhões).
No primeiro caso, um regime meritório de
incentivo a pequenas empresas se transformou em expediente usado por
profissionais ricos, como médicos ou advogados, para pagar menos imposto do que
deveriam — agravando a desigualdade. No caso da Zona Franca, criada a pretexto
de desenvolver o Amazonas, instaurou-se uma distorção econômica que beneficia
apenas parcela da população amazonense, encarecendo custos para o resto do
país.
Outro exemplo de distorção são as deduções
no imposto de renda das pessoas físicas, que deverão custar R$ 30 bilhões à
Receita Federal em 2023. A classe média e a classe alta — que declaram impostos
— são beneficiadas ao deduzir despesas com saúde e educação, em detrimento de
recursos que poderiam garantir maior qualidade do serviço público nessas duas
áreas. A estrutura fiscal funciona, portanto, como máquina geradora de
desigualdade.
Políticas de subsídios deveriam ser
transitórias. Abre-se mão de tributos para que, mais adiante, haja expansão da
atividade econômica. Quando isso acontece, o governo deveria encerrar os
programas e receber o retorno na forma de maior arrecadação. No Canadá e na
Austrália, é assim. No Brasil, não. Um estudo do Ministério da Economia mostra
que, entre 2007 e 2017, houve aumento dos subsídios e queda na receita
tributária.
Para corrigir as injustiças, o governo eleito precisará muito mais do que manifestar a intenção de revisar os subsídios. Os excessos e erros são conhecidos há muitos anos. Será preciso coragem para contrariar aqueles que perderão a mamata. Em geral, grupos organizados com enorme força de pressão sobre o Congresso sempre que seus interesses são ameaçados. Sem enfrentá-los, porém, será difícil o Brasil evoluir.
Limites à PEC
Folha de S. Paulo
Enquanto Lula não dá sinal de agenda
econômica, gasto extra deve ser prudente
A chamada PEC da Transição —a emenda
constitucional que abrirá espaço para acomodar gastos inescapáveis a partir da
posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)— concentra hoje as atenções dos mundos
político e econômico. Entretanto essa não é a única decisão crucial a ser
tomada pelo novo governo.
Em algum momento, será imperativo propor
uma regra de controle orçamentário que substitua o teto de gastos, aviltado por
medidas eleitoreiras de Jair Bolsonaro (PL). Não é necessário definir já o
mecanismo, e provavelmente nem haverá tempo hábil para tanto. Mas a PEC de
agora precisa levar em conta a norma de amanhã.
No momento, a incerteza prevalece. A
primeira versão da proposta petista, ambicionando um crescimento desmesurado de
despesas por tempo indeterminado, teve péssima
repercussão e já provocou aumento dos juros de mercado.
É essencial, decerto, garantir o Auxílio
Brasil de R$ 600, ainda que o desenho do programa mereça aperfeiçoamentos
posteriores.
Mas não se sabe
se o gasto adicional acabará em R$ 198 bilhões anuais, como quer a equipe de
Lula, ou em algo mais próximo dos R$ 90 bilhões suficientes para o
pagamento do benefício assistencial, como querem parlamentares.
Em qualquer hipótese, pode-se prever que o
dispêndio tende a provocar um aumento da dívida pública durante os próximos
quatro anos, dadas as projeções realistas de crescimento do PIB, arrecadação e
taxa de juros. Quanto mais gastadora for a PEC, maior será o ajuste necessário
para conter a escalada do passivo governamental.
É ilusório imaginar que se possa, sem
submeter o país a custos elevados, aprovar qualquer coisa de imediato e
corrigir rumos depois.
Enquanto Lula não dá indicações concretas
da orientação econômica que pretende seguir, sem apontar ao menos os nomes de
sua equipe, qualquer movimento imprudente criará o temor de uma bola de neve de
endividamento. Nesse cenário, os juros serão maiores e o PIB crescerá menos,
como se viu no passado muito recente.
A dita "vontade política" de
atenuar o sofrimento social pode, assim, produzir o feito contrário. O
imediatismo ameaça prejudicar a atividade e a oferta de trabalho, com o que vai
por água abaixo o projeto de reduzir a pobreza.
Ainda há tempo para que a equipe de
transição e o Congresso cheguem a um acordo sobre a ampliação do gasto —que,
preferencialmente, deveria contemplar valores prudentes e limitados a 2023.
Outra opção seria Lula se comprometer desde
já com uma regra consistente de controle da dívida pública, ainda que os
detalhes possam ser definidos mais adiante.
Em várias frentes
Folha de S. Paulo
Vacina bivalente, campanhas e imunização
infantil são armas da vez contra Covid
Aprovadas desde o final de agosto nos EUA e
utilizadas, atualmente, em mais de 30 países, entre eles Canadá, Japão e Reino
Unido, as vacinas bivalentes contra a Covid-19 chegarão com atraso ao Brasil.
Mas é urgente
que esses novos imunizantes, autorizados na terça (22) pela Anvisa, alcancem os
braços dos brasileiros. Também premente é a coordenação de uma
campanha que reforce a importância de manter a vacinação em dia.
As vacinas adaptadas (bivalentes), que
protegem contra mais de uma cepa do coronavírus, mostraram bons resultados na
população com o esquema básico monovalente, segundo o Centro de Controle e
Prevenção de Doenças americano.
No Brasil, os imunizantes bivalentes da
Pfizer que foram aprovados protegem contra a variante original do Sars-CoV-2 e
as subvariantes BA.1 e BA.4/BA.5 da ômicron.
Há indícios de que também possam amenizar a
infecção causada pela sublinhagem BQ.1 (uma descendente de BA.5), que preocupa
especialistas em todo o mundo devido ao seu escape imunológico.
Contudo ainda não se sabe quando esses imunizantes estarão disponíveis no
país. A expectativa
é que cheguem apenas em 2023, com foco em grupos prioritários.
Tampouco há previsão de diversificação de plataformas
de imunizantes por aqui. Nos EUA, além da Pfizer, também já está disponível a
bivalente da Moderna, que não é ministrada no Brasil.
Além disso, não há campanha para atingir a
população que está com a imunização atrasada. Oito em cada dez brasileiros
completaram o ciclo vacinal de duas doses ou de dose única contra Covid; os
demais estão com proteção desatualizada. Já as doses de reforço atingem apenas
cerca de metade da população do país.
Cenário ainda mais lamentável é verificado
em relação às crianças. Como mostrou a Folha no início de novembro,
só 1 em cada 10 crianças de 3 e 4 anos havia recebido a primeira dose, após
três meses de campanha direcionada para essa faixa etária.
Sabe-se que reforços, atualizações e
adaptações de vacinas contra a Covid-19 provavelmente não impedirão novas ondas
da doença, mas certamente evitarão um número significativo de casos graves e de
mortes. A população precisa ser alertada disso.
Campanhas de vacinação abrangentes e a diversificação de imunizantes —incluindo os adaptados— continuam, portanto, cruciais.
Molecagem
O Estado de S. Paulo
O PL mostra-se tacanho e golpista ao defender que as urnas cujos votos rejeitaram Bolsonaro não devem ser computadas no resultado final. Não cabe na democracia tal molecagem
Neste ano, o PL elegeu 99 deputados
federais e 8 senadores. Com o resultado, a legenda de Valdemar Costa Neto terá,
a partir de 2023, a maior bancada da Câmara e do Senado, com 14 senadores ao
todo. No entanto, o partido parece não apenas indiferente ao apoio recebido nas
urnas, como também alheio à responsabilidade que o voto confere em uma
democracia, portando-se como um grupo golpista. Na terça-feira, o PL pediu ao
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a anulação dos votos de 279,3 mil urnas
eletrônicas no segundo turno, sob a alegação de “mau funcionamento” do sistema.
A ação do PL é um deboche do início ao fim.
No sábado passado, ao anunciar a propositura do pedido de anulação,
Valdemar Costa Neto reconheceu a lisura e a confiabilidade do sistema
eleitoral brasileiro. “Eu disputo eleições desde 1990 e as urnas estão aí desde
94. Nunca tive preocupação com isso”, disse. No entanto, a “insistência de
Bolsonaro para ver esse assunto” teria levado o partido a descobrir algum
possível questionamento perante a Justiça Eleitoral.
“Eles insistiram comigo, aí insisti com o
pessoal, eles foram lá e descobriram isso aí”, disse o presidente do PL,
escancarando a seriedade e a motivação da descoberta do suposto problema
envolvendo 279,3 mil urnas eletrônicas. E qual foi o gravíssimo problema
encontrado pelo PL a justificar a anulação de todos os votos depositados nessas
urnas? Não se sabe. A rigor, não foi apresentado nenhum problema ou fraude. A
legenda disse apenas que as urnas anteriores a 2020 têm o mesmo número de
patrimônio. Como isso pode ter interferido no resultado do pleito a justificar o
extravagante pedido de anulação dos votos, ninguém explicou.
Eis a irresponsabilidade do PL. Um devaneio
golpista de Jair Bolsonaro é suficiente para que a legenda peça à Justiça
Eleitoral a anulação dos votos de 279,3 mil urnas eletrônicas, urnas estas que
funcionaram perfeitamente nas eleições de 2018 e no primeiro turno de 2022.
Segundo o pedido do PL, o problema nas urnas – que ninguém sabe exatamente qual
foi – teria ocorrido apenas e tão somente quando o candidato do PL à
Presidência da República perdeu.
Perante tão evidente disparate, o
presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, determinou que o PL
apresentasse um relatório completo sobre as eleições, e não apenas sobre
supostas irregularidades no segundo turno. Afinal, como menciona o despacho da
Justiça Eleitoral, as urnas foram usadas nos dois turnos e, portanto, o pedido
deve, por princípio, abranger todo o pleito, sob pena de indeferimento.
A pronta resposta do TSE ao PL foi muito
oportuna. Não cabe dar nenhuma margem a esse tipo de golpismo, cujo objetivo é
criar confusão e instabilidade. Neste momento, o País precisa justamente do
oposto. Todos, muito especialmente as autoridades e lideranças políticas, têm o
dever de respeitar plena e incondicionalmente a voz da população manifestada nas
urnas.
A resposta do PL à demanda da Justiça
Eleitoral é irrelevante, pois a iniciativa do partido, em si mesma, não passa
de uma rematada farsa, arquitetada para satisfazer a psicopatia golpista do
bolsonarismo, movimento liberticida do qual o PL se tornou hospedeiro.
Antidemocrática e irresponsável, a ação do PL revela, de forma cristalina, o
valor que o bolsonarismo confere ao voto do eleitor. Quando os votos não são
favoráveis a Jair Bolsonaro, então não valem nada.
É desolador que o presidente da República –
eleito precisamente pelo voto depositado nas urnas que agora contesta – e o
maior partido do Congresso manifestem tamanho descompromisso com o regime
democrático e com o interesse público. Revelam-se assim não apenas tacanhos,
incapazes de reconhecer uma derrota eleitoral, mas inaptos a funções públicas
num regime democrático. Não cabe no Estado Democrático de Direito tal
molecagem, tal desprezo pelo eleitor, tal indiferença com a lei.
Em sua inépcia, a ação do PL reitera uma
vez mais a lisura das urnas eletrônicas. Não há rigorosamente nada a contestar.
O que falta a alguns é a honradez de aceitar a vitória do adversário – mas isso
não é um problema técnico, e sim de caráter.
Superávit embutido na herança maldita
O Estado de S. Paulo
Governo jacta-se de entregar primeiro resultado primário positivo desde 2013, ignorando os desvios do teto de gastos e os cortes que podem paralisar a máquina pública no fim do ano
Como esperado, a vitória de Lula da Silva
na disputa presidencial antecipou o fim da administração Jair Bolsonaro,
redirecionando toda a atenção dada ao que ocorria na Esplanada dos Ministérios
ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), onde ocorrem os trabalhos da equipe
de transição. Mas, enquanto o debate sobre os ajustes no Orçamento de 2023 e a
discussão sobre a âncora fiscal que substituirá o teto de gastos ganham
relevância, o governo parece mais empenhado na tentativa de desconstruir o
legado da herança maldita que deixará ao petista, a despeito das evidências em
contrário.
Em tom de despedida, o ministro da
Economia, Paulo Guedes, aproveitou a divulgação do Relatório de Avaliação de
Receitas e Despesas do quinto bimestre para fazer um balanço de sua gestão.
Entre os indicadores destacados, Guedes mencionou o resultado primário positivo
que o País deve registrar neste ano, o primeiro desde 2013. “Será que tem gente
despreparada querendo falsificar a realidade fiscal do País? Como alguém sério
e preparado pode falar em herança maldita?”, questionou.
Minutos depois, coube ao secretário
especial de Tesouro e Orçamento da pasta, Esteves Colnago, anunciar as notícias
ruins: o bloqueio adicional de R$ 5,7 bilhões para evitar o estouro do teto de
gastos, que elevou o total dos cortes a R$ 15,4 bilhões e ampliou o risco de
apagão da máquina pública no fim deste ano. “Vai ser muito difícil, muito
apertado. O governo nunca passou tão apertado assim, o normal é vir
flexibilizando os bloqueios do Orçamento”, reconheceu. Sob tais condições, e
considerando-se todas as exceções abertas no teto desde 2019 – quase R$ 800
bilhões nas contas do FGV Ibre –, a conquista de um superávit neste ano não
parece digna de ostentação.
Independentemente do discurso político do
ministro, urge uma análise desapaixonada da realidade econômica do País, que
permita o enfrentamento dos motivos que conduziram a ela e a proposição de
soluções para corrigi-los de forma definitiva, sobretudo no que diz respeito ao
Orçamento. Aprovado em 2016, o teto de gastos explica uma parte dos problemas.
Ao propor um limite para o crescimento das despesas, sua intenção era levar o
governo e o Congresso a discutir reformas estruturais que reduzissem os
dispêndios obrigatórios, o que não aconteceu.
A falta de liderança do governo Bolsonaro,
no entanto, fortaleceu um Legislativo já bastante empoderado em termos
políticos e econômicos. Um mês antes do impeachment da ex-presidente Dilma
Rousseff, em 2015, o Congresso tornou impositiva a execução das emendas
individuais dos deputados e senadores. Já sob Bolsonaro, em 2019, parlamentares
promulgaram propostas que tornaram obrigatórias as emendas de bancada e as
emendas PIX. Em conjunto, elas colaboraram para ampliar a parcela das despesas
do Orçamento que não podem ser alvo de tesouradas a quase 94%.
Não é por acaso que as emendas de relator
recebam tanta atenção, especialmente no anúncio de cortes bimestrais do
Orçamento. Por seu caráter não obrigatório, essas emendas servem como moeda de
troca na construção de uma base de apoio e premiam os parlamentares mais fiéis
ao Executivo. Investindo nessa prática, o governo permitiu que essas emendas
consumissem, além de parte dos gastos obrigatórios, uma parcela cada vez maior
das despesas discricionárias. Ao ganharem caráter prioritário, elas reduziram o
montante antes destinado aos Ministérios para atividades como a emissão de
passaportes – símbolo máximo de uma situação fiscal crítica a ponto de
paralisar a máquina pública.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que a
herança maldita que Lula da Silva receberá não é mérito apenas do governo, mas
também do Congresso. Resolver os problemas do Orçamento e torná-lo aderente à
realidade passa pela definição de uma nova âncora fiscal crível, pela aprovação
de reformas estruturais e pela coragem de reavaliar gastos. Inclui, também, a
revisão do caráter impositivo das emendas parlamentares e a construção de uma
relação entre Executivo e Legislativo sob novas bases.
Assédio bolsonarista em SP
O Estado de S. Paulo
Eleito com a imagem de técnico, Tarcísio tem o dever de resistir a pressões do bolsonarismo ao nomear secretários
Se era séria sua promessa de campanha de
fazer um governo técnico e competente, o governador eleito de São Paulo,
Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem o dever de impedir que a administração
do Estado se transforme em cabide de emprego para bolsonaristas
desqualificados.
O risco de desmoralização do governo
paulista ficou claro nos últimos dias. A recente conversa de Tarcísio de
Freitas com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o filho “zero três”
do presidente da República, Jair Bolsonaro, evidenciou o que já se sabia: é
grande a pressão para que o futuro governo de São Paulo abrigue bolsonaristas
que serão desalojados do Palácio do Planalto e da administração federal a
partir de 1.º de janeiro. Ou que sirva de vitrine para bolsonaristas de
primeira hora com aspirações em eleições futuras.
O governo paulista tem compromisso com o
desenvolvimento de um Estado que lidera a economia brasileira e que se propõe a
servir de exemplo para o País na busca de soluções arrojadas e inteligentes.
Supõe-se que o eleitorado paulista tenha enxergado no carioca Tarcísio,
malgrado não ter quase nenhuma relação com São Paulo, o nome certo para dar
continuidade a esse perfil de competência e pujança.
Sendo assim, se não quiser começar com o pé
esquerdo sua primeira experiência como chefe de Executivo, Tarcísio deve deixar
claro a seus padrinhos que, por mais agradecido que esteja, não pode contaminar
seu governo com o rebotalho bolsonarista.
Qualquer candidatura normalmente é
construída em cima de compromissos político-partidários de divisão de poder, e
é natural que os sócios da empreitada eleitoral reivindiquem espaços de
destaque na administração em caso de vitória. Ainda assim, Tarcísio deve riscar
uma linha vermelha, uma espécie de fronteira do que é aceitável e do que é
intolerável: acordos políticos são uma coisa; empregar desqualificados cuja
única capacidade é a de conspurcar o debate público com desinformação é outra
bem diferente. A foto de um secretariado com essas características será a
imagem não de um governo sério e capaz, mas de um aleijão moral.
Ao longo de toda a campanha eleitoral, a
propaganda de Tarcísio bateu na tecla de que o candidato tinha perfil técnico:
o de alguém preparado para fazer avançar o Estado com maior população e
atividade econômica do País. Ora, não será abrindo espaço para o que há de pior
na recente safra política brasileira que o futuro governador terá êxito.
É preciso resistir ao assédio bolsonarista e impedir que as pressões vindas seja de quem for − do presidente da República, de seus filhos com mandato parlamentar ou de aliados extremistas − contaminem de extremismo um governo que ainda nem começou. Nomear um secretariado à altura dos desafios de São Paulo e das promessas feitas durante a campanha será, provavelmente, o maior teste político de Tarcísio. As escolhas que fizer agora dirão muito, se não tudo, do que se poderá esperar de sua atuação como governador.
Dono do orçamento, Centrão deve cobrar caro
pela PEC
Valor Econômico
O governo eleito terá de negociar mais,
fazer mais concessões. Não é um bom ambiente para a austeridade
Os dias do teto de gastos estão contados e
seu fim está sendo melancólico, com a bagunça orçamentária patrocinada pelos
partidos do Centrão, em especial PP e PL, e pelo oportunismo do presidente Jair
Bolsonaro, que as duas legendas apoiaram. A agonia terá prosseguimento com a
tramitação da PEC da Transição, com a qual o governo eleito pretende arrancar
do limite de gastos R$ 175 bilhões pelos próximos 4 anos.
A incúria orçamentária no estertor do
mandato de Bolsonaro ameaça paralisar parte do governo no fim do ano, enquanto
que serviços públicos, como emissão de passaportes, estão sendo interrompidos.
É um paradoxo que isso ocorra em um ano em que haverá superávit primário, entre
R$ 25 bilhões e R$ 40 bilhões, receitas que superaram a previsão de lei
orçamentária em R$ 280 bilhões, ao lado de suspensão de R$ 15,7 bilhões.
Ainda que o teto de gastos seja um
mecanismo imperfeito de controle, com destemida ambição de durar duas décadas
(uma eternidade no Brasil), a insólita situação de receitas recordes e arrocho
de despesas foi em boa parte causada pela ação dos partidos fisiológicos no
Congresso, ao criar as emendas do relator, ou orçamento secreto. Elas correspondem
a um terço das despesas discricionárias, que são cortadas para propiciar
pagamentos das emendas. Um exemplo trágico é o dos investimentos, orçados em R$
22 bilhões, o menor do passado recente, mas há outros, como os cortes drásticos
em programas de assistência à educação, saúde etc. Políticos do Centrão já
tentaram até mesmo cortar despesas obrigatórias para garantir o total de
emendas, de R$ 38 bilhões.
Ontem, a Comissão Mista de Orçamento do
Congresso aprovou um subterfúgio para retirar R$ 7 bilhões das emendas do
contingenciamento, em manobra de duvidosa legalidade que fura o teto de novo.
Os parlamentares adquiriram um poder inédito de definir os gastos
orçamentários, em detrimento do Executivo. É esse mesmo Congresso que precisará
aprovar, em duas sessões em cada Casa, a PEC da Transição, na qual o governo
eleito pede, para começar, R$ 198 bilhões fora do moribundo teto.
Com a PEC, e sem tomar posse, Lula e o PT
ficaram dependentes do que decidirem os líderes do Congresso, em especial
Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara em campanha pela reeleição e “gestor”
de peso no orçamento secreto. Em minoria na Câmara no atual mandato
legislativo, os negociadores petistas estarão nas mãos dos mesmos partidos
fisiológicos que aumentaram sua participação na próxima legislatura. Terão de
fazer concessão atrás de concessão para obter uma fatia do que foi pedido. A
mais óbvia já foi feita, a de não colocar obstáculo à recondução de Lira. A
contemporização com o criticado mecanismo das emendas do relator está no ar.
O fato de a primeira coisa a ser colocada
pelo novo governo serem gastos é significativa e um mau prenúncio. Gastos
públicos são música aos ouvidos do PT e aos do Centrão também. Os partidos
fisiológicos furaram o teto porque ele não lhe convêm mais ou atrapalha seus
esquemas políticos e econômicos. Isso também ocorreu com a Lei de
Responsabilidade Fiscal e a regra de ouro. Legendas camaleônicas que na
confecção do orçamento inflavam receitas para ampliar despesas mudaram de
roupagem quando o jogo também mudou e se indignaram quando o governo Dilma
apresentou uma peça com déficit em 2014 (fruto do festival de gastos), para
apoiar os governos seguintes, que só fizeram déficits atrás de déficits até
2021. Elas votaram em peso no teto de gastos que funcionou inteiro por três
anos.
Há vários substitutos factíveis para o teto
de gastos, ou mesmo sua manutenção com mudanças. As receitas combinam
trajetória da dívida e sua calibragem com superávits para estabilizá-la em um
número determinado de anos, ou a mesma coisa com a ajuda de um teto mais
flexível. Outras tomam por base a situação estrutural das contas públicas, que
retira os efeitos dos ciclos econômicos. São mais sofisticadas que o teto, mas
o determinante de sua eficácia é político: a determinação do Executivo, seu
prestígio político e capacidade de negociação.
Lula disse que foi fiscalmente responsável
em seus dois mandatos, mas não abriu a boca para falar sobre os desastres de
governos petistas nos 5 anos seguintes. Com apenas 2 milhões de votos a mais que
Bolsonaro, o governo eleito terá de negociar mais, isto é, fazer mais
concessões, tanto para aprovar projetos como ampliar sua base de apoio. Não é
um bom ambiente para a austeridade.
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