quinta-feira, 24 de novembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Copa do Mundo traz oportunidade para Brasil se unir

O Globo

Cindido por eleição fratricida, mais que nunca país precisa encontrar no futebol sua identidade comum

Numa entrevista sobre a façanha do pentacampeonato em 2002, o atacante Ronaldo — principal estrela daquela conquista — descreveu com palavras singelas o efeito da Copa do Mundo no brasileiro: “Ter um momento de união, o país todo feliz por causa de uma coisa, isso nunca acontece no Brasil, só o futebol consegue trazer isso”.

Único pentacampeão mundial e único a participar das 22 Copas, o Brasil, cuja seleção estreia hoje no Catar contra a Sérvia, precisa mais que nunca mirar-se nas palavras de Ronaldo. É essencial, mais que nunca, unir um país de 215 milhões cindido ao meio por uma eleição fratricida, que deixou marcas profundas na sociedade. A ponto de a camisa canarinho, reconhecido símbolo do escrete nacional, ser vista com desconfiança por parte da torcida depois de usurpada pelo bolsonarismo.

É verdade que as fissuras têm sido expostas há tempos. Mas se acentuaram na campanha eleitoral. O país foi dividido em duas trincheiras. Não havia meio-termo: ou se estava de um lado, ou do outro. A guerra suja sem precedentes deixou os nervos expostos. Pior: o resultado, com a vitória apertada de Luiz Inácio Lula da Silva, não desanuviou o ambiente. Os ânimos continuam inflamados. Vizinhos não se olham, parentes não dialogam, casais ainda se estranham, amigos cancelados só porque pensam diferente. Sem falar nos gestos tresloucados inadmissíveis, envolvendo violência física e até mortes.

Os inconformados com o resultado ainda destilam seu rancor pelas ruas. Não aceitam as regras do jogo só porque não ganharam. Criminosos — e violentos — bloqueios de estradas, atos em frente a quartéis do Exército clamando por um golpe militar que afronta a Constituição, financiamento de atos antidemocráticos, a absurda contestação do resultado legítimo das urnas — tudo isso degrada o clima no país antes mesmo de o eleito tomar posse.

Até a amarelinha eternizada por Pelé, Garrincha e companhia foi vilipendiada. Sequestrada por bolsonaristas, assim como a bandeira brasileira, passou a identificar uma facção política, não um país. Os manifestantes que vão às ruas pedir às Forças Armadas uma descabida “intervenção federal” vestem-se de verde-amarelo e se enrolam na bandeira. A camisa azul da seleção, outrora coadjuvante, por ironia ganhou protagonismo como alternativa.

A mudança da Copa para o fim do ano, devido ao calor do Catar, e a proximidade das eleições desmobilizaram a torcida. Diferentemente do que ocorria, são poucas as ruas enfeitadas. As tradicionais vaquinhas entre moradores para comprar tintas e bandeirinhas se tornaram escassas, até porque seriam confundidas com apoio político.

A partir de hoje, é vital que este país rachado consiga vestir a mesma camisa, erguer a mesma bandeira, entoar os mesmos cânticos e torcer pelo mesmo time. Em que pesem discordâncias ou o apoio de jogadores a este ou àquele candidato, a seleção que entra hoje em campo como favorita ao título merece respeito e confiança dos brasileiros — de todos os brasileiros. O futebol, depreende-se da perspicaz frase de Ronaldo, é fator de união, característica definidora da identidade nacional brasileira. É hora de esquecer as divergências e mais uma vez torcer pela seleção. Vista sua camisa — amarela ou azul, não importa —, empunhe sua bandeira, toque sua corneta. Se a seleção trará o hexa, é outra história. Se conseguir nos unir, já terá feito um golaço.

Novo governo deveria levar adiante ideia de revisar subsídios tributários

O Globo

Rever benefícios e isenções que deverão custar R$ 456 bilhões ajudaria a abrir espaço no Orçamento

Dentre todas as propostas vagas ou descabidas para a economia que têm florescido na equipe de transição para o novo governo, uma merece destaque positivo. Foi o anúncio de revisar os subsídios tributários concedidos pela União. Em tempos de orçamento apertado e demandas sociais urgentes, nada mais óbvio para aumentar a arrecadação e gerar folga orçamentária. Enquanto a PEC da Transição pede autorização para gastar mais R$ 198 bilhões no ano que vem, a previsão é que as diversas isenções, benefícios e regimes especiais das mais diversas naturezas custem à Receita Federal em 2023 mais de R$ 456 bilhões, um quinto da arrecadação — e ao redor de 5% do PIB.

Políticas de subsídios têm como objetivo fomentar atividades econômicas e reduzir desigualdades sociais ou regionais. Mas, para que não virem um buraco sem fundo, precisam ser reavaliadas continuamente. Programas que não atingirem seus objetivos devem ser revistos e encerrados. Não de forma abrupta, naturalmente, mas de modo a não eternizar exceções que gerem privilégios. Costuma ocorrer no Brasil o contrário, como demonstram os dois líderes na lista de gastos tributários da União: o programa Simples Nacional (custo de R$ 88,5 bilhões) e a Zona Franca de Manaus (R$ 55,3 bilhões).

No primeiro caso, um regime meritório de incentivo a pequenas empresas se transformou em expediente usado por profissionais ricos, como médicos ou advogados, para pagar menos imposto do que deveriam — agravando a desigualdade. No caso da Zona Franca, criada a pretexto de desenvolver o Amazonas, instaurou-se uma distorção econômica que beneficia apenas parcela da população amazonense, encarecendo custos para o resto do país.

Outro exemplo de distorção são as deduções no imposto de renda das pessoas físicas, que deverão custar R$ 30 bilhões à Receita Federal em 2023. A classe média e a classe alta — que declaram impostos — são beneficiadas ao deduzir despesas com saúde e educação, em detrimento de recursos que poderiam garantir maior qualidade do serviço público nessas duas áreas. A estrutura fiscal funciona, portanto, como máquina geradora de desigualdade.

Políticas de subsídios deveriam ser transitórias. Abre-se mão de tributos para que, mais adiante, haja expansão da atividade econômica. Quando isso acontece, o governo deveria encerrar os programas e receber o retorno na forma de maior arrecadação. No Canadá e na Austrália, é assim. No Brasil, não. Um estudo do Ministério da Economia mostra que, entre 2007 e 2017, houve aumento dos subsídios e queda na receita tributária.

Para corrigir as injustiças, o governo eleito precisará muito mais do que manifestar a intenção de revisar os subsídios. Os excessos e erros são conhecidos há muitos anos. Será preciso coragem para contrariar aqueles que perderão a mamata. Em geral, grupos organizados com enorme força de pressão sobre o Congresso sempre que seus interesses são ameaçados. Sem enfrentá-los, porém, será difícil o Brasil evoluir.

Limites à PEC

Folha de S. Paulo

Enquanto Lula não dá sinal de agenda econômica, gasto extra deve ser prudente

A chamada PEC da Transição —a emenda constitucional que abrirá espaço para acomodar gastos inescapáveis a partir da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)— concentra hoje as atenções dos mundos político e econômico. Entretanto essa não é a única decisão crucial a ser tomada pelo novo governo.

Em algum momento, será imperativo propor uma regra de controle orçamentário que substitua o teto de gastos, aviltado por medidas eleitoreiras de Jair Bolsonaro (PL). Não é necessário definir já o mecanismo, e provavelmente nem haverá tempo hábil para tanto. Mas a PEC de agora precisa levar em conta a norma de amanhã.

No momento, a incerteza prevalece. A primeira versão da proposta petista, ambicionando um crescimento desmesurado de despesas por tempo indeterminado, teve péssima repercussão e já provocou aumento dos juros de mercado.

É essencial, decerto, garantir o Auxílio Brasil de R$ 600, ainda que o desenho do programa mereça aperfeiçoamentos posteriores.

Mas não se sabe se o gasto adicional acabará em R$ 198 bilhões anuais, como quer a equipe de Lula, ou em algo mais próximo dos R$ 90 bilhões suficientes para o pagamento do benefício assistencial, como querem parlamentares.

Em qualquer hipótese, pode-se prever que o dispêndio tende a provocar um aumento da dívida pública durante os próximos quatro anos, dadas as projeções realistas de crescimento do PIB, arrecadação e taxa de juros. Quanto mais gastadora for a PEC, maior será o ajuste necessário para conter a escalada do passivo governamental.

É ilusório imaginar que se possa, sem submeter o país a custos elevados, aprovar qualquer coisa de imediato e corrigir rumos depois.

Enquanto Lula não dá indicações concretas da orientação econômica que pretende seguir, sem apontar ao menos os nomes de sua equipe, qualquer movimento imprudente criará o temor de uma bola de neve de endividamento. Nesse cenário, os juros serão maiores e o PIB crescerá menos, como se viu no passado muito recente.

A dita "vontade política" de atenuar o sofrimento social pode, assim, produzir o feito contrário. O imediatismo ameaça prejudicar a atividade e a oferta de trabalho, com o que vai por água abaixo o projeto de reduzir a pobreza.

Ainda há tempo para que a equipe de transição e o Congresso cheguem a um acordo sobre a ampliação do gasto —que, preferencialmente, deveria contemplar valores prudentes e limitados a 2023.

Outra opção seria Lula se comprometer desde já com uma regra consistente de controle da dívida pública, ainda que os detalhes possam ser definidos mais adiante.

Em várias frentes

Folha de S. Paulo

Vacina bivalente, campanhas e imunização infantil são armas da vez contra Covid

Aprovadas desde o final de agosto nos EUA e utilizadas, atualmente, em mais de 30 países, entre eles Canadá, Japão e Reino Unido, as vacinas bivalentes contra a Covid-19 chegarão com atraso ao Brasil.

Mas é urgente que esses novos imunizantes, autorizados na terça (22) pela Anvisa, alcancem os braços dos brasileiros. Também premente é a coordenação de uma campanha que reforce a importância de manter a vacinação em dia.

As vacinas adaptadas (bivalentes), que protegem contra mais de uma cepa do coronavírus, mostraram bons resultados na população com o esquema básico monovalente, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano.

No Brasil, os imunizantes bivalentes da Pfizer que foram aprovados protegem contra a variante original do Sars-CoV-2 e as subvariantes BA.1 e BA.4/BA.5 da ômicron.

Há indícios de que também possam amenizar a infecção causada pela sublinhagem BQ.1 (uma descendente de BA.5), que preocupa especialistas em todo o mundo devido ao seu escape imunológico.
Contudo ainda não se sabe quando esses imunizantes estarão disponíveis no país. A expectativa é que cheguem apenas em 2023, com foco em grupos prioritários.

Tampouco há previsão de diversificação de plataformas de imunizantes por aqui. Nos EUA, além da Pfizer, também já está disponível a bivalente da Moderna, que não é ministrada no Brasil.

Além disso, não há campanha para atingir a população que está com a imunização atrasada. Oito em cada dez brasileiros completaram o ciclo vacinal de duas doses ou de dose única contra Covid; os demais estão com proteção desatualizada. Já as doses de reforço atingem apenas cerca de metade da população do país.

Cenário ainda mais lamentável é verificado em relação às crianças. Como mostrou a Folha no início de novembro, só 1 em cada 10 crianças de 3 e 4 anos havia recebido a primeira dose, após três meses de campanha direcionada para essa faixa etária.

Sabe-se que reforços, atualizações e adaptações de vacinas contra a Covid-19 provavelmente não impedirão novas ondas da doença, mas certamente evitarão um número significativo de casos graves e de mortes. A população precisa ser alertada disso.

Campanhas de vacinação abrangentes e a diversificação de imunizantes —incluindo os adaptados— continuam, portanto, cruciais.

Molecagem

O Estado de S. Paulo

O PL mostra-se tacanho e golpista ao defender que as urnas cujos votos rejeitaram Bolsonaro não devem ser computadas no resultado final. Não cabe na democracia tal molecagem

Neste ano, o PL elegeu 99 deputados federais e 8 senadores. Com o resultado, a legenda de Valdemar Costa Neto terá, a partir de 2023, a maior bancada da Câmara e do Senado, com 14 senadores ao todo. No entanto, o partido parece não apenas indiferente ao apoio recebido nas urnas, como também alheio à responsabilidade que o voto confere em uma democracia, portando-se como um grupo golpista. Na terça-feira, o PL pediu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a anulação dos votos de 279,3 mil urnas eletrônicas no segundo turno, sob a alegação de “mau funcionamento” do sistema.

A ação do PL é um deboche do início ao fim. No sábado passado, ao anunciar a propositura do pedido de anulação, Valdemar Costa Neto reconheceu a lisura e a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro. “Eu disputo eleições desde 1990 e as urnas estão aí desde 94. Nunca tive preocupação com isso”, disse. No entanto, a “insistência de Bolsonaro para ver esse assunto” teria levado o partido a descobrir algum possível questionamento perante a Justiça Eleitoral.

“Eles insistiram comigo, aí insisti com o pessoal, eles foram lá e descobriram isso aí”, disse o presidente do PL, escancarando a seriedade e a motivação da descoberta do suposto problema envolvendo 279,3 mil urnas eletrônicas. E qual foi o gravíssimo problema encontrado pelo PL a justificar a anulação de todos os votos depositados nessas urnas? Não se sabe. A rigor, não foi apresentado nenhum problema ou fraude. A legenda disse apenas que as urnas anteriores a 2020 têm o mesmo número de patrimônio. Como isso pode ter interferido no resultado do pleito a justificar o extravagante pedido de anulação dos votos, ninguém explicou.

Eis a irresponsabilidade do PL. Um devaneio golpista de Jair Bolsonaro é suficiente para que a legenda peça à Justiça Eleitoral a anulação dos votos de 279,3 mil urnas eletrônicas, urnas estas que funcionaram perfeitamente nas eleições de 2018 e no primeiro turno de 2022. Segundo o pedido do PL, o problema nas urnas – que ninguém sabe exatamente qual foi – teria ocorrido apenas e tão somente quando o candidato do PL à Presidência da República perdeu.

Perante tão evidente disparate, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, determinou que o PL apresentasse um relatório completo sobre as eleições, e não apenas sobre supostas irregularidades no segundo turno. Afinal, como menciona o despacho da Justiça Eleitoral, as urnas foram usadas nos dois turnos e, portanto, o pedido deve, por princípio, abranger todo o pleito, sob pena de indeferimento.

A pronta resposta do TSE ao PL foi muito oportuna. Não cabe dar nenhuma margem a esse tipo de golpismo, cujo objetivo é criar confusão e instabilidade. Neste momento, o País precisa justamente do oposto. Todos, muito especialmente as autoridades e lideranças políticas, têm o dever de respeitar plena e incondicionalmente a voz da população manifestada nas urnas.

A resposta do PL à demanda da Justiça Eleitoral é irrelevante, pois a iniciativa do partido, em si mesma, não passa de uma rematada farsa, arquitetada para satisfazer a psicopatia golpista do bolsonarismo, movimento liberticida do qual o PL se tornou hospedeiro. Antidemocrática e irresponsável, a ação do PL revela, de forma cristalina, o valor que o bolsonarismo confere ao voto do eleitor. Quando os votos não são favoráveis a Jair Bolsonaro, então não valem nada.

É desolador que o presidente da República – eleito precisamente pelo voto depositado nas urnas que agora contesta – e o maior partido do Congresso manifestem tamanho descompromisso com o regime democrático e com o interesse público. Revelam-se assim não apenas tacanhos, incapazes de reconhecer uma derrota eleitoral, mas inaptos a funções públicas num regime democrático. Não cabe no Estado Democrático de Direito tal molecagem, tal desprezo pelo eleitor, tal indiferença com a lei.

Em sua inépcia, a ação do PL reitera uma vez mais a lisura das urnas eletrônicas. Não há rigorosamente nada a contestar. O que falta a alguns é a honradez de aceitar a vitória do adversário – mas isso não é um problema técnico, e sim de caráter.

Superávit embutido na herança maldita

O Estado de S. Paulo

Governo jacta-se de entregar primeiro resultado primário positivo desde 2013, ignorando os desvios do teto de gastos e os cortes que podem paralisar a máquina pública no fim do ano

Como esperado, a vitória de Lula da Silva na disputa presidencial antecipou o fim da administração Jair Bolsonaro, redirecionando toda a atenção dada ao que ocorria na Esplanada dos Ministérios ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), onde ocorrem os trabalhos da equipe de transição. Mas, enquanto o debate sobre os ajustes no Orçamento de 2023 e a discussão sobre a âncora fiscal que substituirá o teto de gastos ganham relevância, o governo parece mais empenhado na tentativa de desconstruir o legado da herança maldita que deixará ao petista, a despeito das evidências em contrário.

Em tom de despedida, o ministro da Economia, Paulo Guedes, aproveitou a divulgação do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas do quinto bimestre para fazer um balanço de sua gestão. Entre os indicadores destacados, Guedes mencionou o resultado primário positivo que o País deve registrar neste ano, o primeiro desde 2013. “Será que tem gente despreparada querendo falsificar a realidade fiscal do País? Como alguém sério e preparado pode falar em herança maldita?”, questionou.

Minutos depois, coube ao secretário especial de Tesouro e Orçamento da pasta, Esteves Colnago, anunciar as notícias ruins: o bloqueio adicional de R$ 5,7 bilhões para evitar o estouro do teto de gastos, que elevou o total dos cortes a R$ 15,4 bilhões e ampliou o risco de apagão da máquina pública no fim deste ano. “Vai ser muito difícil, muito apertado. O governo nunca passou tão apertado assim, o normal é vir flexibilizando os bloqueios do Orçamento”, reconheceu. Sob tais condições, e considerando-se todas as exceções abertas no teto desde 2019 – quase R$ 800 bilhões nas contas do FGV Ibre –, a conquista de um superávit neste ano não parece digna de ostentação.

Independentemente do discurso político do ministro, urge uma análise desapaixonada da realidade econômica do País, que permita o enfrentamento dos motivos que conduziram a ela e a proposição de soluções para corrigi-los de forma definitiva, sobretudo no que diz respeito ao Orçamento. Aprovado em 2016, o teto de gastos explica uma parte dos problemas. Ao propor um limite para o crescimento das despesas, sua intenção era levar o governo e o Congresso a discutir reformas estruturais que reduzissem os dispêndios obrigatórios, o que não aconteceu.

A falta de liderança do governo Bolsonaro, no entanto, fortaleceu um Legislativo já bastante empoderado em termos políticos e econômicos. Um mês antes do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2015, o Congresso tornou impositiva a execução das emendas individuais dos deputados e senadores. Já sob Bolsonaro, em 2019, parlamentares promulgaram propostas que tornaram obrigatórias as emendas de bancada e as emendas PIX. Em conjunto, elas colaboraram para ampliar a parcela das despesas do Orçamento que não podem ser alvo de tesouradas a quase 94%.

Não é por acaso que as emendas de relator recebam tanta atenção, especialmente no anúncio de cortes bimestrais do Orçamento. Por seu caráter não obrigatório, essas emendas servem como moeda de troca na construção de uma base de apoio e premiam os parlamentares mais fiéis ao Executivo. Investindo nessa prática, o governo permitiu que essas emendas consumissem, além de parte dos gastos obrigatórios, uma parcela cada vez maior das despesas discricionárias. Ao ganharem caráter prioritário, elas reduziram o montante antes destinado aos Ministérios para atividades como a emissão de passaportes – símbolo máximo de uma situação fiscal crítica a ponto de paralisar a máquina pública.

Nesse sentido, é preciso reconhecer que a herança maldita que Lula da Silva receberá não é mérito apenas do governo, mas também do Congresso. Resolver os problemas do Orçamento e torná-lo aderente à realidade passa pela definição de uma nova âncora fiscal crível, pela aprovação de reformas estruturais e pela coragem de reavaliar gastos. Inclui, também, a revisão do caráter impositivo das emendas parlamentares e a construção de uma relação entre Executivo e Legislativo sob novas bases.

Assédio bolsonarista em SP

O Estado de S. Paulo

Eleito com a imagem de técnico, Tarcísio tem o dever de resistir a pressões do bolsonarismo ao nomear secretários

Se era séria sua promessa de campanha de fazer um governo técnico e competente, o governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem o dever de impedir que a administração do Estado se transforme em cabide de emprego para bolsonaristas desqualificados.

O risco de desmoralização do governo paulista ficou claro nos últimos dias. A recente conversa de Tarcísio de Freitas com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o filho “zero três” do presidente da República, Jair Bolsonaro, evidenciou o que já se sabia: é grande a pressão para que o futuro governo de São Paulo abrigue bolsonaristas que serão desalojados do Palácio do Planalto e da administração federal a partir de 1.º de janeiro. Ou que sirva de vitrine para bolsonaristas de primeira hora com aspirações em eleições futuras.

O governo paulista tem compromisso com o desenvolvimento de um Estado que lidera a economia brasileira e que se propõe a servir de exemplo para o País na busca de soluções arrojadas e inteligentes. Supõe-se que o eleitorado paulista tenha enxergado no carioca Tarcísio, malgrado não ter quase nenhuma relação com São Paulo, o nome certo para dar continuidade a esse perfil de competência e pujança.

Sendo assim, se não quiser começar com o pé esquerdo sua primeira experiência como chefe de Executivo, Tarcísio deve deixar claro a seus padrinhos que, por mais agradecido que esteja, não pode contaminar seu governo com o rebotalho bolsonarista.

Qualquer candidatura normalmente é construída em cima de compromissos político-partidários de divisão de poder, e é natural que os sócios da empreitada eleitoral reivindiquem espaços de destaque na administração em caso de vitória. Ainda assim, Tarcísio deve riscar uma linha vermelha, uma espécie de fronteira do que é aceitável e do que é intolerável: acordos políticos são uma coisa; empregar desqualificados cuja única capacidade é a de conspurcar o debate público com desinformação é outra bem diferente. A foto de um secretariado com essas características será a imagem não de um governo sério e capaz, mas de um aleijão moral. 

Ao longo de toda a campanha eleitoral, a propaganda de Tarcísio bateu na tecla de que o candidato tinha perfil técnico: o de alguém preparado para fazer avançar o Estado com maior população e atividade econômica do País. Ora, não será abrindo espaço para o que há de pior na recente safra política brasileira que o futuro governador terá êxito.

É preciso resistir ao assédio bolsonarista e impedir que as pressões vindas seja de quem for − do presidente da República, de seus filhos com mandato parlamentar ou de aliados extremistas − contaminem de extremismo um governo que ainda nem começou. Nomear um secretariado à altura dos desafios de São Paulo e das promessas feitas durante a campanha será, provavelmente, o maior teste político de Tarcísio. As escolhas que fizer agora dirão muito, se não tudo, do que se poderá esperar de sua atuação como governador.

Dono do orçamento, Centrão deve cobrar caro pela PEC

Valor Econômico

O governo eleito terá de negociar mais, fazer mais concessões. Não é um bom ambiente para a austeridade

Os dias do teto de gastos estão contados e seu fim está sendo melancólico, com a bagunça orçamentária patrocinada pelos partidos do Centrão, em especial PP e PL, e pelo oportunismo do presidente Jair Bolsonaro, que as duas legendas apoiaram. A agonia terá prosseguimento com a tramitação da PEC da Transição, com a qual o governo eleito pretende arrancar do limite de gastos R$ 175 bilhões pelos próximos 4 anos.

A incúria orçamentária no estertor do mandato de Bolsonaro ameaça paralisar parte do governo no fim do ano, enquanto que serviços públicos, como emissão de passaportes, estão sendo interrompidos. É um paradoxo que isso ocorra em um ano em que haverá superávit primário, entre R$ 25 bilhões e R$ 40 bilhões, receitas que superaram a previsão de lei orçamentária em R$ 280 bilhões, ao lado de suspensão de R$ 15,7 bilhões.

Ainda que o teto de gastos seja um mecanismo imperfeito de controle, com destemida ambição de durar duas décadas (uma eternidade no Brasil), a insólita situação de receitas recordes e arrocho de despesas foi em boa parte causada pela ação dos partidos fisiológicos no Congresso, ao criar as emendas do relator, ou orçamento secreto. Elas correspondem a um terço das despesas discricionárias, que são cortadas para propiciar pagamentos das emendas. Um exemplo trágico é o dos investimentos, orçados em R$ 22 bilhões, o menor do passado recente, mas há outros, como os cortes drásticos em programas de assistência à educação, saúde etc. Políticos do Centrão já tentaram até mesmo cortar despesas obrigatórias para garantir o total de emendas, de R$ 38 bilhões.

Ontem, a Comissão Mista de Orçamento do Congresso aprovou um subterfúgio para retirar R$ 7 bilhões das emendas do contingenciamento, em manobra de duvidosa legalidade que fura o teto de novo. Os parlamentares adquiriram um poder inédito de definir os gastos orçamentários, em detrimento do Executivo. É esse mesmo Congresso que precisará aprovar, em duas sessões em cada Casa, a PEC da Transição, na qual o governo eleito pede, para começar, R$ 198 bilhões fora do moribundo teto.

Com a PEC, e sem tomar posse, Lula e o PT ficaram dependentes do que decidirem os líderes do Congresso, em especial Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara em campanha pela reeleição e “gestor” de peso no orçamento secreto. Em minoria na Câmara no atual mandato legislativo, os negociadores petistas estarão nas mãos dos mesmos partidos fisiológicos que aumentaram sua participação na próxima legislatura. Terão de fazer concessão atrás de concessão para obter uma fatia do que foi pedido. A mais óbvia já foi feita, a de não colocar obstáculo à recondução de Lira. A contemporização com o criticado mecanismo das emendas do relator está no ar.

O fato de a primeira coisa a ser colocada pelo novo governo serem gastos é significativa e um mau prenúncio. Gastos públicos são música aos ouvidos do PT e aos do Centrão também. Os partidos fisiológicos furaram o teto porque ele não lhe convêm mais ou atrapalha seus esquemas políticos e econômicos. Isso também ocorreu com a Lei de Responsabilidade Fiscal e a regra de ouro. Legendas camaleônicas que na confecção do orçamento inflavam receitas para ampliar despesas mudaram de roupagem quando o jogo também mudou e se indignaram quando o governo Dilma apresentou uma peça com déficit em 2014 (fruto do festival de gastos), para apoiar os governos seguintes, que só fizeram déficits atrás de déficits até 2021. Elas votaram em peso no teto de gastos que funcionou inteiro por três anos.

Há vários substitutos factíveis para o teto de gastos, ou mesmo sua manutenção com mudanças. As receitas combinam trajetória da dívida e sua calibragem com superávits para estabilizá-la em um número determinado de anos, ou a mesma coisa com a ajuda de um teto mais flexível. Outras tomam por base a situação estrutural das contas públicas, que retira os efeitos dos ciclos econômicos. São mais sofisticadas que o teto, mas o determinante de sua eficácia é político: a determinação do Executivo, seu prestígio político e capacidade de negociação.

Lula disse que foi fiscalmente responsável em seus dois mandatos, mas não abriu a boca para falar sobre os desastres de governos petistas nos 5 anos seguintes. Com apenas 2 milhões de votos a mais que Bolsonaro, o governo eleito terá de negociar mais, isto é, fazer mais concessões, tanto para aprovar projetos como ampliar sua base de apoio. Não é um bom ambiente para a austeridade.

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