sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Risco para novo governo é repetir erros do passado

O Globo

Para lidar com a herança de Bolsonaro, não bastará dar mais recursos a programas esvaziados

Antes de anunciar mais 16 nomes para seu ministério, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, divulgou ontem o relatório final do gabinete de transição, sob a coordenação do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin. O documento foi apresentado como um diagnóstico da “herança maldita” que o novo governo receberá da gestão Jair Bolsonaro e um primeiro esboço das medidas que tomará.

Deve-se reconhecer que, para uma chapa eleita com base num programa de governo repleto de ideias ultrapassadas e propostas descabidas, o documento foi um avanço. Pelo menos está apoiado em fatos (e isso, registre-se, não é pouco nos tempos que vivemos). A primeira parte desfia uma ladainha, ministério a ministério, constatando cortes em verbas e programas, cujos efeitos são considerados deletérios.

É verdade que diversos indicadores são alarmantes. O acompanhamento da vacinação infantil caiu de 68% para 45% na gestão Bolsonaro. No Cadastro Único para Programas Sociais, apenas 60% dos dados estão atualizados, e quase 35% dos 40 milhões de famílias têm apenas um integrante. Os empréstimos consignados a beneficiários de programas sociais concedidos às vésperas da eleição somam R$ 9,5 bilhões. O tempo médio para concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) subiu de 78 para 311 dias, e há 580 mil na fila de espera.

O Brasil voltou ao Mapa da Fome das Nações Unidas, e mais 5,8 milhões passaram a viver em condição de extrema pobreza, levando o total a quase 18 milhões (8,4% da população). O país também bateu recorde de feminicídios, há 14 mil obras paradas, e 93% das rodovias federais não têm contrato de manutenção. Nos órgãos ambientais, 2.103 cargos estão vagos. No Ibama só 700 atuam na fiscalização (nem todos em campo), quando já foram 1.800. Não é acaso que, no governo Bolsonaro, o desmatamento da Amazônia tenha aumentado 60%, e as taxas tenham alcançado o pico dos últimos 15 anos.

O documento traz propostas sensatas, como o “revogaço” de decretos e portarias de Bolsonaro sobre armas ou meio ambiente. Também propõe a revisão de sigilos de cem anos impostos a informações que deveriam ser públicas e a reavaliação do modelo de escolas cívico-militares. Existe mesmo uma herança nefasta da gestão atual com que o novo governo terá de lidar.

Mas o documento dá a entender que a forma de fazer isso é recompor gastos e reativar programas do passado. A realidade é sempre mais desafiadora, e é um erro recorrente na política brasileira acreditar que apenas destinar mais recursos a determinada área contribuirá para melhorar sua gestão. Não necessariamente. Muitas vezes ocorre o contrário, como demonstra a deterioração dos indicadores de pobreza, apesar de o país gastar hoje muito mais dinheiro em transferência de renda.

Outro equívoco é a proposta de congelamento de privatizações em estágio avançado de estudo, como a dos Correios. O maior risco que assombra a nova gestão é repetir os erros do PT no passado. É absurdo dar dinheiro a programas sem sentido que agradam a públicos restritos, em vez de zelar pela eficácia de políticas públicas universais em áreas como saúde e educação. Em seu discurso, Lula disse que “muitas vezes a gente erra porque não enxerga e ninguém avisa”. Pediu cobrança. Cobrança sem dúvida haverá, mas ele precisará manter olhos e ouvidos abertos.

Resistência ucraniana é símbolo de sucessão de vitórias da democracia

O Globo

Recepção calorosa a Zelensky nos EUA coroa ano em que extremistas e autocratas sofreram reveses

O ucraniano Volodymyr Zelensky chegou à Casa Branca vestindo o traje informal que o tornou conhecido no mundo. Recebeu acolhida calorosa do americano Joe Biden. Em discurso no Congresso, Zelensky foi enfático ao descrever a guerra na Ucrânia como uma luta contra forças autoritárias: “Venceremos porque estamos unidos — Ucrânia, Estados Unidos e todo o mundo livre”. Biden concordou: “Se ficarmos parados diante de ataques tão flagrantes à liberdade e à democracia (…), o mundo enfrentará consequências piores”.

Zelensky obteve a garantia de receber o mais moderno sistema de defesa antiaéreo americano. O objetivo imediato dos russos é danificar o aquecimento ucraniano para tornar o inverno insuportável. Depois de vários reveses, Vladimir Putin prepara nova ofensiva, esperada para a primavera. Seria ingênuo imaginar que o enfraquecimento de Putin trará fim à guerra ou a seu governo. Mas a resistência ucraniana se soma a outros embates em que a democracia tem levado a melhor sobre extremistas ou autocratas no planeta.

Lá mesmo nos Estados Unidos, as eleições de meio de mandato que o ex-presidente Donald Trump queria usar de trampolim para voltar à Casa Branca lhe trouxeram uma sucessão de derrotas. Na Alemanha, golpistas de extrema direita fracassaram numa conspiração que tentava tomar o poder. Na Itália, apesar da vitória da líder neofascista Giorgia Meloni, o governo de coalizão teve de se submeter à União Europeia, de que depende financeiramente. Na França, o presidente Emmanuel Macron derrotou Marine Le Pen, candidata da extrema direita que conquistou mais votos apenas porque abrandou o discurso, deixando de lado a xenofobia para priorizar temas econômicos como a inflação.

Na América Latina, o populismo autoritário resiste nas ditaduras de Venezuela, Nicarágua e Cuba. Mas o Peru acaba de debelar uma tentativa de golpe do presidente Pedro Castillo. E o Brasil derrotou as pretensões autoritárias do presidente Jair Bolsonaro elegendo seu maior rival, sustentado por uma ampla aliança em defesa da democracia.

Mesmo na China de Xi Jinping, onde a ditadura do Partido Comunista mantém popularidade à custa do crescimento econômico, surgiram fissuras no regime com os protestos contra a política de Covid Zero. No Irã, a teocracia enfrenta uma rebelião popular depois que a “polícia da moralidade” matou uma jovem que não trajava o véu conforme as normas draconianas dos aiatolás.

É verdade que apenas 20% da população do planeta vive em regimes tidos como “livres” pela Freedom House, e apenas 13% nos 34 países considerados “democracias liberais” pelo instituto sueco V-Dem (eram 42 há dez anos). Mas a recessão democrática, na definição feliz cunhada pelo cientista político Larry Diamond, começa enfim a dar sinais de recuar. O próprio Diamond resumiu bem a situação em declaração à revista Foreign Policy: “A febre cedeu, mas o vírus ainda está no corpo”.

Retomada em risco

Folha de S. Paulo

Visão ultrapassada e corporativismo minam a confiança antes da posse de Lula

Há —ou havia— uma oportunidade diante do novo governo. Em contraste com o atraso civilizatório generalizado da gestão que se encerra no fim deste ano, o cenário econômico transformou-se para melhor.

O crescimento mostrou ritmo além do esperado, com o PIB avançando acima dos 3%, e o emprego teve retomada vigorosa. A inflação deixou o patamar de dois dígitos e se encontra em trajetória de queda mais adiantada que a de países ricos. A dívida pública voltou ao patamar pré-pandemia.

É verdade que existia a necessidade de recompor os recursos do Orçamento para o amparo às famílias carentes. Também é fato que os preços ainda inspiram cuidados, os juros estão muito elevados e a atividade se encontra em desaceleração.

Justamente por isso, a estratégia correta seria uma intervenção prudente na despesa pública, limitada ao suficiente para assegurar a assistência social. A responsabilidade fiscal facilitaria a queda da inflação e dos juros, e a economia poderia recobrar o crescimento sustentável, crucial para a redução da pobreza.

Foi outra, porém, a escolha do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). E, não por acaso, a recuperação que se podia vislumbrar ficou nublada em menos de dois meses após o desfecho da eleição.

Os petistas, que não parecem dispostos a dividir as decisões de governo, trataram de mais que duplicar a alta recomendável do gasto já no primeiro ano de Lula e a recuperar o discurso envelhecido de 40 anos atrás contra as privatizações —como se não fosse importante estancar a sangria dos cofres públicos com as estatais ineficientes e aumentar o investimento em infraestrutura e saneamento básico.

Aí se misturam conveniências políticas, compromissos com as corporações da máquina estatal e, pior, a crença pueril de que a prosperidade só pode ser alcançada com expansão contínua do Estado.

Inícios de mandato devem ser aproveitados para as providências difíceis que renderão frutos duradouros nos anos seguintes. Do novo governo se esperam, por exemplo, uma reforma tributária procrastinada há décadas e um plano para conter a dívida pública.

Por ora, só se viu a opção pela gastança, que quando muito produzirá um impacto de curto prazo na atividade produtiva. Para, na sequência, colherem-se mais inflação, juros e endividamento, com o consequente impacto negativo no emprego.

Eleito com margem mínima de votos, Lula tem menor margem para erro. Não poderá contar com um cenário internacional favorável como o de duas décadas atrás —ao contrário, o mundo desenvolvido registra inflação inaudita, juros crescentes e a possibilidade de recessão. Tampouco a desculpa da "herança maldita" encontrará eco além das hostes petistas.

A imprudência orçamentária, infelizmente, parece fato consumado. A chamada frente ampla, que ajudou Lula a chegar novamente ao poder, deve encarar a realidade: no lugar do esperado Lula 1, Lula 3 começa repetindo os erros de Dilma Rousseff.

Respeito à urna

Folha de S. Paulo

75% rejeitam ato antidemocrático, diz Datafolha, esforço bolsonarista se frustra

Pesquisa Datafolha realizada nesta semana revela que 75% dos eleitores brasileiros declaram-se contrários aos protestos de grupos radicais bolsonaristas que irromperam em diversos pontos do país depois de confirmada a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno da eleição presidencial.

O índice de condenação aos atos antidemocráticos, que promoveram bloqueios de rodovias e acampamentos à frente de quartéis para rejeitar o resultado das urnas e clamar por uma intervenção militar, ultrapassa em muito os 51% que optaram pelo petista.

Entre os que escolheram Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno, segundo o levantamento, menos da metade (44%) dizem estar de acordo com as manifestações.

Além da rejeição a métodos e propostas políticas violentas, reflete-se nesse inequívoco repúdio o bem-vindo entendimento de que o processo eleitoral transcorreu dentro das regras democráticas, que o triunfo da oposição foi legítimo e deve ser respeitado por todos.

De fato, os inaceitáveis e persistentes esforços liderados pelo próprio presidente da República para desacreditar o processo eleitoral, difamar autoridades do Judiciário e alardear, sem provas, fraudes nas urnas eletrônicas, não prosperaram —salvo para uma minoria de frustrados com a derrota.

Mais controversos são os dados que a pesquisa traz acerca do tratamento que deve ser dado aos manifestantes. Para 56%, eles merecem ser punidos, enquanto 40% consideram que não, já que teriam o direito de expressar suas convicções, mesmo contrárias à democracia.

Nesse aspecto, as divisões entre eleitores de Bolsonaro e Lula são mais acentuadas. Enquanto 67% dos primeiros se opõem às punições, entre os que votaram no petista 81% são favoráveis.

Diante da informação de que o Judiciário tem determinado o bloqueio de perfis nas redes sociais dedicados a contestar o regime democrático com falsas alegações e a defender um golpe militar, a reação majoritária é de desaprovação: 63% não concordam com a suspensão das contas, contra 32% que se mostram a favor.

Os apoiadores de Lula dividem-se meio a meio (49% contra e 48% a favor) a respeito dessas decisões judiciais, enquanto 79% dos bolsonaristas as condenam.

Não obstante as previsíveis diferenças de opinião num país que foi às urnas dividido por aguda polarização política, é plausível ver nos números da pesquisa uma tendência predominante à aceitação dos valores democráticos.

Isso se dá tanto no que tange ao endosso do sistema eleitoral quanto na relativa cautela diante de medidas que possam parecer restritivas à liberdade de expressão.

Muro sanitário

Folha de S. Paulo

Suprema Corte dos EUA mantém medida da pandemia que barra entrada de imigrantes

Milhares de imigrantes são barrados nas fronteiras dos Estados Unidos com base em razões supostamente sanitárias, hoje menos convincentes com o arrefecimento da pandemia. A medida, chamada Título 42, refere-se a um dispositivo da Lei de Saúde Pública adotado em março de 2020 pelo ex-presidente Donald Trump.

A extinção da norma era esperada na quarta-feira (21), mas, atendendo a pedido de 19 procuradores-gerais de estados republicanos, a Suprema Corte decidiu que a restrição continuará em vigor, apesar de os órgãos de saúde pública apontarem a ausência de necessidade.

Pelo Título 42, os agentes têm respaldo legal para barrarem imigrantes de modo sumário. Outros países impuseram restrições migratórias durante a pandemia, o Brasil inclusive. Entretanto abusos têm sido documentados nos EUA, como a falta de individualização dos casos, bem como o perigo humanitário na zona fronteiriça.

A arbitrariedade da norma —expulsão em questão de horas sem possibilidade de pleitear asilo, infringindo a lei internacional— gera violações recorrentes. Ademais, pela primeira vez, o número de detidos na fronteira sudoeste do país ultrapassou a marca de 2 milhões, considerados os primeiros 11 meses do ano fiscal de 2022.

À política restritiva americana somam-se crises humanitárias e econômicas em países da região, como Venezuela, México e Nicarágua.

No último domingo (11), um contingente de cerca de mil pessoas chegou à fronteira oeste do estado do Texas, a maioria da Nicarágua. Autoridades estimam cerca de 2.000 imigrantes por dia na região.

Dadas as tensões diplomáticas entre a ditadura de Daniel Ortega e os EUA, nicaraguenses dificilmente podem ser expulsos sob o Título 42 ou mesmo repatriados. Assim, muitos são detidos ou colocados em liberdade condicional.

Embora tenha feito oposição à medida da era Trump e prometido lidar com a questão migratória, Joe Biden tem falhado nessa tarefa. Por dois anos, o governo democrata continuou a aplicar a regra de expulsão sumária e a inchar presídios, a maioria privados.

Entre embates políticos e jurídicos encontram-se migrantes em abandono institucional. Em que pese a complexidade da situação fronteiriça e a sobrecarga dos órgãos fiscalizadores, abusos contra os direitos humanos indicam que não é pela repressão pura e simples que se resolverá a questão.

Um início nada promissor

O Estado de S. Paulo.

PEC da Transição abre enorme espaço para o aumento do gasto público sem que o governo eleito tenha precisado sequer sinalizar um compromisso firme com a credibilidade fiscal

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição aprovada pela Câmara atestou a manutenção da relação disfuncional criada pelo presidente Jair Bolsonaro para aprovar projetos de interesse no Congresso. O texto final não foi nem o que Lula da Silva queria nem o que o Legislativo desejava, mas abriu um enorme espaço para o aumento do gasto público sem que o governo eleito tenha precisado sequer sinalizar um compromisso firme com a credibilidade fiscal.

A ambição inicial de Lula da Silva era obter autorização para ajustar o Orçamento de 2023, expandi-lo em quase R$ 200 bilhões e tirar o Bolsa Família do alcance do teto de gastos por quatro anos. O Congresso manteve o programa social no teto, reduziu sua vigência a um ano e restringiu as despesas a R$ 145 bilhões, com R$ 22,9 bilhões a mais para investimentos em caso de excesso de arrecadação. É muito mais do que os R$ 70 bilhões necessários para manter o piso do programa em R$ 600 e pagar o adicional de R$ 150 por criança. Para onde mais irá o restante do dinheiro?

Se quisesse, Lula da Silva poderia ter recorrido a duas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) para abandonar práticas que se tornaram praxe no governo Bolsonaro e na Câmara sob o comando de Arthur Lira (PP-AL). Além de o STF ter declarado a inconstitucionalidade das emendas de relator, o ministro Gilmar Mendes concedeu uma liminar permitindo a edição de crédito extraordinário para o pagamento das despesas do Bolsa Família, o que permitiria “incluir os pobres no Orçamento” de uma forma bem menos custosa.

Ao desperdiçar essa janela de oportunidade, o governo eleito mostrou que a PEC da Transição sempre foi a única opção e deixou claro que alternativas para assegurar a verba do programa social não passavam de blefe. Os deputados souberam cobrar seu preço e, ao final, Lula da Silva dependeu da boa vontade regimental de Lira para evitar a aprovação de um destaque do Novo, dono de uma das menores bancadas da Casa.

Assim, o presidente eleito, malgrado ter chamado o orçamento secreto de “excrescência” durante a campanha eleitoral, na prática cedeu o acesso dos parlamentares a nada menos que R$ 21 bilhões em emendas individuais no ano que vem, recursos que não podem ser bloqueados pelo Executivo e que serão divididos igualmente entre os parlamentares. Serão R$ 32,1 milhões por deputado e R$ 59 milhões por senador, a serem destinados a seus redutos eleitorais, com finalidades muitas vezes controversas e sem qualquer conexão com políticas públicas estruturadas.

Talvez o único ponto positivo da PEC tenha sido obrigar o governo eleito a parar com a procrastinação a respeito da nova âncora fiscal para substituir o esburacado teto de gastos. O novo mecanismo deverá ser proposto por lei complementar, que, embora exija menos votos que uma alteração constitucional, precisa ser aprovada até agosto. Do contrário, o Orçamento de 2024 ficará sujeito ao teto, bem como a novas e dispendiosas tratativas para driblá-lo.

Se antes os apelos pelo resgate da credibilidade fiscal estavam restritos aos investidores, agora é o governo eleito que terá de ter pressa para sair da armadilha em que se meteu. Findas as novelas da PEC e do Orçamento, Lula da Silva terá de montar uma sólida base parlamentar para aprovar a nova âncora. Espera-se que ela de fato seja “boa, consistente e viável”, como disse o futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, até porque a PEC da Transição custou muito caro e, já de saída, elevou o nível de gastos públicos, inclusive os obrigatórios.

De nada adianta uma âncora rígida, como o teto, ou simbólica, como a meta de superávit primário, quando a premissa não é cumpri-la, mas criar formas de desviar de seus limites para aumentar as despesas públicas. Ações valem mais que palavras e, como sinalização de futuro, a PEC da Transição é um início ruim. Mas a relutância em definir a âncora demonstra que nem no discurso sobre a responsabilidade fiscal o governo eleito tem se esforçado.

A vez da educação básica

O Estado de S. Paulo.

Experiência bem-sucedida da futura equipe do MEC no Ceará indica intenção de privilegiar o ensino básico. Já não era sem tempo, pois sem crianças bem formadas não há progresso

O ex-governador do Ceará e senador eleito Camilo Santana (PT) será anunciado como ministro da Educação do futuro governo de Lula da Silva. A atual governadora cearense, Izolda Cela (sem partido), que também estava cotada para o cargo, comandará a Secretaria de Educação Básica. Com a nomeação de ambos, a ideia parece ser a de levar para o Ministério da Educação (MEC) a bem-sucedida experiência cearense na área do ensino básico. Se a intenção se traduzir em medidas práticas, será um passo dado na direção certa, considerando que o Ceará é referência nacional na alfabetização de crianças e na melhoria dos índices de aprendizagem.

Este jornal defende que se priorize a educação básica, pois sem crianças bem formadas, na idade certa, não se constituem cidadãos capazes de participar do desenvolvimento nem da vida política do País. De nada adianta construir dezenas de universidades federais nem colocar “a filha da empregada” e “o filho do pedreiro” no ensino superior, como os petistas se jactam de ter feito, se esses mesmos estudantes, por não terem tido formação básica adequada, terão imensas dificuldades para concluir o curso a contento e para desempenhar sua profissão em sua plenitude. Ou seja, não se constrói a casa do desenvolvimento do País começando pelo teto.

A educação básica está sendo negligenciada há muito tempo – decerto porque, entre outras razões, crianças não votam. O resultado disso é claríssimo nas avaliações oficiais. Como registramos aqui há poucos dias (ver o editorial O País reprovado em matemática, 19/12/2022), apenas 5% dos concluintes do ensino médio em escolas públicas demonstraram níveis adequados de aprendizagem de matemática em 2021, no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) do MEC. Vale dizer que esses índices são similares aos registrados em 2019 e 2017, isto é, antes da pandemia de covid-19. Portanto, o problema é estrutural.

Não são apenas os testes de larga escala que retratam índices baixíssimos de aprendizagem. Essa também é uma percepção generalizada no setor produtivo. Diante da escassez de mão de obra qualificada, empresas acabam assumindo para si a tarefa de formar seus trabalhadores, quando não são obrigadas a recorrer à mão de obra estrangeira.

Mudar a realidade educacional, portanto, é tarefa urgente. Da futura equipe do MEC, espera-se a priorização de ações que já tenham se mostrado efetivas em Estados e municípios, caso do ensino em tempo integral. O País dispõe de um bom repertório de iniciativas locais que devem ser ampliadas. Tome-se, a propósito, o caso do Ceará: o apoio que a rede estadual presta às prefeituras, no tocante à formação de professores, à avaliação dos alunos e à produção de material didático, é um bom exemplo de como deve ser o pacto federativo. Parece ser uma boa ideia replicar essa lógica a partir do MEC, estabelecendo uma rede de cooperação técnica com Estados e municípios.

Priorizar a educação básica não implica deixar de lado o ensino superior, como podem sugerir visões mais apressadas. Todos têm a ganhar com a melhoria da aprendizagem de crianças e adolescentes. De um lado, as universidades formam os professores de ensino fundamental e médio; de outro, as escolas de educação básica preparam os futuros universitários.

Que ninguém se iluda, porém. Vários governos, de diferentes agendas ideológicas, prometeram priorizar a educação básica nos últimos tempos. O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, venceu a eleição em 2018 garantindo que o País daria “um salto de qualidade na educação, com ênfase na infantil, básica e técnica”. A petista Dilma Rousseff começou seu segundo mandato, em 2015, sob o slogan “Brasil, Pátria Educadora”, garantindo que haveria acesso universal “à educação de qualidade em todos os níveis, da creche à pós-graduação”. Como se sabe, pouco disso saiu do terreno das boas intenções.

Para piorar, a inoperância do MEC sob Bolsonaro criou uma espécie de armadilha: de tão ruim, qualquer avanço que a futura equipe conseguir já deixará a sensação de dever cumprido. Tremendo equívoco. Na educação, não bastarão “revogaços” nem boas intenções. O País precisa investir pesadamente na educação básica, e já.

Um encontro ousado

O Estado de S. Paulo.

Corajosa visita de Zelenski aos Estados Unidos reforça laços e mostra que Vladimir Putin terá trabalho

A visita do presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, a Washington durou poucas horas, mas teve um tremendo valor simbólico. Zelenski agradeceu ao principal apoiador de seu povo, e a recepção na Casa Branca e no Congresso fortaleceram esse apoio. “Estaremos ao seu lado pelo tempo que for necessário”, disse o presidente Joe Biden. “O que vocês estão fazendo, o que conquistaram, importa não só para a Ucrânia, mas para todo o mundo.”

De fato, basta pensar o que teria acontecido se o autocrata russo Vladimir Putin tivesse logrado seu intento. As forças russas ocupariam quase toda a Ucrânia e estariam nas fronteiras dos países da Otan. Moldávia, Geórgia e Estados Bálticos estariam na mira. A Otan estaria tensionada acerca da resposta a essas agressões. Putin teria mais alavancas para ampliar suas chantagens sobre a Europa. A China se sentiria encorajada a avançar suas ambições sobre Taiwan e os déspotas do mundo, a acreditar que o crime compensa.

Mas Putin superestimou suas forças e subestimou as forças ucranianas e a disposição ocidental. “Dez meses depois, o povo, as Forças Armadas e as lideranças ucranianas continuam a defender sua pátria com habilidade, coragem e determinação que inspiraram o mundo”, disse o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg. “Putin pensou que poderia nos dividir e dissuadir de apoiar a Ucrânia.” Ele queria menos Otan, e acabou com uma Otan “maior e mais forte”.

Mas o fracasso de Putin não significa que ele não tenha infligido danos. Mais de um quarto da população ucraniana entra no inverno sem energia. Milhões fugiram e muitos, incluindo crianças, foram deportados à força para a Rússia. Relatos de estupros, tortura e execuções se multiplicam.

Os EUA já deram US$ 22 bilhões à Ucrânia e devem dar mais US$ 45 bilhões. O arsenal prometido por Biden inclui mísseis Patriot decisivos para frustrar a estratégia de Putin de disseminar o pânico com ataques aéreos a civis e usinas de energia.

Se em tempos de paz é preciso se preparar para a guerra, em tempos de guerra é preciso se preparar para a paz. O ideal seria um cessar-fogo em que a Rússia recuasse às linhas anteriores a 24 de fevereiro. Em contrapartida, as populações dos territórios sob disputa, em paz e liberdade garantidas por forças internacionais, poderiam determinar seu destino via referendos. Sem deslegitimar os direitos de reparação da Ucrânia e as investigações dos crimes de guerra, a diplomacia do Ocidente precisará frear os ímpetos de lideranças que gostariam de ver a Rússia desmantelada e de joelhos. O colapso de uma superpotência nuclear só abrirá as portas para o caos.

A diplomacia é o caminho ideal. Infelizmente, Putin não mostra disposição de flexibilizar suas exigências maximalistas. Na prática, o caminho é seguir infligindo o mais rápido possível o máximo de perdas às forças e à economia russa. Moralmente, esta é uma guerra que Putin não deve ganhar. Mas, se não há esperança de induzi-lo a reconhecer isso, ao menos as pressões militares da Ucrânia e econômicas do Ocidente podem forçá-lo a reconhecer que essa é uma guerra que ele não pode ganhar. 

Criptoativos no radar dos reguladores, finalmente

Valor Econômico

Dada a dimensão do novo mercado é difícil não haver contágio do sistema financeiro tradicional

Esquentou nas últimas semanas o debate a respeito da regulamentação dos criptoativos. No início de dezembro, o ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) Marcelo Trindade endossou a posição dos que avaliam que regular o investimento em criptomoedas seja um equívoco. “As empresas não se financiam naquelas moedas e o sistema de crédito não depende de suas emissões. A economia popular aplicada nesses investimentos deve ser fiscalizada e protegida individualmente, e não com os impostos dos que decidiram não participar das apostas”, escreveu no Valor (1/12).

O artigo de Trindade expõe ainda a posição dos professores americanos Stephen Cecchetti e Kim Schoenholtz, que avaliam no “Financial Times” (17/11) que a regulação dos criptoativos conferiria legitimidade a esse mercado, que não oferece risco para a estabilidade financeira.

Alguns dias depois, outro ex-presidente da CVM, Marcelo Barbosa, também pôs em dúvida a necessidade de regulação dos ativos digitais em entrevista ao Valor, argumentando que, se houver alguma oferta com “cara de valor mobiliário” ela receberia o tratamento dado a outros valores mobiliários.

Jairo Saddi entrou no debate em sua coluna mensal no Valor (12/12). Saddi defendeu que a “regulação é fundamental na inovação, exatamente para estabelecer os limites que a selvageria não consegue impor”. Alertou que, além das criptomoedas, inclusive das moedas digitais dos banco centrais, as CBDC, a tokenização pode apresentar riscos sistêmicos, quando utilizada na negociação de títulos mobiliários.

Trindade voltou ao tema na semana passada e levantou um ponto interessante ao avaliar que a regulamentação poderia dar às criptomoedas um tratamento privilegiado em comparação com o dispensado a moedas estrangeiras e ao ouro, cujo curso é limitado.

O debate entre autoridades do mercado financeiro é instigante, apaixonado e educativo, mas pode ter chegado um pouco tarde. Uma legislação local a respeito dos criptoativos começa a ganhar forma. No fim de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou o Marco Legal dos Criptoativos (PL 4401/2021), sancionada ontem. Os detalhes serão definidos pelo órgão regulador a ser indicado.

Alguns problemas, como a ausência de segregação patrimonial entre investidores e exchanges, são notórios. O texto também não trata de valores mobiliários tokenizados, atribuição que deve ficar a cargo da CVM. Em outubro, a CVM divulgou Parecer de Orientação sobre criptoativos e o mercado de valores mobiliários, consolidando o entendimento de eventuais normas aplicáveis e de sua atuação.

No mercado internacional, as autoridades correm para recuperar a dianteira assumida pelo mercado. Consulta pública sobre regulamentação internacional para os criptoativos circula há dois meses por iniciativa do Financial Stability Board (FSB). Zeloso de sua missão de cuidar da estabilidade financeira global, o FSB argumentou que a crescente conexão entre os mercados financeiros tradicionais e os criptoativos deve ser monitorada para evitar ameaça à estabilidade financeira; e fala até em uma stablecoin global.

Ainda nesta semana o Bank for International Settlements (BIS) estabeleceu padrões prudenciais globais para a exposição dos bancos a criptoativos, com requisitos de capital como os exigidos de qualquer ativo financeiro. De acordo com um relatório do BIS publicado em junho, cerca de 90% dos bancos centrais estão considerando a adoção de CBDCs.

O que contribuiu para despertar as autoridades, 14 anos após o surgimento do blockchain e do bitcoin, parece ter sido a quebra da Exchange FTX que, embora tenha sido mais um caso de fraude, como disse Saddi, deixou 1 milhão de credores. Antes dela houve o colapso do projeto Terra/Luna, que zerou seu valor. No Brasil são vários os casos de fraudes com faraós, sheiks e outras alegorias do bitcoin. Dada a dimensão do novo mercado é difícil não haver contágio do sistema financeiro tradicional. Daí a preocupação com o negócio. Afinal, o volume investido em criptomoedas no país já é grandioso.

Estudo feito pela Accenture calcula que 6 milhões de brasileiros investem em criptomoedas, o equivalente a 3% da população e mais do que os 5 milhões de CPFs cadastrados na B3. Ainda de acordo com a Accenture, as criptomoedas em posse dos brasileiros somavam R$ 270 bilhões em abril de 2022, o equivalente a 3% do PIB nacional, o que dá R$ 45 mil por pessoa, sem contar que parcela dos recursos são movimentados em exchanges no exterior e podem ficar fora do radar.

2 comentários:

Anônimo disse...

"Risco para novo governo é repetir erros do passado
O Globo"

Claro. Repetir erros é sempre ruim. O problema é definir erro. Eu, por exemplo, não chamo de PEC DA gastança como a imprensa faz, chamo de PEC da cidadania. As vezes, o q é erro pros Marinho da Globo, é acerto pra mim.

Anônimo disse...

"Folha de S. Paulo
Visão ultrapassada e corporativismo minam a confiança antes da posse de Lula"

Rá, ultrapassada fica por conta da falha de São Paulo. Normalmente as demandas são corporativas, e as opiniões da falha não são exceções. Folha, admita seu corporativismo.