Instituições têm de punir os golpistas infiltrados no Estado
O Globo
Parlamentares, policiais e militares
envolvidos no 8 de janeiro não devem ser protegidos por corporativismo
Não há dúvida de que os Poderes da
República reagiram com rapidez, firmeza e união aos ataques golpistas
perpetrados por apoiadores do ex-presidente Jair
Bolsonaro em Brasília no dia 8 de janeiro. Mas a necessária
condenação ao terrorismo é o mínimo que se espera das autoridades. É preciso ir
além do simples repúdio traduzido em frases de efeito. É fundamental agir para
que barbárie semelhante não se repita nem se propague, investigando e punindo
não só seus executores, mas também seus financiadores, autores intelectuais e
incentivadores. Em particular aqueles que, detentores de mandatos populares
conquistados nas urnas, usam as redes sociais para chancelar vândalos que
conspiram contra a democracia.
No Congresso Nacional, uma das instituições depredadas pelos golpistas durante a infâmia brasiliense, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), deram demonstrações inequívocas no apoio à democracia. Precisam agora dizer o que farão em relação aos parlamentares que desonram a Casa com acenos aos vândalos ou disseminam mentiras que confundem a opinião pública e fazem o jogo do golpismo.
Ao menos três parlamentares são alvos da
Procuradoria-Geral da República (PGR),
acusados de incentivar os atos golpistas: os deputados federais eleitos
Clarissa Tércio (PP-PE), André Fernandes (PL-CE) e Silvia Waiãpi (PL-AP). A
julgar pelas postagens nas redes sociais e discursos, a lista de investigados
deveria ser maior. Os deputados Gustavo Gayer (PL-GO) e Bia Kicis (PL-DF)
disseminaram mentiras sobre as medidas contra os vândalos. Gayer insinuou em
mensagem que havia crianças presas — a informação era falsa. Kicis usou a
tribuna da Câmara para propagar uma mentira grotesca que viralizou na internet,
sobre a morte de uma idosa sob custódia da Polícia Federal — fato que nunca
existiu.
Da mesma forma, Forças Armadas, PMs e
Bombeiros precisam punir com rigor seus integrantes que participaram de um dos
mais repugnantes episódios da História do Brasil. Reportagem do GLOBO mostrou
que pelo menos 15 militares, da ativa e da reserva, estão envolvidos de alguma
maneira nos atos golpistas. Para instituições de Estado que não devem se
submeter a motivação política ou ideológica, é inadmissível dar guarida a
criminosos que se escondem sob a proteção da farda. Não será difícil
identificar os suspeitos. Há fartura de imagens de câmeras de segurança e
postagens nas redes com flagrantes dos crimes cometidos contra a República.
Por mais difícil que seja romper com o
corporativismo que costuma imperar nesses casos, o Congresso e as forças de
segurança precisam investigar e punir todos os envolvidos no golpismo. É
verdade que congressistas têm imunidade, mas ela não pode ser um salvo-conduto
para disseminar mentiras com o objetivo de proteger criminosos e sabotar as
instituições.
Não é aceitável que parlamentares eleitos
de forma democrática tentem destruir a democracia. Ao mesmo tempo, as forças de
segurança têm de cumprir seu papel constitucional e não podem permitir que uma
minoria ponha em risco sua imagem e sua atuação. Não pode prevalecer o
corporativismo diante de fatos tão graves. O país precisa voltar urgentemente à
normalidade, e a sociedade não pode ficar refém de golpistas infiltrados no
próprio Estado.
Gasto com cartão corporativo da Presidência
exige mais transparência
O Globo
Despesa de Bolsonaro foi menor que a dos
antecessores, mesmo assim ele ainda deve explicações
Os Cartões de Pagamento do Governo Federal
(CPGF) foram criados em 2001, no segundo mandato de Fernando
Henrique Cardoso, para modernizar o controle das despesas inerentes
a cargos de autoridade, numa cópia do que grandes empresas faziam há tempos com
seus diretores. Antes o reembolso era feito mediante apresentação de nota
fiscal, método sempre sujeito a fraudes. Desde então, a divulgação de despesas
com os cartões de crédito da Presidência tem repercussão garantida, derivada da
curiosidade natural despertada por despesas triviais — como alimentos ou
hospedagem —, necessárias à manutenção do cotidiano presidencial.
A primeira vítima da publicidade dos
cartões foram justamente FH e a primeira-dama Ruth Cardoso, em razão de
despesas com hotéis de luxo. No segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, o então ministro do Esporte, Orlando Silva, ganhou manchetes por ter de
reembolsar a União por R$ 8,3 pagos com o cartão oficial por uma tapioca.
Aproveitou e ressarciu os cofres públicos em R$ 34.378,36, gastos entre 2006 e
2007. Negociou e pagou em três parcelas. Em fevereiro de 2008, a oposição
conseguiu apoio para instaurar uma CPI dos Cartões Corporativos, que não
resultou em nada.
Tal retrospecto provavelmente levou o
ex-presidente Jair
Bolsonaro a manter o sigilo sobre seus gastos com o cartão
corporativo da Presidência. Foi necessário que a agência de dados Fique Sabendo
acionasse a Lei de Acesso à Informação (LAI) para que a Secretaria da
Presidência da República enfim divulgasse essas informações, já no início do
novo governo.
Ficamos então sabendo nos últimos dias que
Bolsonaro foi quem realizou menos gastos com o cartão corporativo presidencial,
na comparação com os antecessores: R$ 31,5 milhões nos quatro anos de governo,
em valores corrigidos pela inflação. As despesas realizadas no primeiro
governo Dilma
Rousseff chegaram a R$ 43 milhões. No segundo mandato de Lula,
foram de R$ 48,5 milhões, e no primeiro, de R$ 60 milhões.
Isso não impede que alguns gastos de
Bolsonaro tenham chamado a atenção. Em 26 de maio de 2019, um domingo, ele
sacou o cartão presidencial para pagar na Padaria Santa Marta, em Copacabana,
uma conta que hoje seria de R$ 68.900. Era o dia seguinte ao casamento de seu
filho Eduardo, o Zero Dois. O presidente e a família estavam no Rio para a
festa.
As informações são sempre sujeitas a uso político, mas isso não é motivo para não divulgá-las. É essencial que o contribuinte tome conhecimento em detalhes do destino dado ao dinheiro dos impostos que paga. Deveria ser compulsória a divulgação periódica dos extratos desses cartões, que também permitem saques em caixas eletrônicos. A vigilância da opinião pública ajudaria a conter excessos, e Bolsonaro não se veria na posição desconfortável de, como seus antecessores, ter de explicar gastos aparentemente sem nenhum cabimento.
Rumos da Fiesp
Folha de S. Paulo
Política gera troca de comando na entidade,
ligada a anacronismo corporativista
A Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo é uma associação de sindicatos patronais do ramo. Nesse aspecto, seria
apenas uma organização privada de representação de seus interesses. Suas
intervenções no debate público valeriam, como quaisquer outras, pela qualidade
de suas propostas ou da aceitação de seu lobby, legítimo.
A Fiesp, porém, tem quase desde seus
primórdios um caráter paraestatal —uma das entidades de representação
corporativista desenvolvida na era Getúlio Vargas.
Parte de seus fundos, que financiam
atividades de relevância social, ainda é dinheiro arrecadado pela Receita
Federal para o chamado Sistema S, instituído por lei.
O peso econômico da indústria paulista de
fato conferiu ainda mais força política à Fiesp, ao menos até os anos 1980. A
relativa decadência do setor e o aumento da complexidade socioeconômica do país
deslocaram a entidade do centro do poder nacional.
A federação decerto ainda frequenta o
noticiário político. Não raro, porém, aparece como instituição partidarizada
ou sujeita, nos
últimos anos, a interesses de seu presidente de 2004 a 2021, Paulo Skaf,
e abalada por querelas.
Três vezes candidato ao governo do estado,
Skaf fez uso da Fiesp e de serviços como Sesi e Senai a fim de reforçar sua
candidatura.
Em 2022, já sob o comando de Josué Gomes, a
entidade assinou um manifesto pela democracia, em reação às ameaças golpistas
de Jair Bolsonaro (PL). A iniciativa dividiu a entidade. Sindicatos patronais
começaram a contestar a gestão de Gomes —para seus críticos, muito próximo do
hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A tensão
político-partidária provocou o movimento que o destituiu do cargo, nesta semana,
medida ainda contestada.
Desde que cumpridas as leis, decisões e
rusgas internas da federação sindical não dizem respeito ao público em geral. O
episódio faz lembrar, entretanto, que a Fiesp —ou mais precisamente as
organizações administradas do Sistema S— se vale de fundos parafiscais, o que
constitui uma distorção.
Os sindicatos patronais ou quaisquer outros
devem cuidar de si, como representantes de interesses privados que são, e
financiar a si próprios, sem intervenções ou conexões estatais. Cumpre superar,
de modo gradual, esse anacronismo corporativista.
Será necessário definir, ao longo do
processo, o que fazer dos serviços sociais, culturais e educativos do Sistema
S, uma reforma que muito tarda, e de certo modo mais uma forma de privatização.
Agora em Israel
Folha de S. Paulo
Reforma do Judiciário de Netanyahu é
temerária e pode minar bases democráticas
O processo de erosão democrática é único em
cada país, mas o final é sempre o mesmo: líderes eleitos minam as instituições
encarregadas de controlá-los e passam a exercer o poder de forma concentrada.
Em alguns casos, o chega-se à ditadura
plena, como Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela; em outros, resulta num
regime iliberal mas ainda não totalmente ditatorial, como a Hungria de Viktor
Orbán e a Turquia de Recep Erdogan.
Israel, considerada a única democracia do
Oriente Médio, parece trilhar o caminho iliberal. A reforma do Judiciário
proposta pela coalizão de governo liderada pelo premiê Binyamin Netanyahu, se
aprovada, minará
substancialmente os poderes da Suprema Corte, produzindo uma grave lesão no
sistema de freios e contrapesos.
A reforma tem dois eixos. Pelo primeiro, o
Parlamento ganha poderes para, por maioria simples, anular decisões da Suprema
Corte acerca da constitucionalidade de legislações, a menos que elas sejam
tomadas pela unanimidade dos 15 juízes —o que é uma impossibilidade prática
numa sociedade dividida como a israelense.
Pelo segundo, alteram-se as regras de
nomeação de novos magistrados, ampliando as indicações de políticos
governistas.
Consideradas isoladamente e de forma
abstrata, essas medidas não seriam absurdas. Alguns países, em geral
pertencentes ao Commonwealth, adotam a doutrina da soberania do Parlamento,
limitando a possibilidade de revisão judicial de leis. Já em nações como Brasil
e EUA, as indicações políticas de magistrados da Suprema Corte chegam à notável
marca dos 100%.
Porém no contexto institucional israelense,
em que a Suprema Corte desempenha papel ativo de controle do governo, essas
medidas representariam um golpe contra o equilíbrio dos Poderes.
Não à toa, cerca de 80
mil israelenses, de variadas correntes ideológicas, foram às ruas de Tel Aviv no
último sábado (14) para manifestar oposição ao projeto.
Netanyahu, ademais, enfrenta três processos
por corrupção. As novas regras, se aprovadas, não o beneficiam diretamente, mas
acredita-se que possam ser usadas para tal propósito dada a instabilidade de
poder do primeiro ministro.
Nos últimos quatro anos, Israel realizou cinco eleições. Quatro delas resultaram em maiorias muito precárias. Na última, aliando-se a pequenos partidos de extrema direita e ultrarreligiosos, Netanyahu conseguiu reunir uma maioria um pouco menos volúvel, que lhe permitiu voltar ao poder do qual nunca se afasta por muito tempo.
O STF e a democracia inabalada
O Estado de S. Paulo.
É preciso reconstruir o edifício do Supremo
Tribunal Federal e reafirmar sua autoridade.
A sede do Supremo Tribunal Federal (STF)
foi o prédio mais atacado pela barbárie de 8 de janeiro. Os golpistas quebraram
vidros, móveis e antiguidades, além de terem depredado vários ambientes e
instalações. Ao assegurar a imediata reconstrução da sede do STF, a presidente
do Supremo, ministra Rosa Weber, lembrou que o edifício é “patrimônio histórico
dos brasileiros e da humanidade” e “símbolo do Poder Judiciário, um dos três
pilares da democracia constitucional brasileira”.
A resposta do STF aos atos de 8 de janeiro,
disse Rosa Weber, “passa também por difundir a mensagem de que esta Suprema
Corte, assim como a defesa que a instituição faz da democracia e do Estado de
Direito, seguem inabaláveis”. Nesse sentido, o Supremo lançou, no dia 17, a
campanha Democracia Inabalada, que inclui vídeos na TV e publicações nas redes
sociais. Segundo o tribunal, o objetivo é “chamar a atenção para o lamentável
episódio, para que ele nunca seja esquecido e nem se repita, e destacar que a
democracia e a Suprema Corte saem fortalecidas desses acontecimentos”.
Trata-se de iniciativa muito oportuna. É
preciso comunicar a importância do STF para a democracia brasileira. Não há
Estado Democrático de Direito sem uma Corte Constitucional independente. Não há
proteção a direitos e garantias individuais sem um Judiciário forte e autônomo.
Covardemente atacado no dia 8 de janeiro, o
STF vem sendo vandalizado há anos por ameaças e ataques a seus ministros e à
Corte. Vale lembrar que não é apenas quebrando vidraças ou destruindo móveis
que se ataca o STF. Nos últimos quatro anos, o bolsonarismo afrontou e
enfrentou de forma reiterada a Corte e seus ministros, com ameaças, insinuações
e muitíssima desinformação.
Tanto é assim que, em março de 2019, o
então presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, se viu obrigado a
determinar a abertura de um inquérito, com base no art. 43 do Regimento Interno
do STF, a respeito de “notícias fraudulentas (...), denunciações caluniosas,
ameaças e infrações revestidas de ânimo caluniante, difamante e injuriante que
atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo, de seus membros e de
familiares”, precisamente para proteger as prerrogativas do tribunal.
Ironicamente, os atos de 8 de janeiro explicitaram, com luzes novas e
aterrorizantes, a plena legalidade do inquérito, repetidamente questionada pelos
bolsonaristas. Os ataques e ameaças ao Supremo não eram uma invenção, como
também não eram um singelo exercício da liberdade de expressão. Eram atos
criminosos com o objetivo de vandalizar o STF, deslegitimando-o aos olhos dos
cidadãos.
Depois de quatro anos de desinformação
contra o Supremo, é necessário reconstruir a imagem pública da Corte
Constitucional. É necessário reunir novamente a população em torno da Corte
Constitucional, que é aliada, e não inimiga, dos direitos e liberdades
individuais. As gravações com os atos de vandalismo dentro da sede do STF podem
ajudar nessa tarefa, revelando a grande falácia do bolsonarismo, com sua
pretensa defesa da liberdade. Os golpistas atacam o Supremo porque querem impor
sua vontade sobre os demais e sobre a própria lei. Não almejam a liberdade, mas
a barbárie.
A campanha Democracia Inabalada vem,
portanto, em boa hora. Ao explicitar que a reconstrução do STF é muito mais do
que reerguer um edifício, ela também é alerta para todos os ministros da Corte.
Há um longo trabalho de resgate da legitimidade e do prestígio do STF perante a
sociedade, trabalho este que é alicerçado por decisões técnicas e
fundamentadas, rigorosamente contidas dentro dos limites de competência da
Corte. Essa contenção é fundamental para preservar a autoridade do STF ao longo
do tempo. O Judiciário aplica a lei. No caso, o Supremo defende e aplica a
Constituição, que é extensa e aborda inúmeros temas. De toda forma, isso não
autoriza o STF a tomar o espaço da política ou a abraçar atribuições funcionais
que não lhe competem.
O País precisa do Supremo. É urgente
reconstruir seu edifício e reafirmar sua autoridade. E que os golpistas,
executores e mandantes, sejam punidos.
A reforma tributária ‘neutra’ de Haddad
O Estado de S. Paulo.
Manter a carga tributária, reduzir o
déficit primário e conter a trajetória da dívida são objetivos incompatíveis
com a realidade fiscal brasileira. É hora de o governo apresentar sua agenda
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
disse que a aprovação de uma reforma tributária neutra é uma das prioridades do
primeiro ano de governo do presidente Lula da Silva. “Se a reforma não for
neutra, alguém vai perder, e a gente quer que todos ganhem”, disse ele no Fórum
Econômico Mundial em Davos, na Suíça. A disposição do ministro para defender
uma reforma tributária já nos primeiros dias no cargo não deixa de ser
positiva, mas chegou o momento de detalhar a agenda econômica que pretende de
fato apoiar.
O sistema tributário nacional tem inúmeros
defeitos. É complexo, fragmentado, cumulativo, regressivo, injusto e desigual.
Cobra mais dos mais pobres, onera o consumo em detrimento da renda e do
patrimônio, não estimula a eficiência e a produtividade, favorece o litígio,
limita investimentos, encarece exportações, estimula a guerra fiscal e impede o
crescimento econômico. A existência de múltiplas alíquotas, benefícios fiscais
e regimes simplificados reduz a arrecadação, aumenta o déficit da Previdência e
não se reverte em empregos formais.
São tantos, tão conhecidos e tão antigos,
os problemas do sistema tributário quanto a resistência para enfrentálos.
Afinal, são muitos os setores que se beneficiam dessas distorções, todos muito
bem representados no Congresso. A essas velhas dificuldades é preciso somar as
desonerações sem critério distribuídas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no
auge da campanha eleitoral, ainda pendentes de reversão.
As reformas tributárias que já estão no
Congresso – as Propostas de Emenda à Constituição (PECS) 45/2019 e a 110/2019 –
vão na direção correta ao unificar tributos federais, estaduais e municipais
sobre bens e serviços. Aprovar essa etapa é importante, mas insuficiente para
resolver um problema bem mais amplo e que diz respeito ao tamanho do Estado
brasileiro.
Aprovar uma reforma tributária neutra
significaria manter a carga no mesmo patamar em que ela está – 33,90% do
Produto Interno Bruto (PIB) em 2021. Cobrar mais dos mais ricos e menos dos
mais pobres, como defende Haddad, é um objetivo mais do que justo, mas não
resolverá o problema do déficit primário que o ministro diz querer enfrentar. O
País gasta mais do que arrecada consistentemente desde 2014. Um crescimento
econômico mais vigoroso poderia elevar a arrecadação, mas as projeções do
mercado mais recentes não inspiram otimismo nessa seara.
Se a intenção é manter a carga pela ótica
das receitas, não se pode dizer o mesmo do lado da despesa. Com a Proposta de
Emenda à Constituição da Transição, o governo conseguiu autorizar gastos muito
além do nível necessário para recompor despesas com programas sociais,
ampliando o déficit primário previsto para R$ 231,5 bilhões – ou 2,3% do
Produto Interno Bruto. Reduzi-lo a 1% do PIB, meta que Haddad assumiu, não será
possível somente com o plano que o ministro anunciou na semana passada, muito
mais pautado na recuperação de receitas do que na redução de gastos.
Estabilizar a trajetória de crescimento da
dívida pública, outro dos objetivos mencionados por Haddad, tampouco será
possível com uma reforma tributária neutra sob o ponto de vista da arrecadação.
Se a ideia é impedir que a dívida supere a proporção de 80% do PIB, é preciso
gerar superávits primários para pagar, ao menos, seus juros. Qualquer
deterioração no ambiente externo tem o potencial de desvalorizar o câmbio,
pressionar a inflação e levar o Banco Central a elevar ainda mais a Selic,
ampliando o endividamento.
Fica muito claro que manter a carga
tributária no nível em que está, reduzir o déficit primário e estabilizar a trajetória
da dívida são objetivos incompatíveis com a realidade fiscal brasileira. E,
diante da histórica rejeição dos governos petistas a reformas estruturais que
revejam a estrutura do gasto público, tudo indica que o ajuste virá do lado da
receita, o que reforça a impressão de que a reforma tributária de Haddad poderá
ser tudo, menos neutra. É, portanto, hora de o governo apresentar claramente
sua agenda econômica, opaca desde a campanha.
Com teto e com dignidade
O Estado de S. Paulo.
Prefeitura acerta ao investir em casas modulares
para sem-teto, mas iniciativa deve ser só o começo
AVila Reencontro, parte do Programa
Reencontro, é um passo inicial importante adotado pela Prefeitura de São Paulo
para dar condições de vida minimamente dignas aos sem-teto que se espalham pela
cidade. Formada por casas modulares de 18 metros quadrados, a iniciativa
representa um avanço em relação aos tradicionais abrigos. Entre outras
vantagens, assegura um endereço fixo para correspondência – o que pode fazer
toda a diferença para quem procura emprego. O aumento da população em situação
de rua na capital, claro, requer outras providências por parte da administração
municipal. Mas o modelo da Vila Reencontro caminha na direção certa.
Como noticiou o Estadão, o projeto é
inspirado no conceito de Housing First (moradia primeiro), que orienta ações em
países como Estados Unidos, Espanha, Canadá, Japão e França. A proposta
consiste em priorizar a oferta de moradia, encarada como porta de entrada para
a efetivação de direitos nas áreas de educação, saúde e trabalho, entre outras.
De fato, um erro frequente em políticas públicas destinadas à população de rua
é a sua incapacidade de articular iniciativas em diversas frentes – e a longo
prazo. Faz sentido, então, dar ênfase à habitação digna, na medida em que isso
pode levar a outros avanços.
A primeira Vila Reencontro foi inaugurada
em dezembro, no Canindé. São 40 residências para famílias com crianças, com
limite de quatro pessoas e prazo de permanência de dois anos. Cada unidade
conta com banheiro, pia, cama, geladeira, fogão de duas bocas e guarda-roupa,
além de Wi-fi e espaço coletivo para as crianças brincarem. A Prefeitura prevê
entregar 2 mil casas até o fim do ano. Trata-se, evidentemente, de um passo à
frente em relação aos abrigos.
Como toda política pública, o modelo é
passível de aperfeiçoamento. Fará bem a Prefeitura se ouvir as recomendações de
especialistas. É o caso, por exemplo, da proibição à entrada de visitantes.
Entende-se que haja regras de convívio e que o acesso dos residentes se dê
mediante identificação na portaria. A impossibilidade de receber visitas, no
entanto, vai contra o princípio que parece guiar o projeto, isto é, de que as
famílias acolhidas se sintam em casa.
Nessa linha, o padre Júlio Lancellotti,
coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, chamou a
atenção para a necessidade de maior autonomia dos moradores. A Vila Reencontro
conta com uma administradora e um refeitório onde é servida a alimentação
diária. Por óbvio, a preocupação em fornecer comida é bem-vinda. O ponto
levantado pelo padre Lancellotti, no entanto, diz respeito à “tutela” que um
“espaço institucional” acaba exercendo. Sem dúvida, o desejável é que o amparo
às famílias tenha o objetivo também de fortalecer sua autonomia − inclusive
para que, no futuro, possam depender menos da ajuda estatal. Eventuais ajustes
não diminuem em nada o mérito da iniciativa, que representa um passo importante
para acolher com dignidade uma parcela dos sem-teto em São Paulo.l
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