quinta-feira, 17 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Governo e PT erram ao tentar politizar apagão

O Globo

Só apuração técnica consistente das causas pode apontar o que fazer para evitar episódios semelhantes

Ao longo da terça-feira, quando o país viveu o maior apagão desde 2009, as narrativas prevaleceram sobre os fatos. Uma questão de fundo técnico foi imediatamente politizada. A primeira-dama Janja da Silva publicou, antes de qualquer análise ou diagnóstico das causas, mensagem numa rede social pondo a culpa na privatização da Eletrobras. Líderes petistas seguiram o mesmo caminho. Até o ministro de Minas e EnergiaAlexandre Silveira, pôs a empresa na berlinda, embora tenha dito ser “leviano” apontar relação de causa e efeito entre o apagão e a privatização.

A politização abriu caminho ainda a críticas às fontes alternativas de eletricidade. Mesmo que o apagão possa ter tido origem na sobrecarga de uma usina eólica e que a energia tenha demorado mais a voltar nos estados que dependem da geração por vento ou solar, a falha técnica, rara, não é pretexto para a adoção de fontes de energia mais poluentes. O problema não está ligado às usinas em si, mas à gestão do sistema. Apenas uma apuração consistente das causas será capaz de apontar o que precisa ser corrigido para evitar episódios semelhantes.

Silveira anunciou ter pedido à Polícia Federal e à Abin abertura de investigações sobre suspeitas de sabotagem. É verdade que, depois dos ataques golpistas do 8 de Janeiro, foram registrados atentados a torres elétricas, mas por enquanto não há indício de nada do tipo. De acordo com informações preliminares, o sistema foi atingido por duas falhas simultâneas em linhas de transmissão.

Uma ocorreu no Ceará, numa linha da Chesf, subsidiária da Eletrobras, devido à sobrecarga num momento em que a geração dependia mais de usinas eólicas e solares — segundo Silveira, o evento foi de pequena magnitude e não seria capaz, sozinho, de causar o apagão. A segunda, possivelmente na subestação de Xingu, que recebe energia da hidrelétrica de Belo Monte. As panes provocaram efeito cascata. O Esquema Regional de Alívio de Carga (Erac), usado como proteção, cortou o fornecimento para evitar sobrecarga e maiores danos aos equipamentos.

O apagão afetou, em maior ou menor escala, 26 das 27 unidades da Federação (apenas Roraima, desconectada da rede nacional, não foi atingido). Quase 15% da população — 29 milhões — ficaram sem luz nalgum momento entre 8h31 e 14h49, quando a energia foi restabelecida por completo. Até agora, não há explicação convincente. “Não é normal levar esse tempo todo para dar uma explicação”, afirma Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). “O Operador Nacional do Sistema (ONS) sabe em tempo real onde ocorreu a falha. Chamou a atenção na entrevista do ministro não haver ninguém do ONS.”

Enquanto a oposição aproveita o apagão para criticar a gestão do setor elétrico pelo governo, o Planalto minimiza o episódio. Em contraste com outros apagões, os reservatórios hoje estão cheios, existe oferta de energia e não há excesso de demanda. Mas fatos raros acontecem. Por isso mesmo, o governo tem obrigação de explicar o que aconteceu, por que aconteceu e dizer o que fará para evitar que se repita. Não dá para politizar uma questão essencialmente técnica nem tratar problema de tamanha gravidade de forma tão rasteira.

Lira tem de cumprir promessa de votar logo novo arcabouço fiscal

O Globo

É imperativo que Câmara desfaça mudanças do Senado em projeto essencial para estabilidade econômica

Enfim o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), anunciou para a semana que vem a votação do novo arcabouço fiscal. Não era sem tempo. É injustificável o atraso para derrubar as mudanças feitas pelo Senado no projeto. O ritmo moroso na aprovação das reformas pelo Congresso Nacional tem sido uma das causas do baixo crescimento econômico do Brasil nas últimas décadas.

A atual legislatura parecia disposta a quebrar essa tradição, mas hábitos antigos persistem. Depois da maratona do início de julho — além das regras fiscais, a Câmara aprovou o texto da reforma tributária e mudanças nos julgamentos de contribuintes pela Receita Federal —, Lira vinha adiando a votação das mudanças promovidas pelo Senado no arcabouço, na tentativa de pressionar por espaço para seus aliados na reforma ministerial em negociação. Entre o interesse nacional e mais poder, os congressistas voltaram a escolher a segunda opção.

É uma lástima. O arcabouço fiscal é uma tentativa de colocar alguma ordem nas finanças da União. Mesmo imperfeito, é a melhor opção disponível. Não pertence ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nem ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Foi concebido pelo governo e aperfeiçoado na Câmara para beneficiar a totalidade da população. A perspectiva de algum equilíbrio fiscal contribuiu para o início da queda dos juros e para o alívio nos indicadores econômicos.

Infelizmente, os senadores afrouxaram as regras de controle de gastos. O relator, senador Omar Aziz (PSD-AM), incluiu exceções sem cabimento na lista das despesas que não estarão sujeitas aos limites do arcabouço. Ao lado do Fundeb e do Fundo Constitucional do Distrito Federal — todas as despesas do DF são pagas pela União —, também ficaram fora os gastos com ciência e tecnologia.

Era também desnecessário criar espaço para mais despesas alterando a base de cálculo da inflação que atualizará o novo teto para os gastos. Assim como abrir uma brecha para o governo criar mais despesas quando quiser, mediante aval do Congresso. Qualquer tipo de “licença para gastar” vai contra o espírito do controle de despesas e desgasta a credibilidade do arcabouço.

Ele está longe de ser ideal. Impõe crescimento de despesas em qualquer situação, levando a um esforço hercúleo de arrecadação. Mesmo com a aprovação, é remotíssima a chance de o governo cumprir as metas de resultado primário ambiciosas anunciadas por Haddad. Mas é fundamental que haja algum tipo de regra estabelecendo limites realistas ao gasto público. Não tem cabimento usar um projeto tão crítico para a estabilidade econômica em barganhas políticas.

É, por tudo isso, imperativo que a Câmara restaure logo a versão original do projeto. Cada dia de atraso é um dia a menos para os deputados analisarem outros temas relevantes para o país. Lira precisa cumprir seu compromisso, para o governo ter tempo hábil de encaminhar ao Congresso o Orçamento de 2024 já dentro das novas regras.

Rede de comércio de joias piora situação de Bolsonaro

Valor Econômico

Inelegível, ex-presidente pode ser acusado de crime de peculato, se beneficio material for comprovado

Não bastassem os indícios abundantes de envolvimento de auxiliares diretos seus, civis e militares, na tentativa de golpe de 8 de janeiro, o ex-presidente Jair Bolsonaro pode ter se enredado, em investigações paralelas da Polícia Federal, em ações politicamente destrutivas e judicialmente comprometedoras - as de que recebeu benefícios pecuniários indevidos, decorrentes da venda de joias valiosas que recebeu no exercício da Presidência e que não lhe pertenciam. Uma condenação com explícito teor político, em que fosse caracterizado como um líder político autoritário, interessado em perpetuar-se no poder às custas da democracia, lhe permitiria ao menos posar mais uma vez de vítima do “sistema”, o que o estimularia a tentar fazer tudo de novo. O que também veio à tona contra ele, no entanto, sugere a existência de uma rede de malversação de patrimônio da República em seu proveito - crime de peculato que, se comprovado, pode levá-lo à prisão.

A sombra de comportamentos desviantes já havia coberto Bolsonaro logo depois de deixar o poder, quando militares de seu círculo tentaram entrar clandestinamente no país com um conjunto de joias presenteadas por autoridades sauditas como se fossem bens privados do então presidente. Elas foram apreendidas pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos e a mobilização para reavê-las chamou a atenção pela intensa mobilização do staff presidencial: um almirante, um contra-almirante, dois tenentes da Marinha e um segundo tenente do Exército. Não deu certo.

O Tribunal de Contas da União determinou a entrega de todos os bens pertencentes ao acervo da Presidência o que, segundo investigação da Polícia Federal, provocou uma corrida contra o tempo dos assessores de Bolsonaro para reaver os bens vendidos ou que estivessem em algum lugar onde não deveriam estar. As peripécias de um Rolex revelaram novas pistas e velhos conhecidos das encrencas da família Bolsonaro. Mauro Cid vendeu o relógio por US$ 68 mil, em 13 de junho de 2022. Em um resgate problemático, segundo a PF, surgiu o providencial Frederick Wassef, advogado de Bolsonaro, que o arrematou em seu nome, com recibo e tudo.

Wassef é um conhecido faz-tudo dos Bolsonaro. Quando Fabrício Queiroz, um dos principais suspeitos de coordenar as “rachadinhas” dos salários de funcionários do gabinete do então deputado estadual Flavio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio - e, suspeita-se, do próprio Bolsonaro como deputado federal - sumiu de circulação, acabou sendo encontrado pela polícia em Atibaia na casa de Wassef.

Na sexta a PF fez operação de busca e apreensão nas residências do advogado e de militares que estariam envolvidos no esquema de venda ilegal de joias no exterior. A Polícia Federal solicitou há poucos dias a quebra do sigilo bancário de Jair Bolsonaro e de sua mulher, Michelle, diante das pistas que brotam sem fim dos celulares do onipresente ex-ajudante de ordens da Presidência, o tenente-coronel Mauro Cid. A providência pode mostrar se o ex-presidente obteve ou não vantagens do intenso comércio clandestino de bens preciosos feito por seus subordinados.

O voo para Miami que levou em 30 de dezembro o ainda presidente Bolsonaro, decidido a não dar posse a seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, carregava pelo menos um dos quatro conjuntos de joias do acervo da Presidência, de acordo com a Polícia Federal. Joias foram entregues para comercialização ao general de Exército Mauro César Cid, pai de Mauro Cid, que recebera a sinecura de chefe do escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex).

A rota do dinheiro ganha a cada dia contornos mais incômodos para Bolsonaro. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou “movimentação atípica” - R$ 3,3 milhões entre 1 de fevereiro de 2022 e 8 de maio - do segundo sargento do Exército Luís Marcos dos Reis, supervisor da Ajudância de Ordens do ex-presidente. Reis recebe uma aposentadoria de R$ 12 mil (O Globo, 15 de agosto). A soma cresceu bem mais em seguida, para R$ 11,8 milhões, com o informe do Coaf de movimentações suspeitas também nas contas de seis ex-ajudantes de ordens que trabalharam para o ex-presidente.

Intrigante foi também o relato do Coaf de que Jair Bolsonaro recebeu R$ 17,19 milhões via PIX em sua conta no primeiro semestre. O ex-presidente disse que se trata de doações feitas para que ele pagasse multas e defesa nos processos que responde e que o dinheiro recebido foi mais que suficiente, com sobras. Teria sido aplicado em CDBs e RDBs.

A quebra do sigilo bancário e fiscal do ex-presidente pode esclarecer se dinheiro da venda ilegal de joias pousou em suas contas bancárias, como sugerem indícios cada vez mais numerosos, ou não. Mas a situação de Jair Bolsonaro se complicou. A alegação de perseguição política pelo Supremo Tribunal Federal, que reiteradamente faz, pode convencer grande parte de seus apoiadores mais fiéis. Mas, se comprovada, a apropriação indébita de bens para proveito próprio tem poder corrosivo amplo e pode sepultar seu significativo patrimônio político, igualando-o no desprestígio à turma da “velha política”, que tanto criticava.

Um apagão de explicações

O Estado de S. Paulo

Em vez de tratar o blecaute com prudência, ministro de Minas e Energia contribuiu para transformar o apagão em episódio político, atitude inaceitável para quem ocupa o cargo

Uma falha no sistema de energia provocou um blecaute de proporções gigantescas na última terça-feira. Todos os Estados do País foram afetados, com exceção de Roraima, o único fora do sistema interligado nacional. A pane começou às 8h31; o restabelecimento de energia começou a voltar de forma gradativa às 9h16, mas algumas localidades no Norte e Nordeste levaram mais de seis horas para ter o atendimento plenamente recomposto.

Como todo apagão, o episódio gerou um transtorno e tanto em escolas, hospitais, indústrias e no sistema de transporte público. Suas causas ainda serão devidamente esclarecidas pelos órgãos técnicos do setor. Até ontem, já se sabia que houve sobrecarga de energia no Ceará, mas não era de conhecimento público o município onde o incidente teria ocorrido nem a empresa responsável pelas instalações. Havia indícios de que outro evento, concomitante ao inicial, pudesse ter acontecido no sistema de transmissão no Norte do País – falha sobre a qual havia ainda menos informações oficiais.

Isso, por si só, causa estranheza, uma vez que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) detém tecnologia suficiente para identificar a origem dos distúrbios rapidamente. Assim foi feito em todos os blecautes anteriores: mesmo sem saberem a razão pela qual um equipamento não funcionou da forma como deveria, as autoridades do governo sempre divulgaram, horas após a ocorrência, as informações sobre as quais já havia alguma certeza, como o local em que se originou o problema.

A falta de transparência criou um ambiente perfeito para a profusão de oportunistas, que atribuíram o incidente a causas que vão do aumento da presença de fontes renováveis e intermitentes na carga a uma alegada falta de segurança no sistema elétrico. Por trás dessas explicações costuma haver interesses implícitos, como o lobby das termoelétricas e a defesa da regionalização do sistema, revertendo tendências e diretrizes que corretamente nortearam a expansão do setor desde o racionamento de 2001.

Ao pior papel, no entanto, prestouse o próprio governo. Em vez de tratar o caso com a prudência recomendada, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, transformou o apagão em um episódio político. No lugar de dar espaço para explicações de técnicos do ONS, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e do próprio Ministério, Silveira monopolizou uma longa entrevista coletiva sem esclarecer o que de fato teria causado o blecaute.

Sem atribuir responsabilidade pelo blecaute a nenhuma empresa em particular, o ministro aproveitou o momento para criticar a privatização da Eletrobras, insinuando que a desestatização da empresa teria comprometido a segurança do sistema elétrico. Sugeriu ainda a hipótese de ter havido sabotagem e solicitou a participação da Polícia Federal e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) nas investigações antes mesmo da conclusão das apurações técnicas.

Além de não apresentar explicações convincentes para a sociedade, o ministro perdeu uma excelente oportunidade para demonstrar liderança no enfrentamento de uma crise. Em uma inusitada inversão de papéis, tal espaço foi ocupado pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, que atribuiu o blecaute a um erro técnico e assegurou haver sobra de energia para abastecer o País.

Pouco importa que um apagão seja explorado politicamente pela primeira-dama, por deputados petistas ou por parlamentares da oposição. Para o caso em particular, as opiniões desses atores são absolutamente irrelevantes. Porém, pela autoridade do cargo que ocupa, é inaceitável que o ministro aja da mesma forma.

Horas após a patética entrevista de Silveira, o diretor-geral do ONS, Luiz Carlos Ciocchi, disse que o órgão deverá divulgar informações mais precisas sobre o blecaute ainda nesta semana. Já o Relatório de Análise de Perturbação (RAP), que trará uma avaliação mais completa sobre as causas do incidente, levará um mês para ser concluído. Que os trabalhos do ONS sejam pautados com rigor, seriedade e transparência. É o que a sociedade merece depois de tantos palpites desencontrados e declarações levianas.

O show do ministro da Justiça

O Estado de S. Paulo

A vocação de Dino para o exibicionismo não combina com a discrição que o cargo exige. É tempo de zelar pelo Direito, e não transformar tudo num espetáculo político

Pelo teor de suas manifestações, Flávio Dino não entendeu o que significa ser ministro da Justiça, tampouco as responsabilidades e os limites que o cargo impõe. Trata-se de uma pasta de especial relevância institucional, com papel fundamental no funcionamento do Estado Democrático de Direito, a exigir equilíbrio e contenção do titular. O Ministério da Justiça é responsável, no âmbito do Executivo federal, pela defesa da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constitucionais.

No entanto, Flávio Dino age como se fosse um animador de auditório. Opina sobre tudo. Na segunda-feira, pôs-se a discorrer sobre as eleições em um país estrangeiro. Depois do resultado das primárias na Argentina, o ministro da Justiça do governo Lula pontificou que, “em eleições, os monstros de extrema direita só chegam ao poder quando o centro e os liberais caminham com as aberrações”.

Dias depois, sem esperar o resultado das investigações – dando a entender que elas são desnecessárias para a formação das convicções do ministro da Justiça –, Flávio Dino afirmou haver “direta relação entre o desespero golpista e o comércio criminoso de joias milionárias” de Jair Bolsonaro, isto é, houve “uma tentativa de golpe monetizado”. E acrescentou: “Acima de tudo e de todos, estava o vil metal – Mamom – e não Deus ou o Brasil”.

O caso das joias envolvendo Jair Bolsonaro é escandaloso, a suscitar veemente indignação e a demandar rigorosa investigação. Mas o comentário de Flávio Dino não condiz com o papel de ministro da Justiça no Estado Democrático de Direito. Existe o princípio da presunção de inocência, e o titular da pasta da Justiça deve ser o primeiro a respeitar o mandamento constitucional, sem emitir juízos com as investigações ainda em andamento.

Ao agir da forma como vem atuando, Flávio Dino faz o oposto que o seu cargo exige. O ministro da Justiça deve contribuir para que o Executivo federal atue dentro dos limites e critérios estabelecidos pelo ordenamento jurídico: moldar a política pelo Direito. No entanto, Flávio Dino parece trabalhar para que o Direito – incluindo o Judiciário e as instituições auxiliares da Justiça – esteja moldado e seja visto pelas lentes da política. Prejudicial em qualquer circunstância, isso é especialmente grave nos dias de hoje, quando parcela considerável da população nutre desconfianças sobre a isenção e independência do Judiciário.

Em vez de contribuir para serenar os ânimos – por exemplo, cuidando para que as instituições de Estado não sejam envolvidas em questões político-partidárias –, Flávio Dino parece obstinado em alimentar a equivocada impressão de que o Judiciário é uma grande arena política.

Essa contaminação política é também especialmente danosa quando envolve a Polícia Federal (PF). Anos atrás, em 2016, quando o então ministro da Justiça do governo Temer, Alexandre de Moraes, antecipou a realização de operações da PF no âmbito da Lava Jato, justamente na véspera da prisão do ex-ministro petista Antonio Palocci, dissemos neste espaço que o titular da pasta não tinha mais condições de permanecer no cargo. “Vocação para o exibicionismo não combina com a discrição que o cargo de ministro da Justiça exige” (ver o editorial Um ministro insustentável, do dia 28/9/2016).

Rigorosamente o mesmo se pode e se deve dizer agora sobre o atual ministro da Justiça. Flávio Dino também antecipou passos da PF em investigação que corre sob segredo de justiça. No fim de julho, após divulgar a realização de um acordo de delação premiada com um dos suspeitos de envolvimento no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, o ministro da Justiça disse haver “outros fatos novos que vão surgir nas próximas semanas”.

Depois do que o País viveu nos últimos quatro anos, especialmente após o 8 de Janeiro, é tempo de zelar pelo Direito e pelas instituições de Estado. Em vez de fazer do Ministério da Justiça um grande espetáculo que converte tudo o que toca em política eleitoral, que tal trabalhar para que a Constituição seja mais conhecida e respeitada por todos?

Trump estressa os EUA

O Estado de S. Paulo

Incontornáveis para a Justiça, as acusações ao ex-presidente representam risco político

O cerco legal a Donald Trump se fechou. Há cinco meses ele foi o primeiro expresidente a ser indiciado, no caso, por falsificar registros para ocultar um acordo de confidencialidade com uma mulher com quem teria tido um caso. Depois, pela Justiça federal, por se apropriar de documentos confidenciais. No início do mês, a Justiça federal o acusou de conspirar para obstruir a transição de poder. Agora, foi acusado pela Procuradoria da Georgia de interferir nas eleições. No todo, são 91 delitos.

Progressivamente, as acusações avançaram ao coração da ameaça de Trump à democracia. Três princípios estão em jogo: de que ninguém está acima da lei; de que os resultados das eleições devem ser respeitados; e de que os veredictos das cortes devem ser cumpridos.

Os dois primeiros indiciamentos realçam o primeiro princípio. Quanto às acusações sobre o 6 de Janeiro, os procuradores reconhecem o direito constitucional de Trump de criticar e mesmo vocalizar falsidades sobre o sistema eleitoral. Em outras palavras, Trump pode mentir o quanto quiser. Mas ele é acusado de agir com base nessas mentiras, não para encorajar o assalto ao Capitólio, mas para obstruir a ratificação dos votos pelo Congresso. Já a Procuradoria da Georgia alega que Trump orquestrou um plano criminoso para forçar autoridades a fraudar as eleições. A prova mais contundente é um telefonema no qual ele exige que uma autoridade local “encontre 11.780 votos”, advertindo-a de que a recusa implicaria “um grande risco”.

Se os procuradores evitassem as acusações, isso poria em risco a credibilidade da Justiça e sua capacidade de responsabilizar o Executivo. Por outro lado, elas comportam riscos para a política.

Muitos analistas argumentam que a estratégia dos democratas é que Trump seja nomeado pelos republicanos, dando-lhes mais chances entre eleitores moderados e independentes. Para Trump, a estratégia legal e a eleitoral se retroalimentam, inflamando a sua narrativa de perseguição pelo deep state. Os republicanos enfrentam um dilema: endossar essa narrativa – abastecendo a tática de Trump de posar como mártir – ou desmoralizá-la – arriscando a simpatia dos trumpistas. As perspectivas são degradantes. Uma disputa entre Joe Biden e Trump se afastaria ainda mais das políticas públicas, concentrando-se na idade e enfermidades do primeiro e nos imbróglios legais do segundo.

Enquanto os políticos manobram suas estratégias, a maior responsabilidade pelos destinos da democracia no país fica com os eleitores. Os democratas têm a sua parte: para desmoralizar a narrativa de Trump, eles deveriam exigir que a Justiça aja com o mesmo rigor em relação aos indícios de corrupção da família Biden. Mas a grande chance de quebrar o círculo vicioso está com os republicanos. Criminoso ou não, não há dúvida de que o comportamento de Trump foi ou lunático ou perverso. Autoridades republicanas não deveriam tergiversar em expor esse fato nas primárias. Se não o fizerem, a esperança é que os moderados e independentes punam o partido nas urnas.

O paradoxo da OAB

Folha de S. Paulo

Eleição indireta para chefia do órgão destoa da missão de zelar pela democracia

Uma das missões que a lei atribui à Ordem dos Advogado do Brasil (OAB) é a de zelar pela democracia no país. Assim, não deixa de ser paradoxal que, em sua organização interna, a entidade adote sistema indireto de eleição para a presidência de seu conselho federal, o que os próprios advogados consideram pouco democrático.

Pesquisa Ibope de 2018 mostrou que 84% dos profissionais brasileiros eram favoráveis a eleições diretas.

Pela norma em vigor, os representados de cada unidade federativa elegem delegações compostas por três conselheiros, aos quais compete escolher o presidente nacional da ordem.

Isso significa que os 360.651 advogados inscritos em São Paulo têm exatamente o mesmo poder de influência dos 2.634 de Roraima. O voto de cada advogado roraimense vale pelo de 137 paulistas.

Se na representação política nacional, mais especificamente no Senado, ainda faz sentido invocar o pacto federativo, que dá peso igual a todos os estados e o Distrito Federal, é difícil encontrar justificativa para estender essa mesma lógica a um órgão de classe.

Os desafios que se colocam para o advogado roraimense não são tão diferentes daqueles que os paulistas enfrentam —não a ponto de dar-lhes peso político distinto.

Nesse contexto, merece consideração o manifesto de um grupo de advogados em defesa de eleição direta para a presidência da OAB. Convém manter algum ceticismo, contudo, em relação à chance de sucesso da empreitada.

Já houve iniciativas semelhantes no passado, que fracassaram. A atual diretoria, eleita pelo processo indireto, não tem interesse em modificá-lo. Seções e subseções, embora até possam ver o movimento com simpatia, evitarão criar atritos com o conselho federal. A inércia tende a derrotar a mudança.

Pode-se argumentar que essa é uma questão que cabe exclusivamente aos advogados resolver. O raciocínio faria sentido se estivéssemos falando de um sindicato, mas a OAB é muito mais do que isso.

Trata-se de um órgão poderoso, com status de autarquia especial, que exerce enorme influência sobre o Judiciário e diversos outros aspectos da vida nacional.

Ela indica juízes para diversas cortes, organiza o exame que credencia bacharéis a advogar, julga violações éticas de seus membros, fixa suas tabelas de honorários e tem o direito de propor ações diretas de inconstitucionalidade.

A escolha de seu comando, portanto, é de interesse público e deveria seguir procedimentos mais adequados de representatividade.

Alta forçada

Folha de S. Paulo

1º reajuste de combustíveis sob petista não dissipa dúvidas sobre nova política

reajuste dos preços dos combustíveis recém-promovido pela Petrobras desperta atenção especial por ser o primeiro da gestão de Jean Paul Prates, que deixou o posto de senador pelo PT do Rio Grande do Norte para assumir o comando da gigante estatal a convite de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A medida indica que as normas de governança da companhia estabelecidas nos últimos anos ainda proporcionam proteção, ao menos parcial, ante tentações populistas de baratear artificialmente a gasolina e o diesel. É insuficiente, porém, para dissipar dúvidas acerca da atual administração.

Não está claro, em especial, até que ponto a petroleira vai seguir as cotações internacionais —um princípio correto adotado em 2016 contra o qual se insurgiram tanto Jair Bolsonaro (PL) como Lula.

Mesmo com os aumentos de 16,2% na gasolina e de 25,8% no diesel, os preços domésticos continuam abaixo da paridade de importação. Segundo cálculos do banco Goldman Sachs, as defasagens são de 8% e 7%, respectivamente; não se vê, porém, perda substantiva para as receitas da empresa.

Em audiência nesta quarta-feira (16), Prates saiu-se com uma obviedade ao comentar os reajustes —o objetivo, disse, foi evitar que a Petrobras perdesse dinheiro. Há muito mais em jogo, entretanto.

Preços fixados por critérios que não os de mercado implicam riscos para a saúde financeira da empresa, para o abastecimento interno de combustíveis e para os bolsos dos contribuintes. Por isso a Lei das Estatais, de 2016, e o estatuto posterior da Petrobras restringiram tal possibilidade.

É evidente que reajustes não são indolores. O de agora já resultou em elevação das projeções de inflação para o ano, e ficou mais remota a chance de um IPCA até 4,75%, teto oficial para a política do Banco Central (meta de 3,25% mais tolerância de 1,5 ponto percentual).

Pior, no entanto, seria incorrer no intervencionismo de administrações petistas anteriores, que, não limitado ao setor petrolífero, terminou em megaprejuízos, descontrole inflacionário, escalada dos juros e recessão profunda. Ressalte-se que Prates disse no Senado que não repetirá erros do passado.

É fato que por ora estão afastados os piores temores quanto à gestão da empresa, cujo valor de mercado já se recuperou de quase toda a perda de mais de R$ 100 bilhões registrada desde a eleição de Lula.

Entretanto o restabelecimento da confiança levará tempo —e passará não apenas por preços, mas também por bons investimentos e responsabilidade ambiental.

Pacto tímido contra o feminicídio

Correio Braziliense

Documento divulgado, em meio às Marchas das Margaridas, revê a entrega de 270 unidades móveis para acolhimento e orientação, além de 10 carros — metade para locomoção de equipes e o restante para transportar equipamentos de atendimento às usuárias

O enfrentamento do feminicídio está entre os grandes desafios do Estado e da sociedade. Ontem, em meio à 7ª Marcha das Margaridas, que reúne cerca de 100 mil mulheres, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Pacto Nacional de Prevenção dos Feminicídios. A gestão do pacto será do Ministério da Mulher. No ano passado, 1.437 vítimas. Elas foram mortas por serem mulheres. Na maioria dos casos, o assassino era o ex, ou companheiro, ou um familiar. O ato extremo era o ápice de uma escala crescente de atitudes violentas, como humilhação, pressão psicológica, xingamentos e espancamentos.

Apesar do aumento do número de ocorrências, o governo passado reduziu em 90% os recursos destinados às políticas públicas de proteção às mulheres. A violência contra as mulheres caótica no país, inclusive na capital da República, onde 24 foram assassinadas pelo ex ou atual companheiro — média de três homicídios, de janeiro até agora. Um patamar inadmissível. Elas recorrem à Polícia, vão ao Judiciário, que lhes dão direito à medida protetiva. Mas, em vez de o agressor ser contido, é a medida protetiva que fica presa no papel. O potencial assassino fica livre para, no momento que lhe aprouver, executar a vítima.

Em 2022, Minas Gerais ocupou a segunda posição em número de feminicídios registrados no país — 171 mulheres foram assassinadas —, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nos primeiros meses deste ano, o estado registrou 11 casos e 14 tentativas. O pacto prevê a entrega de 270 unidades móveis para acolhimento e orientação, além de 10 carros — metade para locomoção de equipes e o restante para transportar equipamentos de atendimento às usuárias. As comunidades de florestas, ribeirinhas e do Pantanal contarão com o serviço por meio de embarcações.

Embora o pacto anunciado pelo presidente seja um indicativo de que o tema preocupa o governo federal, os primeiros passos parecem muito tímidos, ante as diferentes expressões de violência que ocorrem nos meios urbano e rural. Há uma incapacidade do poder público de garantir a prevenção das agressões sofridas pelas mulheres. Faltam medidas mais enérgicas contra os homens que ameaçam e agridem as ex ou a companheira, após ela recorrer ao sistema de segurança e denunciá-los. O poder público garante que trabalha em projetos e programas de proteção às mulheres, ante o avanço do número de feminicídios é notícia de todos os dias.

Como as medidas protetivas, as ações reiteradamente não conseguem passam de discursos e planos que, se existentes, estão contidos em papéis. Promessas que não são cumpridas. Enquanto isso, as ameaças dos algozes se concretizam com mais um corpo feminino que sucumbe no chão. Em sua maioria, cresce o número de órfãos, de famílias enlutadas e destroçadas ante a indomável violência masculina.

Há um farto conjunto de número de telefones para que as agredidas ou as ameaçadas recorram e peçam ajuda e proteção. As mortes, no entanto, permitem supor que esse caminho, via ligação telefônica, não funciona adequadamente. Como também não resulta em proteção denunciar, pessoalmente, a ameaça à delegacia ou à Justiça. Há de se indagar se não seria o caso de rever a estratégia, até agora ineficaz, oferecida às mulheres ameaçadas, espancadas, estupradas, vilipendiadas por seu ex ou companheiro.

Nos debates sobre o tema, autoridades e especialistas apontam as mais diferentes opções de solução. Desde a educação nos primeiros anos de escolaridade até as jurídicas. Porém o número de vítimas segue crescendo. Ou seja, a violência contra as mulheres é notícia diária nos meios de comunicação, não só na capital da República ou em Minas Gerais. É fato noticiado em todo o país. Uma das alternativas é ampliar o número de Casa da Mulher, espaço de acolhimento e abrigo das vítimas. Não seria o caso de criar a Casa do Homem, onde ele seria reeducado a conviver com respeito à mulher? Não seria necessário detê-lo, como sugeriu uma autoridade do Executivo distrital? Cabe ao poder público e aos especialistas encontrar uma solução efetiva para erradicar os feminicídios.

É inadmissível que, em pleno século 21, o machismo e o patriarcalismo sigam regendo a vida das mulheres, como se elas fossem objeto de propriedade masculina. Inadmissível que, com os inúmeros recursos tecnológicos, com a evolução dos conceitos jurídicos, o poder público ainda não tenha encontrado um meio de conter a fúria dos homens nem garanta a devida atenção às denúncias e assegure a proteção exigida à vida das mulheres. Até quando elas continuarão sendo imoladas?

 

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