Correio Braziliense
Devemos perceber a feliz coincidência do
sucesso de Ainda estou aqui com a comemoração dos 40 anos de democracia para
buscarmos avançar no pagamento das dívidas que a democracia tem com o povo e a
nação
Nesta semana, comemoramos quatro décadas da
posse do primeiro presidente civil a governar o país após o período de ditadura
militar. A partir de março de 1985, sob a liderança de José Sarney, elaboramos
a Constituição Cidadã, legalizamos os partidos sem preconceito ideológico,
incorporamos todos os líderes na vida política, abolimos censura e implantamos
liberdade de imprensa e de opinião. A comemoração neste 15 de março no Panteão
da Pátria será também momento para refletirmos sobre como retomar a capacidade
de unir o país em torno de propósitos comuns.
Em 1985, depois do fracasso da possibilidade
de eleição direta, os líderes democratas se uniram em torno de Tancredo Neves,
com José Sarney para vice. Salvo raras exceções, todos abriram mão dos
interesses partidários e pessoais e foram juntos ao Colégio Eleitoral. Quando a
saúde de Tancredo Neves o impediu de assumir, todos apoiaram José Sarney, que
cumpriu todos os compromissos democráticos. A derrubada da ditadura militar e a
posse do presidente civil foram realização de uma surpreendente engenharia política
que reuniu opositores históricos com o propósito comum de vencer nas urnas a
força das armas e implantar democracia.
O quadragésimo aniversário daquela unidade
pela democracia coincide com a atual unidade dos brasileiros eufóricos pela
vitória do Oscar com um filme sobre o período da ditadura. Ainda estou aqui
deslumbra com a beleza da reconstituição do fato e da época, desperta para a
denúncia de um momento insano e perverso de nossa história, alerta para que os
fatos mostrados não se repitam. Também faz lembrar a genialidade política e o
espírito público que levaram nossos líderes à unidade para derrotar o poder militar
e implantar a democracia civil; e nos faz pensar como outra vez nos unimos para
nos livrarmos das amarras que nos impedem consolidar e avançar no que foi
conquistado. Se foi possível a coragem de Eunice para gritar "ainda estou
aqui", é possível ter esperança no grito "vamos sair daqui e
avançar".
O Brasil que construímos nos 40 anos depois
do fim da ditadura ainda tem economia de baixa produtividade, concentração de
renda elevada, persistência da pobreza, metade da população sobrevivendo na
penúria de uma bolsa assistencial, em sistema de apartação social; privilégios
crescentes e supersalários legais, um sistema político que exacerba a corrupção
legalizada e impune ao ponto de debochar da população; a política polarizada
sem oferecer alternativas para o futuro; uma justiça instável, um parlamento sem
confiabilidade; as ruas entregues à violência e ao crime organizado; um sistema
educacional por onde pingam anualmente dezenas de milhares de novos analfabetos
adultos e que não forma brasileiros alfabetizados para atender às necessidades
do mundo contemporâneo.
O Brasil deve se envaidecer de Marcelo Rubens
Paiva, por seu livro Ainda estou aqui, e também de Walter Salles, Fernanda
Torres e Fernanda Montenegro, Selton Mello e todos que transformaram o belo
livro em um magnífico filme. Mas a maior homenagem a uma obra é usá-la para
avançarmos. Eunice Paiva deve ter lido o poema Faz escuro mas eu canto, de
Thiago de Mello, e, a partir dele, sentiu a força necessária para sua luta pela
memória do marido desaparecido. Precisamos escutar "ainda estamos aqui"
na luta contra o autoritarismo e acender a chama para o grito de "como
sair daqui e avançar" na luta pela construção do Brasil que a democracia
prometeu e ainda não cumpriu: economia sustentável e eficiente, que distribua a
renda gerada, faça uma sociedade sem pobreza, as ruas em paz; com Forças
Armadas sob o mando civil e integradas ao mundo democrático, políticos
comprometidos com a ética e o interesse público, sujeitos à transparência na
gestão e punição na corrupção, sem penduricalhos legais que permitem salários que
debocham da pobreza; iniciar a implantação de um sistema federal público que
ofereça educação com a máxima qualidade a todo brasileiro, independentemente da
renda e do endereço de sua família; desburocratizar a atividade econômica de
maneira a incentivar o talento pessoal a promover soluções e riquezas graças ao
empreendedorismo pessoal; impedir o consumo e a produção de bens que depredem a
natureza.
Devemos perceber a feliz coincidência do
sucesso de Ainda estou aqui com a comemoração dos 40 anos de democracia e
lembrarmos a unidade que levou a vitória política contra o regime militar para
buscarmos avançar no pagamento das dívidas que a democracia tem com o povo e a
nação.
*Professor emérito da Universidade de Brasília
Nenhum comentário:
Postar um comentário