quarta-feira, 12 de março de 2025

A ilusão da Lava Jato segue vigente - Nicolau da Rocha Cavalcanti

O Estado de S. Paulo

Os muitos indícios de crime contra a ordem democrática exigiriam uma defesa incondicional da investigação e da denúncia

Ainda que faça referência a dois casos específicos, este artigo aborda um tema diariamente presente na advocacia criminal: a necessidade de distinguir entre a opinião pública, com suas fontes cognitivas e seus processos decisórios, e o processo penal, com suas específicas fontes cognitivas e seu específico processo decisório.

Podemos ser francos? Não há nenhuma dúvida de que Jair Bolsonaro, mesmo tendo perdido as eleições, tentou criar condições para permanecer no poder. Quer gesto mais simbólico dessa atitude do que sua recusa em entregar a faixa ao seu sucessor? A mensagem para seus apoiadores foi cristalina: não aceito a derrota, não reconheço a lisura das urnas, não participo deste elemento tão próprio do regime democrático, a transferência do poder. Ou seja, a acusação de tentativa de golpe de Estado não se baseia em fatos ocultos, que ninguém viu. Há uma série de acontecimentos públicos, perfeitamente alinhados à trajetória de Bolsonaro de enfrentamento da Constituição de 1988, que confirmam essa percepção.

No entanto, por mais notórios que sejam os indícios de crime contra a ordem democrática, eles não autorizam ignorar os princípios penais constitucionais. A presunção de inocência. O juiz natural. A imparcialidade do juízo. O direito à ampla defesa e ao contraditório.

Isso, que deveria ser pacífico, tem sido esquecido. Em raciocínio idêntico ao que se faz para defender a Lava Jato, há um movimento para fazer vista grossa às deficiências constitucionais da investigação e da denúncia contra Jair Bolsonaro – a delação da delação de Mauro Cid é apenas a ponta do iceberg. A gravidade dos crimes investigados permitiria um olhar condescendente para a investigação e a denúncia. Os muitos e evidentes indícios de crime contra a ordem democrática exigiriam uma defesa incondicional da investigação e da denúncia.

Não é exatamente isso o que os defensores da Lava Jato dizem? Não importa como as provas foram produzidas. Não importam as condições das delações. Não importa se o juiz da causa extrapolou suas funções. Tudo isso deveria ficar em segundo plano uma vez que se tem a certeza de que, nos governos do PT, houve muita corrupção envolvendo empreiteiras, órgãos da administração pública e partidos políticos.

Até hoje os defensores da

Lava Jato ficam indignados quando o Supremo Tribunal Federal (STF) anula processos e provas relacionados à operação, sob o fundamento de que tais processos e provas foram realizados ao arrepio da lei e da Constituição. Ficam revoltados, como se o Supremo estivesse negando os fatos: ora, então não houve corrupção? Ora, então não houve devolução de dinheiro desviado?

Nessa crítica ao STF jaz uma incompreensão. O Judiciário é incompetente para alterar os fatos. É incapaz de remover os muitos elementos que fundamentam a percepção sobre a corrupção nos governos do PT. Nenhuma decisão do Supremo irá alterar, por exemplo, o que está contado no livro A Organização: a Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo, da jornalista Malu Gaspar.

O Supremo faz outra coisa. Ele apenas diz que, em razão do descumprimento, durante a investigação ou o processo, da Constituição e das leis brasileiras, tais fatos não podem produzir efeitos no âmbito judicial. Por mais que existam indícios de crime, o processo penal não é um vale-tudo. O Estado não tem o direito de punir fora dos trâmites legais – e isso se chama Estado Democrático de Direito.

Ainda que necessário, o controle de legalidade e de constitucionalidade dos atos da Lava Jato tem sido traumático para o País. Muito em função do tempo que o Judiciário demorou para reagir, fragilizado e contaminado pela pressão da opinião pública.

Instaurou-se uma situação em que, agora, não há trilha indolor. Todas as soluções geram desgaste. Nenhuma delas apaga o rastro de danos causados.

O incrível é que, mesmo com a experiência da Lava Jato, o STF parece dar-se por satisfeito com os muitos indícios de crime contra a democracia existentes no caso Bolsonaro, como se os princípios penais constitucionais fossem de menor importância. O incrível é que, quando questionado sobre seus atos, o STF adota a mesma atitude da Lava Jato. Sua resposta tem sido jogar para a opinião pública, expondo discricionariamente, a cada momento, novos elementos que possam reforçar sua versão dos fatos.

Há aqui outra grave incompreensão. Não há processo judicial civilizado, não há princípio da presunção de inocência, se não sabemos diferenciar o que é fato da vida cotidiana – cuja produção é, por definição, numa sociedade livre e plural, incontrolável pelo poder estatal; por exemplo, a notícia jornalística – e o que é prova num processo penal – cuja produção, por definição, está submetida a regras predeterminadas e a rígido controle estatal, para assegurar os princípios constitucionais. A grande disfuncionalidade de transformar ação judicial em espetáculo midiático é esconder a diferença entre os dois âmbitos. Imaginando construir um caso forte, alicerçam-se as condições da sua ruína.

 

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