quarta-feira, 12 de março de 2025

Temperança - Ricardo Marinho

O exercício democrático nos dias de hoje tem apontado e chamado a todos e todas a cooperação daqueles que estão no comando dos governos em todos os seus aspectos. Não podemos decepcionar em nenhum deles e fazê-lo trilhando o caminho da responsabilidade.

Ao ouvirmos o debate público, temos a impressão de que não se tem a compreensão plena da dimensão profunda dos tempos complexos que estamos atravessando, dos vestígios e feridas que a pandemia deixou em nossas vidas e no mundo, além de tantas outras advindas da longa duração.

Embora seja difícil fechar o desenho dos seus contornos, é um mundo mais duro, com menos certezas e com mais riscos, exigirá mudanças em nossa convivência, no uso de nossos recursos e em nosso senso de justiça, para que coisas que já eram ruins antes e depois da emergência pandêmica não acabem em um perigoso retrocesso como os últimos sinais indicam. Vide a Europa atordoada pelos acontecimentos.

Daí não resta dúvida que os gestos persistentes de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Tarcísio de Freitas (Republicanos) nesses quase três anos são alvissareiros e representam um avanço político e institucional.

Como se sabe ambos assumiram em 2023 tendo no pano de fundo o rastro da pandemia. Talvez não se tenha falado, mas elas têm sido velhas companheiras planetárias, e contribuíram para afundar impérios da Antiguidade como aconteceu na China, para pôr fim à Idade de Ouro na Grécia, para ferir o Império Romano com a “peste Antonina”, para enfraquecer o Império Bizantino com a “peste de Justiniano”. Nessas ocasiões, os mortos eram entre um quarto e um terço da população. No século XVI, a varíola dizimou os impérios da era pré-colombiana e pré-cabralina do Novo Mundo quase de forma mais eficaz do que a espada do conquistador.

Outras pragas moldaram séculos inteiros. A Peste Negra por exemplo. Walter Scheidel nos diz em seu livro Violência e a história da desigualdade: Da Idade da Pedra ao século XXI, eclodiu no deserto de Gobi na década de 1320, de lá se espalhou pela China e pelo Velho Mundo. Era uma cepa bacteriana chamada Yersinia pestis, que reside no trato digestivo das pulgas, que foram alojadas em ratos que as carregavam.

Da Crimeia chegou à Itália em navios genoveses e de lá se espalhou por toda a Europa, até mesmo no extremo norte. Em 1349, ele já havia chegado à Escandinávia. Seus efeitos foram horríveis e dolorosos.

Cobriu todo o século XIV e boa parte do século XV, em várias ondas. Milhões de pessoas morreram, senhores e vassalos, ricos e pobres, embora os pobres, é claro, em maior número. Ela matou pensadores como La Boétie (1530-1563), cuja agonia foi relatada por Montaigne (1533-1592), seu grande amigo. A Inglaterra perdeu metade de sua população. A Itália, um terço. Os ingleses recuperaram a população que tinham no ano de 1300 apenas em 1700.

Continuou a retornar de tempos em tempos no século XVII. Em seu romance clássico Os Noivos (1823), Alessandro Manzoni (1785-1873) nos conta como a peste atingiu Milão e seus arredores, com terríveis cenas de sofrimento.

A Peste Negra passou por um bom período da história, a Alta Idade Média, as guerras religiosas, o Renascimento e ainda era um perigo nos tempos do Iluminismo.

A ausência de defesa a ela era total. Os estados pré-modernos não foram organizados para a proteção de seus habitantes, mas para guerras, “o esporte dos reis”, como disse Arnold Joseph Toynbee (1889-1975), e as pessoas esperavam muito pouco deles. Alguns acreditavam que a praga era a ira de Deus, outros pensavam que era o fim do mundo.

Havia poucos governantes sensíveis e diligentes que tentavam mitigar seus males e salvar pelo menos os não contaminados. Foi assim que surgiu a quarentena, inventada pelos venezianos, que não permitiam a entrada de navios por 40 dias, até que os infectados não fossem mais deste mundo e os lazaretos onde amontoavam os doentes, geralmente esperando a morte.

A Peste Negra acabou, mas outras vieram, como a gripe espanhola, entre 1918 e 1920, que deixou 50 milhões de mortos, e depois chegaram várias outras, de dimensões mais limitadas.

Na segunda metade do século XX, o Estado moderno já tinha deveres obrigatórios de proteção para seus cidadãos, a saúde progredia em um ritmo diferente, assim como as estruturas de prevenção e saúde, a higiene salvava muitas vidas, assim como as vacinas, o prolongamento da vida começou. Pouco a pouco, a vida humana adquiriu mais valor do que em todo o caminho histórico anterior. Mas as infecções não deixaram de existir, elas estão vivas no meio de nossa hipermodernização globalizada avançada e nos atingiu novamente e poderá voltar a fazê-lo.

Ao Estado, tão vilipendiado em geografias políticas tão diversas e nos seus extremos políticos, nosso Sistema Único de Saúde (SUS) protegeu nossa saúde como pode e, além disso, por conta do Poder Legislativo pode oferecer um mínimo para garantir ao Grande Número da população que tivessem suas condições materiais de existência durante a pandemia, sem tirar nossa autonomia pessoal, e isso requereu um equilíbrio delicado que não é fácil de alcançar na prática.

Desde à catástrofe das chuvas no Litoral Norte de São Paulo em 2023, Lula e Tarcísio atuaram juntos na resposta a ela. Eles fizeram isso bem ou mal?

É difícil estabelecer um julgamento categórico no meio da tempestade, como também ocorreu no mundo onde ninguém sabia ao certo como enfrentar a pandemia, e quase sempre nos valemos do processo de tentativa e erro da filosofia de Karl Popper (1902-1994).

Foi graças ao caminho da temperança e não da arrogância que Ainda estou aqui conquistou o Oscar, e Lula e Tarcísio vão demonstrando o que está em jogo. A recuperação do nosso país se faz necessariamente com trabalho árduo, justo e equitativo.

Quando vemos na sociedade política hipérboles verbais imprudentes, demonstrando frivolidade, ações irresponsáveis de tolos que chamam como bem entendem, reafirma-se a convicção de que esse não é o caminho a seguir.

O caminho que Lula-Tarcísio mostraram é o da sobriedade e do interesse comum, a disponibilidade sincera ao diálogo, a disponibilidade a ouvir e a não suspeitar para estabelecer acordos capazes de abreviar o sofrimento e promover uma desejável construção de um futuro para todos.

E devemos fazer essa travessia neste momento escuro do mundo com humildade, cooperação e temperança, pois a Frente Democrática ainda está aqui.

*Ricardo Marinho é Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

 

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