quarta-feira, 12 de março de 2025

Vida & morte – Roberto DaMatta

O Globo

Saímos da maternidade para o velório do Affonso Romano de Sant’Anna, cuja obra tanto admiro

Na Quarta-Feira de Cinzas, que, por sinal, passou sem nenhuma cinza, vivi um inesperado. Uma coincidência diferente de todas as que me ocorreram na minha longa vida. Algo situado entre este e o outro mundo, como ocorre quando a gente tem um pesadelo, fica embriagado ou — como se dizia antigamente — perdidamente apaixonado. Assustei-me ao testemunhar como das minhas mais quadradas rotinas surgia uma situação tão excepcional. Uma vivência liminar ou fronteiriça, para usar um conhecido conceito de meu saudoso amigo e mentor Victor Turner.

A experiência fora do comum de confrontar-se com dois eventos opostos a um só tempo. Algo entre sair e entrar simultaneamente. Ou sentir-se velho e moço, homem e mulher, inteligente e burro — ou testemunhar nascimentos e mortes como os dois lados de uma mesma moeda.

Meu evento extraordinário foi, num mesmo dia, viver o abençoado nascimento de uma bisneta — Antônia, filha do meu neto Samuel, filho de minha filha Maria Celeste, e de Luíza, sua mulher — e a morte de meu valioso amigo e companheiro intelectual, o escritor, poeta e pensador Affonso Romano de Sant’Anna, com quem eu dividia profundas afinidades.

Antônia vem se somar a Rocco, meu primeiro bisneto, filho de minha neta Serena e de Brian. Tal como ele, Antônia nasceu iluminada por nossas esperanças e — para mim, que vivo a temporada final da vida — por um acolhimento comovidamente afetuoso de quem está deixando a cena, mas tem consciência do precioso amor pelos descendentes e desse afeto difícil de ensinar e “criar”, a marca do que chamamos de “relação de sangue” ou de família e parentesco — esse traço universal de todas as sociedades humanas.

A velhice me faz enxergar o que, jovem, eu apenas via, mas não mirava nos meus filhos e netos: a indescritível beleza e a mais incondicional fragilidade dos recém-chegados que, em seus corpos minúsculos, exibem perfeição e a fragilidade comovedora de mãozinhas menores que nosso polegar.

Os recém-nascidos são miniaturas reveladoras de uma total dependência que conjura a amá-los e protegê-los. A torná-los parte de nossa humanidade.

Cauteloso e atrapalhado, peguei Antônia, que é só fragilidade — como peguei meu outro bisneto —, em meus desajeitados braços treinados pelo reacionário machismo nacional, para batizá-los com minhas lágrimas, pois a essas vidas em semente desejo que tenham um belo e bom destino ao lado da capacidade de resignação e amor que nos tornam capazes de suportar nossos enredos com dignidade.

Saímos, Christina e eu, da maternidade para o velório de Affonso, cujo senso de humor, preocupação com o Brasil, amor pelo trabalho criativo; cuja obra tanto admiro. Saí de um elo fundado de parentesco com a bisneta para a honrada e livre afinidade tecida com o amigo morto. A clara, bela e arejada capela mortuária combinava em tudo com sua vida sem invejas e ressentimentos. Uma vida devotada à poesia, aos livros, à cultura brasileira e às ideias.

Dei uma despedida calada ao amigo e companheiro de ideias que, morto, despertava em mim uma duríssima sensação de afeto e perda. Meu abraço na madeira do caixão nada produziu, exceto mais tristeza. Em seguida, vi pela última vez o rosto do amigo englobado pelo silêncio da morte. O silêncio dos que, como dizia Manuel Bandeira, dormem profundamente. Consolei-me com a ânsia de vida de Antônia, chorando a fome de viver dos recém-chegados a este nosso maravilhoso vale de lágrimas.


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