O Globo
Saímos da maternidade para o velório do
Affonso Romano de Sant’Anna, cuja obra tanto admiro
Na Quarta-Feira de Cinzas, que, por sinal,
passou sem nenhuma cinza, vivi um inesperado. Uma coincidência diferente de
todas as que me ocorreram na minha longa vida. Algo situado entre este e o
outro mundo, como ocorre quando a gente tem um pesadelo, fica embriagado ou —
como se dizia antigamente — perdidamente apaixonado. Assustei-me ao testemunhar
como das minhas mais quadradas rotinas surgia uma situação tão excepcional. Uma
vivência liminar ou fronteiriça, para usar um conhecido conceito de meu saudoso
amigo e mentor Victor Turner.
A experiência fora do comum de confrontar-se
com dois eventos opostos a um só tempo. Algo entre sair e entrar
simultaneamente. Ou sentir-se velho e moço, homem e mulher, inteligente e burro
— ou testemunhar nascimentos e mortes como os dois lados de uma mesma moeda.
Meu evento extraordinário foi, num mesmo dia, viver o abençoado nascimento de uma bisneta — Antônia, filha do meu neto Samuel, filho de minha filha Maria Celeste, e de Luíza, sua mulher — e a morte de meu valioso amigo e companheiro intelectual, o escritor, poeta e pensador Affonso Romano de Sant’Anna, com quem eu dividia profundas afinidades.
Antônia vem se somar a Rocco, meu primeiro
bisneto, filho de minha neta Serena e de Brian. Tal como ele, Antônia nasceu
iluminada por nossas esperanças e — para mim, que vivo a temporada final da
vida — por um acolhimento comovidamente afetuoso de quem está deixando a cena,
mas tem consciência do precioso amor pelos descendentes e desse afeto difícil
de ensinar e “criar”, a marca do que chamamos de “relação de sangue” ou de
família e parentesco — esse traço universal de todas as sociedades humanas.
A velhice me faz enxergar o que, jovem, eu
apenas via, mas não mirava nos meus filhos e netos: a indescritível beleza e a
mais incondicional fragilidade dos recém-chegados que, em seus corpos
minúsculos, exibem perfeição e a fragilidade comovedora de mãozinhas menores
que nosso polegar.
Os recém-nascidos são miniaturas reveladoras
de uma total dependência que conjura a amá-los e protegê-los. A torná-los parte
de nossa humanidade.
Cauteloso e atrapalhado, peguei Antônia, que
é só fragilidade — como peguei meu outro bisneto —, em meus desajeitados braços
treinados pelo reacionário machismo nacional, para batizá-los com minhas
lágrimas, pois a essas vidas em semente desejo que tenham um belo e bom destino
ao lado da capacidade de resignação e amor que nos tornam capazes de suportar
nossos enredos com dignidade.
Saímos, Christina e eu, da maternidade para o
velório de Affonso, cujo senso de humor, preocupação com o Brasil, amor pelo
trabalho criativo; cuja obra tanto admiro. Saí de um elo fundado de parentesco
com a bisneta para a honrada e livre afinidade tecida com o amigo morto. A
clara, bela e arejada capela mortuária combinava em tudo com sua vida sem
invejas e ressentimentos. Uma vida devotada à poesia, aos livros, à cultura
brasileira e às ideias.
Dei uma despedida calada ao amigo e
companheiro de ideias que, morto, despertava em mim uma duríssima sensação de
afeto e perda. Meu abraço na madeira do caixão nada produziu, exceto mais
tristeza. Em seguida, vi pela última vez o rosto do amigo englobado pelo
silêncio da morte. O silêncio dos que, como dizia Manuel Bandeira, dormem
profundamente. Consolei-me com a ânsia de vida de Antônia, chorando a fome de
viver dos recém-chegados a este nosso maravilhoso vale de lágrimas.
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