Trump estarrece o mundo ao humilhar Zelensky
O Globo
Sem poder confiar nos Estados Unidos, será
mais difícil conter Putin e outras ameaças à paz mundial
O mundo jamais viu cenas como a que opôs, em
pleno Salão Oval da Casa Branca, o presidente americano, Donald Trump,
e seu vice, J.D. Vance, ao ucraniano Volodymyr
Zelensky, convidado a assinar um acordo de cooperação que permitisse aos
americanos explorar minério ucraniano, em troca, desejavelmente, de apoio
militar e de negociações capazes de encerrar a guerra contra a Rússia. Em vez
disso, Trump e Vance humilharam Zelensky com truculência inédita diante das
câmaras. As imagens já têm lugar na História como evidência da guinada que o
governo americano imprime à política internacional.
Zelensky compareceu à reunião na Casa Branca ainda que tivesse sido forçado a concordar com termos menos vantajosos no documento que assinaria — não havia garantia de segurança dos Estados Unidos à Ucrânia. Mesmo tendo cedido, o clima foi tenso. Trump criticou Zelensky por odiar o russo Vladimir Putin, responsável pela invasão da Ucrânia. Quando o ucraniano argumentou que não se deve confiar em Putin, porque ele já quebrou várias promessas, Vance respondeu dizendo que aquilo era um desrespeito a Trump. Daí em diante, Zelensky foi atacado até o fim. No final, humilhado pelos anfitriões, não assinou nada. Numa rede social, agradeceu a Trump e escreveu: “A Ucrânia precisa de paz justa e duradoura, e estamos trabalhando exatamente para isso”. Lideranças europeias reagiram em uníssono em apoio a ele.
Zelensky está repleto de razão ao desconfiar
das intenções de Putin, tratado com deferência pelo governo americano desde a
posse de Trump. Em 1994, no Memorando de Budapeste, os ucranianos abriram mão
de seu arsenal atômico em troca do respeito à soberania do país e da proteção
política e diplomática de Estados Unidos, Reino Unido e Rússia em caso de
agressão. Vinte anos depois, Putin tornou o documento letra morta com a invasão
da Crimeia. Em 2022, voltou a invadir território da Ucrânia, imaginando que voltaria
a tomar conta do país como nos tempos da União Soviética. Graças às armas do
Ocidente e aos soldados ucranianos, a aposta deu errado. Mas desde então a
guerra tem provocado dezenas de milhares de mortes, perturbado a geopolítica e
a economia global e deixado o mundo perplexo.
Parece evidente que Putin continuará sua
expansão territorial se tratado com benevolência em qualquer acordo. É nisso
que acreditam os europeus e era nisso que acreditava o governo americano. Mas
Trump está convencido do contrário. Entre as diatribes que disparou no Salão
Oval, afirmou que Zelensky arrisca provocar uma Terceira Guerra Mundial se não
se render a termos favoráveis aos russos. Para ele, a negociação de paz é como
um jogo de cartas em que vence quem tem a melhor mão. “Você não tem as cartas
agora”, disse a Zelensky. “Não estamos jogando cartas”, respondeu o ucraniano.
Constatar o óbvio — a geopolítica não é um
jogo de cartas — infelizmente não persuadirá um governo comandado por alguém
como Trump. O mundo entrou numa fase mais perigosa. Ninguém confiará mais num
país que trata aliados históricos como aproveitadores. Por isso a Europa
desenha seu futuro para alcançar independência militar dos Estados Unidos,
assim como o Canadá e outras democracias. A busca por rearmamento e novas
alianças traz incertezas, mas é preciso conter as ambições imperiais de Putin.
É delas que vem o risco de uma Terceira Guerra.
Calor extremo deve ser preocupação central
das autoridades no carnaval
O Globo
Meteorologistas preveem termômetros em alta
até quarta-feira. É preciso garantir hidratação e socorro médico
‘Allah-lá-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô/ Mas que calor
ô-ô-ô-ô-ô-ô.’
A marchinha de Haroldo Lobo e Antônio
Nássara, que desde os anos 1940 embala gerações nos carnavais, nunca foi tão
atual. De acordo com o Climatempo, a nova onda de calor — a quinta neste ano —
testará os limites dos brasileiros no Centro-Sul, estendendo-se até a
Quarta-Feira de Cinzas. As temperaturas estarão entre 5 oC e 7 oC acima da
média em estados como São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Meteorologistas preveem termômetros
acima dos 40 oC em várias regiões. No Rio, fevereiro poderá ser o mês mais seco
desde 1997.
Seria exagero deixar de aproveitar blocos,
trios elétricos ou escolas de samba devido ao calor, mas é preciso ficar
atento. Considerando que boa parte dos desfiles acontece durante o dia — muitas
vezes sob sol a pino —, com milhares de foliões amontoados, é preciso que
autoridades e cidadãos se previnam contra os efeitos do calor extremo.
Hidratação é fundamental. Prefeituras e organizadores têm o dever de oferecer
água gratuitamente durante os cortejos. Além disso, é essencial providenciar
ambulâncias e preparar a rede de saúde para eventual aumento de atendimentos,
dando atenção especial a crianças e idosos.
Não se trata de detalhe irrelevante. Calor
excessivo pode matar. Em novembro de 2023, uma jovem morreu depois de passar
mal em show da cantora Taylor Swift com 60 mil espectadores no Estádio Nilton
Santos (Engenhão), na Zona Norte do Rio. As investigações apontaram exaustão
térmica causada pelo calor. Posteriormente, uma portaria da Secretaria Nacional
do Consumidor estabeleceu que organizadores de shows, festivais e outros
grandes eventos devem permitir a entrada de garrafas d’água e fornecer pontos
de hidratação gratuita.
O cuidado com o calor é mais um item na lista
de preocupações que as prefeituras devem ter para que o carnaval transcorra
com o mínimo de dano possível. É preciso também providenciar banheiros químicos
em número compatível com o tamanho dos blocos, reforçar a segurança para coibir
brigas, assaltos e arrastões, implementar as interdições de trânsito necessárias
e deixar de prontidão as equipes de limpeza para que a sujeira seja recolhida
tão logo os desfiles acabem. Afinal, as cidades não pertencem apenas aos
foliões.
Carnaval é diversão para milhares de
brasileiros e um grande negócio para tantos outros. Além de atrair turistas,
movimenta hotéis, restaurantes, transportes, indústrias, comércio. Em São
Paulo, que anuncia para este ano “o maior carnaval do Brasil”, serão 601
blocos. No Rio, 482 desfiles oficiais. Em Belo Horizonte, mais de 600 cortejos.
A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) estima
que o faturamento no país chegará a R$ 12 bilhões. É saudável que o espírito
carnavalesco tome as ruas. Mesmo com o “maçarico” ligado, o Brasil tem tudo
para fazer um grande carnaval. Basta que as autoridades providenciem
infraestrutura adequada e os foliões tomem precauções para não deixar o calor
estragar a festa.
Queda no lucro da Petrobras é alerta para uso
político
Folha de S. Paulo
Estatal tem queda na rentabilidade e alta em
investimentos, que podem estar relacionados à intenção de aquecer economia
A
queda de 70,6% no lucro da Petrobras em 2024, para R$ 36,6 bilhões,
preocupa a todos que se lembram da má gestão que quase levou a empresa à
insolvência nos mandatos petistas anteriores.
No quarto trimestre do ano passado houve
prejuízo de R$ 17 bilhões, invertendo o resultado positivo de R$ 31 bilhões
observado no mesmo período de 2023. Felizmente, boa parte da piora é
justificada por fatores pontuais ou de mercado, até aqui.
A diminuição da rentabilidade no trimestre
final de 2024 se deu principalmente por conta da variação cambial, que afeta o
endividamento e o resultado contábil de subsidiárias no exterior, sem
representar saída de caixa. Houve também queda de 2,3% na cotação do petróleo no
ano e menores margens no refino, da ordem de 40%, em linha com o que se observa
no mercado em geral.
Por fim, a redução de 3% da produção de
petróleo em 2024, para 2,7 milhões de barris por dia, se justifica por paradas
de manutenção. Não há sinais claros de deterioração operacional.
A principal preocupação se dá nos
investimentos, que
somaram R$ 91 bilhões no ano passado, alta de 31% em relação a 2023. Em
dólares, como a estatal normalmente divulga o indicador, o valor ficou 15%
acima da projeção indicada anteriormente.
Tal discrepância foi justificada como
temporário e reflexo de uma antecipação de pagamentos antes da execução efetiva
para evitar atrasos aos fornecedores, mas gerou inquietação sobre se haverá
aumento no plano de aportes nos próximos anos para seguir os desígnios do
Planalto de utilizar a estatal como ferramenta para objetivos políticos.
No cômputo geral, a piora operacional e a
alta dos investimentos reduziram a disponibilidade para pagamento de
dividendos.
A empresa distribuiu R$ 9,1 bilhões no quarto
trimestre, cerca de R$ 5 bilhões a menos que o esperado pelo mercado. No ano, o
desembolso aprovado ficou em ainda respeitáveis R$ 75,8 bilhões, mas há duvidas
quanto a reduções adicionais.
Daí a reação negativa dos detentores de
papéis da empresa, que chegaram a derrubar o preço da ação em até 9% no dia
seguinte ao anúncio. É objeto de debate se mais investimentos rentáveis no
momento seriam preferíveis a maior remuneração ao acionista. Mas o ponto chave
é justamente sobre os critérios de decisão.
O
uso da companhia para alavancar a economia sem grandes preocupações
com rentabilidade esteve na raiz dos problemas passados, quando uma sequência
de desperdícios, regras de conteúdo local mal concebidas e corrupção legaram
enorme endividamento, que no pior momento atingiu cerca de cinco vezes o
resultado operacional da estatal.
Se a direção atual aceitar repetir a
experiência, a empresa e o país somente colherão novos problemas. Felizmente,
hoje o escrutínio social e dos órgãos de controle é maior, mas toda a
vigilância é necessária.
Trump faz da truculência a base de sua
política migratória
Folha de S. Paulo
Fim do dispositivo que agenda pedidos de
acesso aos EUA soma-se a discurso xenofóbico e perseguição a estrangeiros
Em pouco mais de um mês, Trump pôs em marcha
uma perseguição contra estrangeiros em situação irregular no país e condenou
cerca de 270 mil latino-americanos e caribenhos ao limbo do lado mexicano da
fronteira do país.
Na série de reportagens "Pesadelo
Americano", a Folha revela o caráter eticamente indefensável
da decisão do republicano de extinguir o CBP One, aplicativo criado em 2023
para agendar as solicitações de acesso aos Estados
Unidos —de janeiro a fevereiro, cerca
30 mil audiências marcadas foram subitamente canceladas.
A iniciativa inclui o envio adicional de
tropas à região, a expansão do muro que construiu em seu governo anterior e o
bloqueio de recursos federais a organizações de apoio a imigrantes.
Uma enxurrada de ações judiciais tenta
reverter o quadro, mas ainda não abala a retórica de Trump, que acusa
falsamente os imigrantes de criminosos.
Se há uma invasão de imigrantes, como clama o
mandatário e seus apoiadores, dados recentes a contradizem. A apreensão de
indocumentados na fronteira caiu de um pico histórico de 302 mil, em dezembro
de 2023, para 61,3 mil em janeiro deste ano.
Aqueles que driblaram os controles, jamais
flexibilizados, compõem a massa de 13,7 milhões de imigrantes irregulares.
Trata-se de 4% da população de uma nação onde prevalece o pleno emprego e
atividades braçais raramente são exercidas por descendentes de europeus.
Trump, por óbvio, pouco importa-se com a
antiga crise humanitária do lado mexicano, onde migrantes de vários países
aglomeram-se com a esperança de trabalhar nos EUA, o que gera impostos ao
governo americano.
Já se sabia que não seria de seu feitio
atentar-se a relatos como o do haitiano Jean ou das hondurenhas Wendy Yamileth
e Marlén Cabrera, ouvidos pela reportagem. Como milhares que lutaram para
chegar à fronteira, aguardavam audiência pelo CBP One quando souberam da sua
extinção. Resta-lhes o refúgio no México ou o
retorno a suas origens.
Da política migratória de Trump, alheia
a princípios constitucionais, dos direitos
humanos e às necessidades do mercado de trabalho dos EUA, sobressai a
omissão em fomentar a cooperação econômica e de segurança com os países de onde
provém os estrangeiros em desespero.
Até o momento, prevalece sua incitação a uma guerra comercial com vizinhos e aliados que também visa conter as levas migratórias, criando assim um círculo vicioso que em nada beneficiará a população americana.
Vem aí a ministra da discórdia
O Estado de S. Paulo
Ao trazer Gleisi Hoffmann para o governo,
Lula mostra que está disposto a ir para o tudo ou nada pela reeleição, ainda
que isso prejudique a governabilidade e implique riscos para o País
O presidente Lula da Silva confirmou na tarde
de ontem que a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, será a substituta do ministro
Alexandre Padilha na Secretaria de Relações Institucionais (SRI). A deputada
paranaense, portanto, ficará incumbida da articulação política do governo com o
Congresso a partir do próximo dia 10 de março, quando está prevista sua posse.
São incertos os resultados da ida de Gleisi
para a SRI no que concerne aos interesses político-eleitorais do presidente da
República, mas as agruras do PT e de Lula nesse particular são irrelevantes.
Para o País, contudo, não poderia ter havido escolha pior para uma área tão
sensível do governo – e uma das mais carentes de competência e espírito
público.
Gleisi Hoffmann é a antítese do esforço de
concertação política de que o Brasil precisa para avançar em uma agenda
virtuosa comum, que seja capaz de exprimir o melhor interesse público em meio
às rusgas ideológicas que não raras vezes têm travado o bom debate político no
Brasil. Como presidente do PT, Gleisi pode até ter contribuído, como Lula
argumenta, para a formação de palanques durante a campanha vitoriosa do petista
em 2022, articulando sua candidatura com uma variada gama de partidos. Mas,
àquela época, tratava-se exatamente disto, de uma campanha eleitoral – e contra
um incumbente amplamente rejeitado.
Com Lula eleito e empossado, a sra. Gleisi
Hoffmann não contribuiu com uma palavra sequer para a pacificação do País nem
tampouco para a construção daquela agenda virtuosa, que haveria de derivar de
um governo que refletisse, de fato, a frente ampla que o elegeu. Muitíssimo ao
contrário. Passada a eleição, a presidente do PT se esmerou no papel de agente
da discórdia, não raro sabotando políticas do próprio governo petista, em
particular as formuladas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Portanto, a decisão do presidente de nomear
Gleisi Hoffmann para o cargo de ministra das Relações Institucionais, longe de
trazer alívio, liga um incandescente sinal de alerta para a estabilidade
política do País. Tida e havida como uma das figuras mais polarizadoras da
política brasileira, Gleisi Hoffmann, uma vez encarregada da articulação
política com o Congresso – e, por extensão, com o conjunto da sociedade –, pode
representar um passo decisivo em direção à ingovernabilidade.
Ao contrário do que seriam os atributos
ideais de alguém à frente da SRI, Gleisi sempre se comportou como um obstáculo
à pacificação do País – não raro manifestando certo orgulho por isso. Ao invés
de promover o diálogo, ela tem sido mais uma advogada incansável de posições
radicalmente opostas àquelas defendidas por uma parcela significativa da
população brasileira e às vezes até pelo próprio governo, como evidenciam as
suas diatribes contra o mercado financeiro, o Banco Central, o Congresso, a
direita em geral e países alinhados com os valores liberais democráticos,
cerrando fileiras na defesa de autocracias repulsivas por alinhamento
ideológico, pura e simplesmente.
Esse perfil de enfrentamento incessante –
decerto admirado por um presidente que se ressente da falta de “agressividade”
de alguns de seus ministros – faz com que a escolha de Gleisi para a
articulação política se torne mais preocupante do que normalmente já seria.
Trata-se de uma função que exige, por óbvio, habilidade política, tato e
capacidade de transitar entre diferentes espectros ideológicos – atributos que
Gleisi não tem. A bem da verdade, nem precisaria ter, pois sempre que instado a
decidir entre a competência e a fidelidade canina de seus correligionários,
Lula nunca titubeou ao fazer sua escolha.
Por tudo isso, ao invés de ajudar a construir
pontes e restabelecer os laços comuns entre os brasileiros, malgrado suas
eventuais dissensões ideológicas, Gleisi tem se destacado por seu especial
denodo em erigir muros. Isso reforça que, premido pela queda recorde de sua
aprovação, Lula parece disposto a ir para o tudo ou nada pela reeleição, ainda
que isso prejudique a governabilidade e implique consequências imprevisíveis
para a estabilidade política e econômica do País.
Todos estão errados
O Estado de S. Paulo
Na briga entre o Departamento de Estado dos
EUA, o governo do Brasil e o STF, em particular Alexandre de Moraes, quem sai
de olho roxo são as instituições republicanas de ambos os países
O Estado Democrático de Direito é quem sai
estropiado da rinha entre o Departamento de Estado dos EUA, o Supremo Tribunal
Federal (STF), em particular o ministro Alexandre de Moraes, e o governo do
Brasil, por meio do Ministério das Relações Exteriores. Numa briga em que todos
estão errados, embevecidos pela imagem de paladinos da democracia que fazem de
si mesmos, as maiores vítimas são justamente as liberdades democráticas e as
instituições republicanas de ambos os países.
No dia 26 passado, como se sabe, o
Departamento de Estado norte-americano publicou uma declaração infundada para
atacar a decisão do ministro Alexandre de Moraes de suspender a rede social
Rumble no Brasil. Em um caso muito semelhante ao que envolveu o X, rede social
do bilionário Elon Musk, Moraes bloqueou o acesso à plataforma de vídeos em
todo o território nacional por seu reiterado descumprimento de decisões
judiciais no País, condicionando o desbloqueio à formalização de uma
representação jurídica do Rumble em âmbito local.
Ora, o Brasil é soberano para editar suas
leis. Qualquer empresa que aqui pretenda fazer negócios há de se sujeitar a
elas, entre as quais se destaca a necessidade da representação local. Por
óbvio, há também que respeitar as decisões da Justiça brasileira. Logo, a
decisão de Moraes que suspendeu o Rumble, sob esse aspecto, era mais que
razoável, era mandatória à luz do ordenamento jurídico nacional.
Porém, colonizado para servir aos interesses
privados do presidente Donald Trump e de seus asseclas, o Departamento de
Estado dos EUA distorceu a decisão do STF, como destacou o Itamaraty em nota,
tratando-a como censura e, ora vejam, uma violação da soberania daquele país.
Esse entendimento não prosperou nem na Justiça norte-americana, que negou
liminar contra a decisão de Moraes em um processo movido contra o ministro pelo
Rumble e pelo Trump Media & Technology Group. Para a juíza Mary Scriven, os
efeitos da decisão do STF, evidentemente, estão circunscritos à jurisdição do
Brasil. A fervura deveria ter baixado nesse ponto.
Mas Moraes reagiu da pior maneira possível,
politizando a questão em termos pueris ao retorquir que “deixamos de ser uma
colônia em 7 de setembro de 1822”. Consta até que o ministro articulou com o
Itamaraty, pasme o leitor, os termos da nota divulgada pela diplomacia
brasileira. Melhor seria se o sr. Moraes ficasse em silêncio e deixasse a
interação política, fora dos autos, permanecer entre os dois governos. Mas isso
parece impossível para quem se apresenta ao País como a vanguarda da democracia
contra tiranias, aqui e alhures.
Se, por um lado, Moraes foi alvo de um
descabido ataque de um governo estrangeiro por conta de uma de suas decisões,
por outro, o ministro há tempos tem exorbitado suas prerrogativas para, em nome
de uma suposta defesa da democracia, cometer uma série de abusos que, ao
contrário, contribui para miná-la. A condução de inquéritos sigilosos e
aparentemente intermináveis para apurar atos golpistas e disseminação de “fake
news” é apenas o exemplo mais infeliz desse apego de Moraes a um acúmulo de
poder que não se coaduna com a própria ideia de República.
Por trás desse vigilantismo exacerbado, como
é notório, está o entendimento obtuso que o sr. Moraes tem sobre as big
techs e o papel que as redes sociais passaram a desempenhar na vida
cotidiana nos últimos anos. Como ficou ainda mais claro na aula magna proferida
pelo ministro aos alunos da Faculdade de Direito da USP, onde também é
professor, Moraes propala uma visão moralista que mal disfarça o espírito
censório que parece orientar não apenas ele, mas quase todo o STF em um esforço
dirigido para a “purgação”, digamos assim, do ambiente digital no Brasil, como
se nas redes sociais só houvesse lugar para discursos virtuosos.
O professor Moraes, a bem da verdade, não tem
uma teoria, e sim uma causa: quer porque quer disciplinar as redes sociais para
salvar a democracia de seus algozes. Nem que para isso tenha de retorcer
princípios democráticos elementares, como a liberdade de expressão, até o ponto
de tornar a própria democracia irreconhecível.
Portanto, na briga entre Moraes e Trump, quem
sai de olho roxo são as instituições republicanas e a própria democracia.
A aula da esquerda uruguaia
O Estado de S. Paulo
A esquerda que assume o poder e a direita que
o cede construíram juntas estabilidade e prosperidade
Após governar o Uruguai de 2005 a 2019, a
esquerda volta ao poder. O direitista Luis Lacalle Pou transmite hoje o governo
a Yamandú Orsi, da Frente Ampla. O presidente Lula da Silva estará na posse e o
Planalto fala em uma “dobradinha” da esquerda. São esperados, nos próximos
anos, encontros cerimoniais, ensaios fotográficos, frases de efeito e notas
oficiais fabricados pelo seu “Ministério da Propaganda”. Mas bom seria se o
petismo extraísse algumas lições dos companheiros uruguaios.
A esquerda uruguaia tem uma ideologia
coerente com os ideais progressistas de um Estado proativo, distributivo e
inclusivo, mas não aparelha a máquina pública e respeita os fundamentos
macroeconômicos. A Frente Ampla é genuinamente ampla, e não contemporiza com
ditaduras, não transige com extremistas, não ostraciza dissidentes, não
demoniza adversários e não nutre ambições hegemônicas. Na oposição, atuou
responsavelmente; no poder, pragmaticamente.
A cultura uruguaia de participação em
organizações civis promove o engajamento político e afasta a fragmentação
social e a polarização. Os partidos são poucos e consistentes. Os eleitores
votam por fidelidade partidária, e não por entusiasmo com personalidades
carismáticas, e os programas constrangem os líderes, e não o contrário.
Esquerda e direita são bem definidas, mas não radicalizadas. Ganhe quem ganhe,
o compromisso com negociações civilizadas segue forte.
A democracia do Uruguai figura em índices
globais como a mais vibrante e menos corrupta da América Latina. No da
Economist Intelligence Unit, o país está entre os 15 mais democráticos do
mundo. Os frutos da civilidade política se colhem na seara socioeconômica. O
Uruguai tem a maior renda per capita da América Latina, as menores
taxas de pobreza e desigualdade, e inflação, juros e impostos baixos. O Estado
de Bem-Estar é generoso e funcional. Orsi promete ampliar gastos sociais, mas
sem aventuras fiscais, e sim atraindo investimentos com mais abertura comercial
e menos burocracia.
O Uruguai tem vantagens constitutivas. Sua
população é pequena e sua cultura é homogênea. Mas países pequenos e homogêneos
autoritários e miseráveis provam que isso não é nada sem vontade política e
mobilização cívica. A cultura republicana foi constituída após uma ditadura
feroz. “A democracia uruguaia é um lembrete de que a estabilidade política não
é um acidente ou um fenômeno cultural inato. É o resultado de esforços
conscientes para construir instituições, manter a equidade econômica, e
cultivar o respeito democrático”, disse na Foreign Policy o cientista
político Oliver Stuenkel. “O Uruguai resistiu à onda global do populismo e da
polarização. Agora deve provar que também pode se erguer aos desafios do
futuro”.
E são muitos. O país é um oásis
latino-americano, e não um paraíso. Após o boom das commodities a
economia desacelerou. A educação está estagnada. A criminalidade está
escalando.
Tudo isso testará a capacidade da esquerda uruguaia de encarar o presente e construir um futuro próspero. Mas ela está anos-luz à frente de uma esquerda brasileira confinada em fantasias do passado.
Despreocupação com a ameaça plástica
Correio Braziliense
É no mínimo um contrassenso que o Brasil, um
país que se coloca como figura-chave no debate sobre a crise ambiental, exiba
recordes tão insalubres sobre poluição por plástico
É utópico acreditar que o mundo funcionaria,
hoje, se fosse proibido o uso do plástico. O produto cuja produção deslanchou
após a Segunda Guerra Mundial é curinga na indústria de embalagens e componente
obrigatório em materiais médicos, obras de infraestrutura, vestuários,
automóveis, eletrônicos diversos…Sem dúvidas, trata-se de um material que está
na engrenagem da vida moderna. Mas que também tem se revelado cada vez mais
ameaçador à humanidade.
Dois estudos científicos divulgados nas
últimas semanas ilustram o tamanho do problema. O cérebro concentra mais
vestígios desse material do que outros órgãos humanos, com aglomeração subindo
em ritmo industrial. E mais: corre no Brasil o segundo rio mais poluído por
microplásticos do mundo, fenômeno que tem comprometido as águas de todos os
cantos do planeta. Não à toa, a Organização Mundial da Saúde (OMS) usa
expressões como tsunami e inundação para se referir aos atuais impactos desse
tipo de lixo nas populações, principalmente as mais vulneráveis.
Na avaliação de pesquisadores da Universidade
do Novo México (EUA), responsáveis pela recente análise da presença do material
no corpo humano, a situação é alarmante. Em artigo publicado na renomada
revista Nature Medicine, a equipe relata que a concentração de microplásticos
no cérebro aumentou 50% em oito anos. No caso de indivíduos diagnosticados com
demência, é pior: havia 10 vezes mais plásticos no tecido cerebral. Apesar de
não ser possível estabelecer uma relação de causa e efeito, a diferença relevante
indica a importância de mais investigações, sobretudo em tempos de também
expressivo envelhecimento populacional.
Quanto às águas, é o Rio Bugres, entre
Santos e São Vicente, no litoral de São Paulo, que tem a concentração de
resíduos plásticos "nunca vista antes na costa da América Latina",
segundo artigo conduzido pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares
(Ipen) e publicado na revista Marine Pollution Bulletin. Apenas Pasur, em
Bangladesh, está em condições mais precárias. No caso do rio brasileiro, a
maior abundância de microplásticos foi encontrada em áreas de palafitas
densamente povoadas e coleta precária de lixo, evidenciando a urgência de
medidas de infraestrutura e saneamento nas cidades de economia pujante e de
forte apelo turístico.
Não são as únicas a enfrentar esse cenário.
Um estudo em andamento na Universidade Federal do Pará estima que são lançados
anualmente nos rios amazônicos 182 mil toneladas de plástico, o que faz com que
a bacia hidrográfica esteja entre as mais poluídas no mundo. É no mínimo um
contrassenso que um país que se coloca como figura-chave no debate sobre a
crise ambiental exiba recordes tão insalubres. Há de se lembrar que o Brasil é
um dos principais produtores do material do planeta, o que deveria avolumar a responsabilidade
com o descarte.
Pelo mundo, a despreocupação com a ameaça plástica se repete — como visto na última reunião da ONU sobre o tema, em novembro, na Coreia do Sul. Na ocasião, representantes de 175 nações não conseguiram fechar o tratado de redução desses poluentes. O instrumento internacional vem sendo discutido desde 2022. E a expectativa é de que uma nova rodada de negociações ocorra ainda neste ano. Sem acordo, o planeta segue com a vergonhosa reciclagem de míseros 9% do plástico produzido e previsões, pela OCDE, de que a produção do material triplique até 2060.
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