Folha de S. Paulo
Sob Trump, Europa navega em águas
desconhecidas e precisa erguer edifício de segurança independente
O reality show da humilhação de Zelenski
promovido por Trump, no Salão Oval, concluiu a ruptura entre EUA e Ucrânia e o
alinhamento da Casa Branca à Rússia de Putin. O evento, salpicado por ameaças,
insultos e acusações, segue-se às negociações bilaterais EUA/Rússia sobre o
futuro da Ucrânia, às declarações de Trump atribuindo aos europeus a
responsabilidade por garantias de segurança ao país invadido e ao voto
pró-russo dos EUA na ONU. O conjunto da obra assinala o virtual desmoronamento
da Otan.
A Aliança Atlântica ainda existe no papel, mas perdeu sua alma, expressa no artigo 5 do tratado fundador que classifica um ataque militar contra qualquer de seus integrantes como agressão a todos. O artigo anulou, no plano geopolítico, a separação geográfica entre EUA e Europa pela vastidão do Atlântico. De agora em diante, volta a existir, nas palavras de Trump, "um maravilhoso oceano" dissociando a superpotência norte-americana das nações europeias.
Trump realiza um antigo sonho da esquerda
"anti-imperialista" que descreve a Otan como ferramenta da hegemonia
dos EUA. A história, contudo, ensina que a Otan foi responsável pela
estabilização geopolítica da Europa Ocidental no pós-guerra –ou seja, pelo
renascimento democrático das nações que escaparam à esfera de influência
soviética.
Naqueles países, floresceram a pluralidade
política, os sindicatos, as liberdades civis, os direitos individuais. Neles, a
esquerda social-democrata teve a oportunidade de governar e expandir as redes
de proteção social. Sob o manto da segurança garantida pela Otan, nasceu a
União Europeia.
Mais tarde, paradoxalmente, a Aliança
Atlântica tornou-se a única moldura viável para o exercício da soberania
nacional no leste europeu, A prova positiva disso encontra-se na insistência
das nações libertadas do jugo soviético em 1989 em ingressar na Otan. A prova
negativa encontra-se nas duas invasões imperiais russas da Ucrânia, violando o
Memorando de Budapeste (1994) pelo qual os ucranianos cederam seu arsenal
nuclear à Rússia em troca do reconhecimento de suas fronteiras.
Putin (e Lula também, por sinal) acusa a Otan
de ser a causa de sua guerra –ainda que, em textos e discursos, clame pela
incorporação do vizinho à "Grande Rússia". De fato, a Aliança
Atlântica funcionou, desde a implosão da URSS, como garantia da paz no arco que
se estende da Estônia à Romênia.
Depois de 1990, os europeus deixaram-se
embalar pelo idílio de uma paz eterna assegurada pelo artigo 5 e reduziram
drasticamente seus investimentos em defesa. Hoje, sob o impacto da abjuração de
Trump, a Europa navega em águas desconhecidas –e precisa erguer um edifício de
segurança independente.
Jean Monnet, o "pai fundador" da
União Europeia, desenhou o esboço de uma Comunidade Europeia de Defesa (EDC),
que seria um pilar autônomo no interior da OTAN. A EDC ganhou forma no Tratado
de Paris (1952), assinado pela França, RFA (Alemanha Ocidental), Itália e
Benelux mas rechaçado pela Assembleia Nacional francesa. Nesses dias de fúria,
os líderes europeus correm a Washington em busca de um aceno benevolente de
Trump. Quanto demorarão para correr aos arquivos de Bruxelas em busca de inspiração
no tratado rejeitado sete décadas atrás?
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