sábado, 1 de março de 2025

O dia em que a Otan acabou - Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo

Sob Trump, Europa navega em águas desconhecidas e precisa erguer edifício de segurança independente

O reality show da humilhação de Zelenski promovido por Trump, no Salão Oval, concluiu a ruptura entre EUA e Ucrânia e o alinhamento da Casa Branca à Rússia de Putin. O evento, salpicado por ameaças, insultos e acusações, segue-se às negociações bilaterais EUA/Rússia sobre o futuro da Ucrânia, às declarações de Trump atribuindo aos europeus a responsabilidade por garantias de segurança ao país invadido e ao voto pró-russo dos EUA na ONU. O conjunto da obra assinala o virtual desmoronamento da Otan.

A Aliança Atlântica ainda existe no papel, mas perdeu sua alma, expressa no artigo 5 do tratado fundador que classifica um ataque militar contra qualquer de seus integrantes como agressão a todos. O artigo anulou, no plano geopolítico, a separação geográfica entre EUA e Europa pela vastidão do Atlântico. De agora em diante, volta a existir, nas palavras de Trump, "um maravilhoso oceano" dissociando a superpotência norte-americana das nações europeias.

Trump realiza um antigo sonho da esquerda "anti-imperialista" que descreve a Otan como ferramenta da hegemonia dos EUA. A história, contudo, ensina que a Otan foi responsável pela estabilização geopolítica da Europa Ocidental no pós-guerra –ou seja, pelo renascimento democrático das nações que escaparam à esfera de influência soviética.

Naqueles países, floresceram a pluralidade política, os sindicatos, as liberdades civis, os direitos individuais. Neles, a esquerda social-democrata teve a oportunidade de governar e expandir as redes de proteção social. Sob o manto da segurança garantida pela Otan, nasceu a União Europeia.

Mais tarde, paradoxalmente, a Aliança Atlântica tornou-se a única moldura viável para o exercício da soberania nacional no leste europeu, A prova positiva disso encontra-se na insistência das nações libertadas do jugo soviético em 1989 em ingressar na Otan. A prova negativa encontra-se nas duas invasões imperiais russas da Ucrânia, violando o Memorando de Budapeste (1994) pelo qual os ucranianos cederam seu arsenal nuclear à Rússia em troca do reconhecimento de suas fronteiras.

Putin (e Lula também, por sinal) acusa a Otan de ser a causa de sua guerra –ainda que, em textos e discursos, clame pela incorporação do vizinho à "Grande Rússia". De fato, a Aliança Atlântica funcionou, desde a implosão da URSS, como garantia da paz no arco que se estende da Estônia à Romênia.

Depois de 1990, os europeus deixaram-se embalar pelo idílio de uma paz eterna assegurada pelo artigo 5 e reduziram drasticamente seus investimentos em defesa. Hoje, sob o impacto da abjuração de Trump, a Europa navega em águas desconhecidas –e precisa erguer um edifício de segurança independente.

Jean Monnet, o "pai fundador" da União Europeia, desenhou o esboço de uma Comunidade Europeia de Defesa (EDC), que seria um pilar autônomo no interior da OTAN. A EDC ganhou forma no Tratado de Paris (1952), assinado pela França, RFA (Alemanha Ocidental), Itália e Benelux mas rechaçado pela Assembleia Nacional francesa. Nesses dias de fúria, os líderes europeus correm a Washington em busca de um aceno benevolente de Trump. Quanto demorarão para correr aos arquivos de Bruxelas em busca de inspiração no tratado rejeitado sete décadas atrás?

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