sábado, 1 de março de 2025

Os tambores de Milton - Eduardo Affonso

O Globo

Sob o manto da Portela, pelas lentes da Flávia Moraes, é como se o Brasil fizesse um travesseiro dos seus braços

Lá vem Portela, com Milton em seu altar. Lado a lado, a águia altaneira e o passarim preto de terno azul e branco. E, quando o solidário que não quer solidão emergir daquele rio de asfalto e gente, os tambores de Minas soarão.

Soarão como samba trazendo alvorada, feito uma reza, um ritual. Com sabor de vidro e corte, com cheiro de cravo e canela, para lembrar que o azul e branco da Portela é o mesmo do Cruzeiro. (Milton merecia um samba feito por Paulinho da Viola e Paulo César Pinheiro.) Que falasse dos bailes da vida, do Beco do Mota, dessa gente que ri quando deve chorar — e inventasse na avenida um cais ligando Minas ao Rio, ao mar. Um samba para mostrar à arquibancada que o que importa é ouvir a voz que vem do coração e para deixar mestre-sala e porta-bandeira com a roupa encharcada — e a alma repleta de chão.

Um samba que trouxesse, como puxadoras, Elis, Gal, Lília, Rita Lee e juntasse — numa esquina da Sapucaí, a lembrar que nada será como antes, amanhã — os irmãos Borges, Bituca, Beto, Bastos, Brant. Que abrisse as janelas ao negro do mundo lunar e não nos deixasse esquecer que todo amor é sagrado, que qualquer maneira de amor vale amar.

Se na madrugada da Quarta-Feira de Cinzas Milton encerra o desfile como a majestade do samba da Portela, na noite do dia 20 é na tela que estará. Ele é a estrela — de três, quatro, cinco mil pontas — de “Milton Bituca Nascimento”, filme em que o olhar atento e afetuoso da cineasta Flávia Moraes acompanha a “Última sessão de música”, sua turnê de despedida.

O enredo vai das grutas onde o menino descobriu (ou inventou) o poder de sua voz, ao quarto de hotel onde, octogenário, evoca Guimarães Rosa: “O real não está no início, nem no fim; ele se mostra pra gente é no meio da travessia”. Do rádio em que ouvia Ângela Maria aos palcos de Los Angeles; da gótica Union Chapel de Londres às igrejas barrocas de Ouro Preto. Parte da esquina de Santa Teresa, em Belo Horizonte, e chega aonde se cruzam Lisboa, Rio, Nova YorkVeneza. Ali onde o cidadão do mundo encontra os que o guardam do lado esquerdo do peito: Pat Metheny, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Quincy Jones, Paul Simon, Spike Lee. E Chico, Gil, Caetano, Simone, João Bosco, Ivan Lins, Criolo, Mano Brown, Esperanza Spalding, Carminho — e a nova geração que o redescobre (e o reinventa) agora. 

O samba não diz, mas Milton esteve desde sempre no cinema. Foi parceiro de Ruy Guerra em “Os deuses e os mortos”; de Nelson Pereira dos Santos, em “A terceira margem do rio”; de Paulo César Saraceni, em “O viajante”. Escreveu as canções de “Tostão, a fera de ouro”, naqueles anos 1970 em que o Brasil era o país do futebol e também “da dor e do medo/da ferida aberta, veneno/que nos mata mais cedo”. Se embrenhou na Amazônia com Werner Herzog em “Fitzcarraldo”, e com Carlos Alberto Prates Correia nas “Noites do sertão”.

Sua música insuflou anima aos bailarinos do grupo Corpo, em “Maria Maria”, e os conduziu pelos trilhos de “O último trem”. Seu timbre de bronze, forjado nas vozes femininas, embalou versos de Gullar, Pessoa, Drummond e do Brasil mais profundo — que se chama Minas.

Na passarela ou na tela do cinema, sob o manto da Portela, pelas lentes da Flávia Moraes, é como se o Brasil fizesse um travesseiro dos seus braços, e não há como o coração não se deixar levar. Por Milton Bituca Nascimento, pela azul e branco, por Minas Gerais.

 

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