O pontífice rejeita as formas de religiosidade que deságuam no “consumismo do sagrado”
A saúde debilitada do papa Francisco impulsionou
meus neurônios a relembrar suas palavras, em uma mensagem aos cristãos:
“Vigiemos o narcisismo e o exibicionismo,
baseados na vanglória que levam também nós cristãos a ter sempre nos lábios a
palavra ‘eu’ : ‘eu fiz isto, eu havia dito, eu havia entendido’. Onde há muito
eu, há pouco Deus.”
Narcisismo, exibicionismo e autoritarismo são as marcas registradas de Donald Trump. Enquanto Donald Trump tomava posse em Washington para o exercício de seu primeiro mandato, Francisco concedia no Vaticano uma longa entrevista ao El País, em que pedia prudência ante os alarmes acionados com a chegada do egótico presidente dos Estados Unidos – “é preciso ver o que ele faz; não podemos ser profetas de calamidades” –, embora advertindo que, “em momentos de crise, o discernimento não funciona” e os povos procuram “salvadores” que lhes devolvam a identidade “com muros e arames farpados”.
Diante das trumpadas de Trump, os neurônios
revigorados insistiram em conduzir minha atenção para as fragilidades e
insuficiências de homens arrogantes, como Donald Trump e Elon Musk. Na mesma
toada, os inquietos neurônios suscitaram recordações das transformações da
Igreja nos tempos de João XXIII. Na encíclica Mater et Magistra, papa João
advoga o reatamento das relações entre transcendência e imanência.
“O cristianismo é, de fato, a realidade da
união da terra com o céu, uma vez que assume o homem, na sua realidade concreta
de espírito e matéria, inteligência e vontade, e o convida a elevar o
pensamento, das condições mutáveis da vida terrena, até às alturas da vida
eterna, onde gozará sem limites da plenitude da felicidade e da paz.
De modo que a Santa Igreja, apesar de ter
como principal missão a de santificar as almas e de as fazer participar dos
bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as
exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento
e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à
civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias
épocas.”
Esse trecho da Mater et Magistra está
estampado na abertura da encíclica e define com clareza a visão cristã a
respeito das relações entre a transcendência divina e a imanência da vida
concreta dos homens.
A transcendência não pode ser usada como
pretexto para sufocar as liberdades e as carências de mulheres e homens em sua
peregrinação existencial, mas, sim, deve cuidar da valorização e atendimento de
suas angústias e anseios.
O teólogo Hans Küng escreveu em sua obra
magna, The Incarnation of God, que o Deus do Torá – a divindade dos sacerdotes
de Israel – permanecia “externo”, como o “outro” dos homens. Jesus, o Deus
entre os homens, era o amigo homem dos pecadores e falava as palavras da
comiseração do Pai amoroso pelos filhos sofridos.
Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso
com o outro é a negação do cristianismo. Depois da encarnação, a escatologia
judaico-cristã sofre uma transmutação: o tempo adquire uma dimensão histórica.
Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história
coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo
sacrifício da cruz e pela ressurreição. Vamos encerrar com as palavras do papa
Francisco: “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessemos de melhorar,
vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do evangelho, e não deixemos
cair os braços.”
Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon,
Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no
crepúsculo do Império Romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das
concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme
escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”.
Tal como nos personagens do Satyricon, percebo em muitos que hoje se proclamam cristãos a nostalgia do Cristo que não voltou. Por isso, o Papa Francisco rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado” que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Vou repetir: um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo.
*Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.
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