sábado, 12 de abril de 2025

Anistia e ecos de Preussenschlag - Pedro Serrano

Ao Judiciário cabe, nas democracias contemporâneas, a última palavra em termos de interpretação da ordem jurídica

O Supremo Tribunal Federal aceitou as denúncias formuladas pela Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros 33 acusados pelos crimes de organização criminosa armada, abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Por essa razão, intensificam-se as discussões relacionadas à concessão de anistia por parte do Congresso. Ou seja, pretende-se atribuir ao Legislativo a determinação dos limites, bem como a extensão e o alcance, da nossa Constituição, substituindo o STF em seu papel de intérprete final e guardião.

Se, de um lado, a realização do Estado constitucional implica a preservação da esfera de livre decisão política do legislador, ele obriga a conformidade com a Constituição. É no espaço de tensão entre esses dois princípios que a análise da constitucionalidade da anistia deve ocorrer.

O professor Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, em obra pela Editora Contracorrente, constatou que a reação do Tribunal do Estado à decretação do Estado de Emergência na Prússia pelo Presidente do Reich, em resposta ao “domingo sangrento” de 1932, abriu caminho para a nomeação de Adolf Hitler como chanceler do Reich e, mais adiante, para a ascensão plena do nazismo.

Tendo sido questionada a competência do presidente do Reich, o Tribunal do Estado sucumbiu-se ao reconhecimento dos poderes do Chefe do Executivo (caso “Preussen versus Reich”) no que veio a ser conhecido como o “Preussenschlag de 1932”. A decisão foi no sentido de que o ato político praticado pelo chefe do Executivo era insindicável pelo Judiciário. Algum tempo depois, Hitler valeu-se do mesmo dispositivo constitucional para, após incêndio do Reichstag de 1933, implantar o totalitarismo. Não é preciso explicitar os conhecidos desdobramentos que se seguiram, os quais marcaram, com tintas de sangue, a história da civilização.

Ao Judiciário cabe, nas democracias contemporâneas, a última palavra em termos de interpretação da ordem jurídica. Em países como os latino-americanos, providos de Constituições analíticas, diversas decisões sobre da vida pública, em comunidade e dos comportamentos humanos são transferidas para o âmbito da jurisdição constitucional.

Pela primeira vez na nossa história, militares, ministros, presidente da República e outros servidores públicos da alta administração são denunciados por tentativa de golpe de Estado. A finalidade da pretensão responsabilizatória não deve ser estritamente punir. Precisamos deixar claro para as próximas gerações que a sociedade brasileira não aceita ataques violentos à Constituição e à democracia.

Rememoremos que o ex-presidente Bolsonaro proliferou desinformações quanto ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas. Além disso, o ex-presidente jamais reconheceu a vitória de Lula nas eleições e estimulou atos antidemocráticos em frente aos quartéis. Também não podemos esquecer da ruidosa atuação da Polícia Rodoviária Federal com o intuito de impedir o exercício do direito ao voto, dos atos de terrorismo no Aeroporto Internacional de Brasília em dezembro de 2022 e do fatídico dia 8 de janeiro de 2023, ocasião em que símbolos dos poderes constituídos da República brasileira foram, sem precedentes na nossa história, desafiados.

As provas são claras, consistentes e revelam a gravidade dos crimes cometidos contra a nossa democracia. Esses atos atingiram diretamente o coração do Estado Democrático de Direito. Não estamos falando apenas de discursos golpistas, mas de ações concretas, como planos de sequestro e assassinato de autoridades, que colocaram em risco a própria democracia brasileira. Se antes a palavra “golpe” pudesse, no âmbito das ciências humanas em geral, significar uma reprovabilidade do jargão político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de um crime contra as instituições democráticas.

Subvertendo a lógica constitucional, o Congresso não pode outorgar a si próprio a condição de guardião máximo da Constituição. Não se trata de mera interpretação temerária da Carta Magna ou mesmo de abuso, desvio de poder ou de finalidade. A deslegitimação do Judiciário anuncia, às sombras de técnicas de características nazistas, o mais severo desafio imposto à democracia brasileira em sua história recente. Os fins da lei são plausíveis de verificação objetiva pela mens legis e, se destoantes dos fins constitucionais, é dever do Judiciário fulminar seus efeitos. 

Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.

 

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