Entre o ensaio de uma nova ordem internacional e o pesadelo, o poder global quase absoluto apostou no desespero alheio
Este artigo pretende oferecer uma modesta
interpretação dos movimentos que impulsionaram as convergências e divergências
entre Estados Nacionais (e suas Economias) na posteridade da Segunda Guerra
Mundial.
Já antes do término da 2ª Guerra Mundial, o
projeto hegemônico dos vencedores, os Estados Unidos, foi desenhado com o
propósito de eliminar os fatores políticos e econômicos que levaram às duas
conflagrações globais.
A instabilidade econômica e as rivalidades entre os Estados Nacionais e suas economias – entre o final do século XIX e a Segunda Guerra Mundial – foram devastadoras do ponto de vista econômico, social, moral e político. Na Reunião de Bretton Woods em 1944, as forças vitoriosas trataram de criar instituições destinadas a impedir a repetição da desordem destrutiva que nascera da rivalidade entre as potências e da economia destravada.
Só o maniqueísmo típico da Guerra Fria se
atreveria a negar que as forças sociais e o imaginário político predominantes
no New Deal tinham uma visão progressista acerca do papel a ser exercido pelos
Estados Unidos. Em claro antagonismo com as práticas das velhas potências, os
Estados Unidos – tomando em conta o seu autointeresse de forma esclarecida –
se empenharam na reconstrução européia e apoiaram as lutas pela descolonização.
O que se observou, a partir de então, foi um
ensaio – apenas um ensaio – de uma nova ordem internacional com aspirações a
garantir os direitos do homem e do cidadão, os princípios da democracia e da
legalidade internacional. Isto ocorreu, é verdade, num ambiente de tensão
permanente entre as duas superpotências e de competição entre os seus sistemas
de vida. Ao mesmo tempo, cresciam a interdependência e a rivalidade econômica
entre a Europa ocidental, os Estados Unidos e o Japão, assim como se aceleraram
os processos de desenvolvimento em meio à sucessão de crises políticas e golpes
de Estado na periferia.
O desenvolvimentismo na Periferia não foi uma
invenção idiossincrática de países exóticos. Foi também uma resposta aos
desafios e oportunidades criadas pela Grande Depressão dos anos 30 e seu
ambiente internacional catastrófico. Os projetos nacionais de desenvolvimento e
industrialização na periferia nasceram no mesmo berço que produziu o
keynesianismo nos países centrais. Uma reação contra as misérias e as desgraças
produzidas pelo capitalismo dos anos 20.
A onda desenvolvimentista e a experiência
keynesiana tiveram o seu apogeu nas três décadas que sucederam o fim da Segunda
Guerra. O clima político e social estava saturado da ideia de que era possível
adotar estratégias nacionais e intencionais de crescimento, industrialização e
avanço social.
Depois de 30 anos de progresso material,
redução das desigualdades nos países centrais e altas taxas de crescimento na
América Latina e na Ásia emergente, a crise do dólar nos anos 70 foi entendida
pelos Estados Unidos como uma advertência e uma recomendação: era preciso dar
adeus a tudo aquilo. Nesse momento circulava a parêmia: o mal é a política. As
palavras de ordem da potência hegemônica recomendavam a supressão do
intervencionismo do Estado, o poder dos sindicatos, o controle público da
finança, os obstáculos ao livre movimento de capitais.
Ironias da História. Superada a crise da
estagflação e da baixa “produtividade” dos anos 70 do século passado, a
elevação da taxa de juro deflagrada por Paul Volker em 1979 deu novo impulso à
“expansão norte-americana”. À sombra do fortalecimento do dólar, os Estados
Unidos impuseram a liberalização financeira urbi et orbi, assim como
impulsionaram a metástase produtiva para o Pacífico dos pequenos tigres e novos
dragões. Nos últimos 30 anos, a desregulamentação dos mercados e a crescente
liberalização dos movimentos de capitais alteraram profundamente o jogo das
regras.
O desenvolvimento na periferia não foi uma
invenção de países exóticos, mas uma resposta à Grande Depressão
O conto de fadas da globalização acenava com
o fim da história: as questões essenciais relativas às formas de convivência e
ao regime de produção à escala mundial estariam resolvidas com a generalização
da “economia de mercado”. Não haveria mais sentido na reafirmação de questões
anacrônicas, como a promoção de políticas empenhadas no resguardo dos direitos
dos cidadãos à pertinência cívica, laica, igualitária e republicana.
Um jornalista do The Guardian, habitual
cronista das reuniões do World Economic Forum, resumiu em um parágrafo as
diferenças entre o espírito das épocas, entre as reuniões de Bretton Woods e
Dumbarton Oaks e os encontros periódicos de Davos, onde os poderes do mundo
imaginam cuidar do destino dos homens: “Clement Atlee, Ernest Bevin e Roosevelt
acreditavam nos mercados administrados e no controle do capitalismo… por isso
as Conferências de Bretton Woods e de Dumbarton Oaks não foram patrocinadas
pela Coca-Cola. As reuniões de Roosevelt não tinham o apoio do J.P. Morgan,
cujos funcionários, aliás, tratavam de recortar as fotos do presidente
norte-americano, para evitar acidentes, caso o patrão resolvesse ler os
jornais”.
O sonho do fim da história e da cidadania sem
fronteiras transformou-se no pesadelo em que todos são vítimas prováveis do
embate entre o desespero dos desamparados e uma estrutura do Poder Global que
se pretende absoluta, encarnada no rosto da pátria hegemônica.
A dominação trumpista pretende
desconhecer soberania dos demais Estados Nacionais, sem que isso signifique a
criação de instâncias integradoras no âmbito internacional. Muito ao contrário:
o avanço do intervencionismo unilateral provoca a desintegração ou a submissão
dos fóruns multilaterais ao poder norte-americano.
A política norte-americana faz
unilateralmente as intervenções preventivas ou corretivas, segundo a
conjuntura. Sem regras gerais autoaplicáveis e sem consideração pelas regras
que eles mesmos ajudaram a criar, o intervencionismo norte-americano inventa e
reinventa pretextos para expandir, como nunca, o seu poder global. •
Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital,
em 16 de abril de 2025.
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