Calendário abre espaço a reforma administrativa
O Globo
Um quarto dos servidores federais parará de
trabalhar nos próximos dez anos, segundo o próprio governo
Nos próximos dez anos, um quarto do total de
servidores públicos federais, um contingente de 153,6 mil, deverá se aposentar.
O pico de desligamentos ocorrerá neste ano, segundo estimativas do governo
reveladas pelo GLOBO. Trata-se de uma ótima oportunidade para promover
uma reforma
administrativa que represente ganhos de eficiência no setor público.
Infelizmente é difícil acreditar que tal iniciativa parta do atual governo, que
já deu diversas mostras de não considerar o tema prioritário.
O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) afirma dimensionar as demandas antes de definir os concursos públicos que realizará. Com o aumento da automação digital, diversas tarefas se tornaram obsoletas. Seria um contrassenso contratar novos datilógrafos ou até mesmo vigias, serviços que podem ser fornecidos por empresas privadas. Mas é uma lástima que o MGI não demonstre disposição para enfrentar a baixa produtividade dos servidores.
A máquina pública no Brasil é cara e
ineficiente. Os funcionários públicos representam 5,6% da população — fração
inferior à média dos países ricos —, mas as despesas com funcionalismo
equivalem a 13% do PIB, mais que em países conhecidos pela máquina perdulária,
como Portugal ou França. O serviço prestado é de qualidade baixa, e as despesas
com Judiciário e Ministério Público contribuem para aumentar o custo e criar
distorções. Realizar concursos sem enfrentar tais problemas equivale a criar
uma nova geração de brasileiros insatisfeitos com os serviços públicos, pois
novas regras valerão apenas para concursos futuros.
Avanços na carreira dependem apenas de tempo
de serviço e certificados. Competência e desempenho não são critérios para
promoção. Quem é comprometido recebe as mesmas benesses de quem faz corpo mole
até a aposentadoria. Sem gestão de desempenho e avaliações periódicas, nada
mudará. Além disso, as carreiras são fragmentadas e engessadas, muitas vezes
impedindo a transferência de funcionários a setores onde são mais necessários.
O governo editou portaria tentando facilitar
transferências. E até expandiu o Programa de Gestão e Desempenho, mas pouco
mudou na prática. Primeiro, o modelo adotado é voluntário. Segundo, as próprias
equipes podem definir as atribuições de seus cargos. Em resumo, faz quem quer e
do jeito que bem entender. O certo seria aprovar no Congresso um conjunto de
leis que tivesse impacto nos estados e redesenhasse por completo carreiras,
trabalho e remuneração no setor público.
No Legislativo, o compromisso com a
eficiência da gestão também tem sido pífio. Basta ver o que aconteceu com o
Projeto de Lei sobre os supersalários. Cedendo a pressões, o texto original foi
alterado para contemplar inúmeras exceções que tornam completamente ineficaz a
tentativa de restringir os penduricalhos que permitem à elite do funcionalismo
receber remunerações absurdas, acima do teto constitucional.
O presidente Luiz Inácio Lula da
Silva não perde a oportunidade de mencionar seu compromisso em melhorar a vida
dos mais pobres. Pois a reforma administrativa está entre as medidas com maior
potencial positivo na vida dos brasileiros. Até o momento, Lula tem preferido
ficar do lado dos sindicatos do funcionalismo. O Brasil ganharia muito se, em
vez de simplesmente aprovar novos concursos públicos, ele revisse sua posição
sobre o assunto.
Sobreposições no cadastro rural exigem
política permanente de fiscalização
O Globo
Há quase 140 milhões de hectares — o
equivalente ao tamanho do Pará — de propriedades com áreas sobrepostas
O Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado em
2014, trouxe avanço inegável por permitir um registro oficial de propriedades,
necessário tanto para a obtenção de crédito em bancos quanto de licenças
ambientais junto ao governo. Na Amazônia,
contudo, fraudes têm se tornado frequentes. Proprietários de terras têm
registrado áreas sobrepostas para esconder desmatamentos ilegais e têm ocultado
identidade usando laranjas e CPFs falsos. Uma
pesquisa nos registros do CAR feita pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), a
pedido do GLOBO, revelou 139,6 milhões de hectares com sobreposição. É
como se, à extensão territorial do Brasil, fosse acrescida uma área equivalente
ao Pará.
Um exemplo ilustrativo do que tem acontecido
na Amazônia é a fazenda Terra Roxa, do tamanho da cidade do Rio, situada entre
os municípios de São Félix do Xingu e Altamira, no sul do Pará. Surpreendeu
técnicos do Ibama a velocidade com que surgiram na propriedade pastos, estradas
e uma pista de pouso. As obras foram embargadas, e as multas chegaram a R$ 5
milhões, mas a punição jamais foi aplicada. A fazenda está em nome de um
aposentado de Salvador que jamais saiu da cidade. Os técnicos descobriram outros
50 imóveis empilhados na mesma área nos arquivos do CAR.
Falsificações desse tipo foram constatadas
por um estudo do Center for Climate Crime Analysis (CCCA), organização não
governamental que rastreia crimes ambientais. Mais de 9 mil imóveis rurais
foram deslocados ou mudaram de tamanho no CAR entre 2019 e 2024, para tentar
esconder sinais de desmatamentos ou sobreposição com áreas protegidas. Além de
fraudadores preencherem o cadastro com dados inconsistentes ou mesmo falsos, o
tamanho da propriedade costuma ser reduzido para esconder desmatamento. Em 480
casos, fazendas foram parar em rios e lagos distantes.
A Fazenda Jatobá, em Altamira (PA), é outro
desses casos. O Ibama constatou desmatamento e verificou que o proprietário
alterara os dados no CAR, transferindo a propriedade para dentro do Rio Xingu,
a mais de 300 quilômetros. O engenheiro florestal Rodolfo Gadelha de Sousa, do
CCCA, chama casos assim de “fazendas voadoras”.
“O CAR não pode ser vilanizado. Ele é uma
tomografia, um raio X do caos que há no Brasil”, afirma o engenheiro agrônomo
Raimundo Deusdará, ex-presidente do SFB responsável por ter colocado o sistema
em operação. É o cadastro que permite comprovar a sobreposição de terras na
Amazônia. Falta, porém, fiscalização sistemática dos dados do CAR
autodeclarados pelos proprietários. É uma responsabilidade que cabe aos
estados. As informações estão lá, à espera de um trabalho consistente. O
ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, relator de ação exigindo
suspensão imediata do cadastro de imóveis rurais em que tenha sido constatado
desmatamento, determinou que os estados da Amazônia Legal e a União elaborem um
plano para cancelar registros irregulares no CAR. É uma ação bem-vinda, que
precisa ser posta em prática.
Em 100 dias, Trump isola os EUA e ataca as
instituições
Valor Econômico
Presidente americano tenta acabar com a ordem
internacional do pós-guerra da qual os EUA foram o principal artífice
Em apenas 100 dias de governo, o presidente
dos Estados Unidos, Donald Trump, foi capaz de abalar sete décadas da ordem
política e econômica mundial. É uma façanha para poucos, e longe de significar
um avanço histórico - neste curto período de tempo, assemelha-se mais a um
desastre. Em geral, trocas de governo costumam ser acolhidas com esperança ou
ceticismo moderado, não com apreensão, medo e ódio, como agora. Trump quer
mudar o mundo impondo sua vontade com a força de que dispõe no comando da maior
potência mundial. Isso já seria uma missão impossível para um político
excepcional, que tivesse um plano e apoio de amplas camadas da elite e do povo.
Mas ele é errático e segue os caprichos de sua vontade, que são profundamente
divisivos. Os resultados até agora não são bons e podem piorar no futuro.
As pesquisas indicam que a popularidade de
Trump, após 100 dias, é a menor em 80 anos. A avaliação negativa é maior entre
os eleitores independentes, aqueles que preferiram um segundo mandato de Trump
à continuidade no cargo de Joe Biden ou sua substituta, Kamala Harris. As
insatisfações com os democratas tinham razões econômicas, como a alta inflação,
políticas e sociais, como a questão identitária e o avanço da imigração, para a
qual o governo anterior não ofereceu uma resposta que agradasse à maioria da população.
As propostas de Trump seguiram as linhas
esboçadas e não executadas em seu primeiro mandato. A América se tornaria
“grande de novo” restringindo fortemente a imigração, que reservaria os
empregos para os americanos, conseguido por outra medida essencial: criação de
uma muralha tarifária que isolasse do mundo a economia americana, até ontem a
mais aberta e um avatar da globalização.
Para esta guinada histórica, propôs drenar o
“pântano de Washington”, sobrepujando as elites que teriam levado o país à
decadência. O caminho para isso prescinde do respeito às instituições. Trump já
mostrara até onde poderia chegar ao insuflar uma inacreditável rebelião para
impedir a posse do governo legitimamente eleito de Biden - e, o que o tornou
ainda mais confiante, escapou das punições com todos seus direitos políticos
preservados.
O início do segundo mandato foi marcado por
uma enxurrada de decretos para dar rápida forma a mudanças radicais. As tarifas
começaram com 25% contra seus principais aliados comerciais (Canadá e México),
foram ampliadas ao aço e ao alumínio do resto do mundo, automóveis, e depois
instituídas “tarifas recíprocas” que chegavam a 50% sobre produtos de quase uma
centena de países. Tarifas sobre a China atingiram 145%, que estabeleceu
contratarifas de 125%.
Na cena externa, o presidente americano
praticamente rompeu com a Otan, a organização militar formada com potências
europeias para conter a ameaça da então URSS, apoiou as reivindicações do
presidente Vladimir Putin sobre territórios conquistados à força na Ucrânia,
retirou-se do Acordo de Paris e de organizações como a OMS. O unilateralismo de
Trump alienou parceiros tradicionais dos EUA, todos eles com disputas com a
China que poderiam ser catalisadas em uma coalizão com objetivos comuns.
TO que Trump conseguiu até agora foi causar
um gigantesco tumulto global. As ações americanas e o dólar perderam valor, e,
em movimento inédito, isso ocorreu ao mesmo tempo com a venda massiva de
títulos do governo, os mais seguros do mundo. As chances de recessão nos EUA
são cada vez maiores. Para quem prometeu acabar com a inflação, o instrumento
das tarifas é dos mais inadequados, e as expectativas inflacionárias estão
subindo, impedindo o Federal Reserve de reduzir os juros. A guerra tarifária
trouxe a perspectiva de desaceleração global do comércio e do crescimento.
Trump não só significa um retrocesso da
globalização como, o que é mais perigoso, tenta destruir os valores
democráticos. Ele atenta contra o direito de imigrantes que sofrem truculências
ilegais, assim como juízes que tentam fazer valer seus direitos, investe contra
universidades que defendem políticas de inclusão, demite procuradores que
atuaram nos dois processos de impeachment dos quais escapou. Está cortando
verbas de ciência e tecnologia, eliminando a legislação de proteção ambiental,
interferindo em agências reguladoras e demitindo funcionários públicos sem
critérios.
Trump toma decisões rápidas e volta atrás em
seguida, o que impede que fique claro seus próximos passos ou o ponto
intermediário que sua agenda maximalista quer atingir. As tarifas recíprocas
estão suspensas e ele já ensaia um recuo em relação à China. Enquanto a reação
dos mercados pode corrigir até certo ponto o radicalismo de Trump, seus ataques
à democracia parecem ser bem menos flexíveis. O presidente infringirá todos as
normas que lhe convierem, até ser impedido pela Justiça, a qual tenta intimidar.
Trump tenta acabar com a ordem internacional
do pós-guerra da qual os EUA foram o principal artífice. O país não é mais
parceiro confiável de ninguém e, em vez de garantia de estabilidade, tornou-se,
sob Trump, um dos principais atores de uma era de crises.
Governo de Donald Trump envelhece depressa
Folha de S. Paulo
Presidente republicano abusou da verborragia
e da caneta nos primeiros cem dias, mas apenas colhe graves problemas
A surpresa dos primeiros cem dias do segundo
governo de Donald Trump está
mais associada ao ímpeto, ao método e à velocidade na implantação
de sua agenda nacional-populista do que ao teor das medidas, que havia
sido fartamente antecipado nos quatro anos em que passou fora da Casa Branca.
A ideia era transformar os Estados
Unidos num país mais fechado ao comércio internacional e à imigração,
sabotar a aliança entre nações desenvolvidas democráticas, reformar por razão
ideológica a burocracia federal e subjugar organizações consideradas hostis
pelo trumpismo, como as universidades de elite.
O radicalismo da plataforma, numa nação em
que o poder presidencial é limitado por constrangimentos constitucionais
seculares, requereria o esforço planejado e concentrado de políticos e
profissionais talentosos, a definição de prioridades e a paciência dos
reformistas para iniciar agora um processo que apenas ao longo dos anos daria
frutos.
Nada disso combina com o presidente Trump.
Numa corrida destrambelhada, ele pôs-se a assinar decreto atrás de decreto na
expectativa de transformar a ordem das coisas à sua imagem e semelhança. Em cem
dias de frenesi, acumulou problemas graves nas diversas frentes que abriu sem
colher nenhum bônus.
As famílias norte-americanas estão no pior
dos mundos. Um choque de preços está a caminho, pelo encarecimento abrupto de
bens importados, e poderá associar-se a um choque de juros, fruto da
desconfiança no dólar sob
Trump, o que não é trivial num país em que muitos se acostumaram a sustentar
dívidas elevadas.
As empresas tampouco conseguem se planejar em
meio à mudança constante de regras e preços. Cadeias de fornecimento foram
duramente atingidas, e decisões de investimento ficarão suspensas até que se
tenha um quadro mais claro do estrago.
A chuva de decretos de Trump
enfrenta dificuldade crescente na Justiça, o que com o tempo reduzirá a
efetividade do frêmito mudancista. Universidade centenária de bolsos recheados,
Harvard sabe que sobreviverá ao assédio de um governo passageiro e por isso não
se dobra à chantagem intervencionista da Casa Branca.
Se o Congresso de tênue maioria republicana
faz vista grossa ao assalto de suas competências pelo Executivo, a situação
pode mudar em novembro de 2026, quando todos os assentos da Câmara e um terço
dos do Senado entrarão em disputa. A popularidade de Trump, em queda, hoje não
ajudaria seus correligionários.
Como havia ocorrido na pantomima encenada com
o ditador norte-coreano no primeiro mandato, as bravatas do mandatário não
puseram um fim súbito à agressão russa na Ucrânia. O
presidente dos EUA mal
esconde sua simpatia por autocratas.
Trump abusou da verborragia e da tinta da
caneta na arrancada inicial, mas a impressão é que isso só acelerou a
obsolescência. Seu governo envelhece rapidamente.
A farra sem fim dos penduricalhos
Folha de S. Paulo
TJ-SP quadruplicou, em apenas três meses,
benesses de magistrados; Congresso precisa fazer valer o teto constitucional
Parte do Poder Judiciário brasileiro vive em
uma ilha de privilégios à custa do contribuinte. O caso mais recente vem
de São
Paulo. Em apenas três meses, de janeiro a março de 2025, o Tribunal de
Justiça do estado quadruplicou os repasses que superam o teto do serviço
público, hoje de R$ 46.366 mensais.
Com base em contracheques de cerca de 2.600
magistrados, a Folha revelou que eles receberam
mais de R$ 689,4 milhões além dos salários, ante cerca de R$ 164 milhões
(corrigidos pela inflação) no mesmo período de 2024.
A farra dos penduricalhos se espalha pelo
país. Durante o Carnaval deste ano, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais
(TJ-MG) pagou benefício extra de R$ 75 mil a juízes e desembargadores, além de
prever o dispêndio de R$ 25 mil por mês até dezembro, também fora do teto do
funcionalismo.
Alega-se que magistrados devem receber
remuneração compatível com o cargo para atrair talentos e desincentivar
corrupção. Mas tal argumento não justifica despesas públicas exorbitantes, que
driblam a legislação, em prol de uma categoria que já recebe salários elevados.
Comparação entre 50 países realizada pelo
Tesouro Nacional, com dados de 2022, coloca
o Brasil no segundo lugar em despesas com tribunais, atrás apenas de El Salvador.
A conta aqui é de 1,33% do PIB, ante a média de 0,3%. Para piorar, observa-se
tendência de alta.
Em 2023, o desembolso de R$ 156,6 bilhões foi
11,6% superior ao de 2022, descontada a inflação —é a maior expansão da série
histórica iniciada em 2010. Desse montante, 80,2% (R$ 125,6 bilhões) foram
direcionados a magistrados e servidores
O resultado, por óbvio, é o favorecimento à
elite do funcionalismo, consumindo verbas que poderiam melhorar o acesso da
população ao sistema de Justiça.
Os penduricalhos do TJ-SP no primeiro
trimestre de 2025 já excedem a previsão de investimentos para todo o ano em
construções, reformas e aquisição de equipamentos. Assim, quem paga pelos
supersalários não vê sua contribuição convertida, como se espera, em melhoria
do serviço.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que deveria
supervisionar a movimentação financeira dos tribunais, tem atuado de maneira
permissiva, violando a sua função constitucional —em março, o corregedor do
órgão inventou
o limite igual a outro teto de R$ 46,4 mil para benesses que
extrapolam salários.
O Congresso Nacional precisa fazer valer a Constituição. Magistrados não têm direito especial que os coloque acima dos demais servidores.
Drible no Orçamento
O Estado de S. Paulo
TCU expõe artimanhas do governo para gastar
dinheiro sem passar pelo Orçamento, que deveria refletir as escolhas da
sociedade. Isso ameaça a credibilidade das contas públicas
Auditoria realizada pelo Tribunal de Contas
da União (TCU) sobre o Orçamento Geral da União apontou problemas cuja solução
o governo Lula da Silva tem empurrado com a barriga. Não recolhimento de
receitas à conta única do Tesouro, uso de fundos privados ou entidades para
execução de políticas públicas, utilização de fundos para concessão de crédito
e falta de transparência na gestão de fundos públicos e privados foram alguns
dos achados preliminares de técnicos da Corte de Contas, de acordo com reportagem
publicada pelo Estadão.
Em conjunto, essas práticas, classificadas
como “heterodoxas” por tramitarem fora do Orçamento, ameaçam a integridade, a
transparência e a sustentabilidade do regime fiscal brasileiro e podem trazer
riscos à sustentabilidade da dívida pública e à credibilidade das contas
públicas. Não é, portanto, assunto de menor importância, mas o governo não
parece estar preocupado nem ter pressa para equacionar os problemas mencionados
pelo TCU.
Afinal, faz oito meses que o País aguarda uma
solução para financiar o novo Auxílio Gás. Em agosto, o Executivo anunciou uma
proposta para quadruplicar o programa por meio de recursos do Fundo Social do
Pré-Sal. Ao todo, R$ 13,6 bilhões seriam transferidos diretamente à Caixa e, do
banco, para os revendedores de botijões que atendessem aos beneficiários do
Bolsa Família. Trata-se de clara burla às regras fiscais, segundo as quais
todas as receitas e despesas devem transitar pelo Orçamento. E, diante das críticas,
o Ministério da Fazenda disse que enviaria um novo projeto para corrigir essas
falhas, o que ainda não ocorreu.
Outro problema identificado pelo TCU diz
respeito ao Pé-de-Meia, que concede bolsas para incentivar estudantes de baixa
renda a concluírem o ensino médio. O programa tampouco conta com reserva
suficiente de recursos no Orçamento e tem sido custeado por meio de fundos
privados. Não é a primeira vez que a Corte de Contas cobra ajustes no programa.
Bloqueado pelo TCU em janeiro, o pagamento das bolsas foi liberado no mês
seguinte com o compromisso de que governo e Congresso encontrariam uma maneira
definitiva de incluir o programa no Orçamento. Até agora, nada.
Os exemplos evidenciam que a heterodoxia não
configura uma exceção. Ao contrário: sem essas práticas fiscais controversas,
duas das principais bandeiras eleitorais do governo Lula da Silva simplesmente
não teriam condições de existir. E a experiência mostra que, aos poucos, aquilo
que deveria ser uma saída temporária pode se tornar uma solução definitiva. Os
R$ 14,9 bilhões em honorários pagos a advogados públicos em causas ganhas em
defesa do governo, por exemplo, têm recebido tratamento extraorçamentário desde
2017, ou seja, desde o governo Michel Temer.
Lamentavelmente, os alertas do TCU não têm
sido muito efetivos. Anunciados em outubro do ano passado, os R$ 29,75 bilhões
em recursos do Fundo Rio Doce, pagos como compensação pelo rompimento da
barragem de Mariana (MG), servirão para financiar políticas públicas. No
entanto, não vão transitar pela conta única do Tesouro. Na semana passada, o
governo confirmou que enviará R$ 15 bilhões do Fundo Social do Pré-Sal para o
Minha Casa Minha Vida, que agora financiará também a classe média – outro caso
de medida parafiscal.
Bem se sabe que o Orçamento está engessado
por despesas obrigatórias há anos e tem um espaço cada vez menor para gastos
discricionários, mas práticas como essas enfraquecem ainda mais uma peça que
deveria refletir com clareza as escolhas da sociedade.
Transformar o Orçamento num documento
protocolar e sem amparo na realidade pode ser o caminho mais fácil, mas não é
algo inofensivo. As consequências mais palpáveis são o aumento dos juros, a
desvalorização da moeda, a alta da inflação e a fuga de investimentos.
No médio e no longo prazos, isso se
materializa em crescimento econômico baixo e errático, infraestrutura
insuficiente, produtividade pífia, indicadores educacionais ruins, mão de obra
pouco qualificada e empregos de baixa remuneração. E é sintomático que ninguém
no setor público pareça incomodado com isso.
Escolas desconectadas
O Estado de S. Paulo
Falta o básico nas escolas públicas do País.
Conexão de qualidade e informação confiável são duas das lacunas, como se nota
ao constatar que o MEC infla dados sobre internet adequada
Quando, em setembro de 2023, lançou a chamada
Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, o governo do presidente Lula da
Silva mirou numa ambição bem-vinda ante um desafio inadiável: coordenar e
qualificar o acesso à internet das escolas públicas brasileiras – e, de quebra,
melhorar a infraestrutura de telecomunicações, especialmente em regiões mais
remotas. Ter internet com velocidade adequada, de modo a potencializar o uso da
tecnologia para fins pedagógicos, é um daqueles requisitos elementares num país
onde, em muitos lugares, ainda falta o básico, como a disponibilidade de
energia elétrica para a rede pública e a contratação de serviço de conexão
capaz de operar com vídeos, jogos e outros recursos tecnológicos mínimos. São
lacunas a preencher com uma boa política pública, desenhada e implementada com
a unificação de diferentes ações federais e o envolvimento de vários órgãos de
governo, incluindo o Ministério da Educação (MEC), o Ministério das
Comunicações e o BNDES.
Pois agora se descobre que falta também outro
elemento básico: informação confiável para atestar os resultados do programa.
Como mostrou recentemente o Estadão, o MEC trabalha com dados inflados
sobre a qualidade da conectividade nas escolas públicas. Em outras palavras, o
MEC enxerga como “adequada” a velocidade de 15.404 escolas cuja rede está aquém
do que a comunidade escolar precisa. A discrepância se deve a uma razão
simples, mas de efeito complexo: em vez de utilizar o medidor oficial, como
recomenda uma resolução do Comitê Executivo da Estratégia Nacional de Escolas
Conectadas, o MEC considera, em muitos casos, desempenhos declarados por outras
fontes de informação, originadas das secretarias estaduais e municipais.
Usando o medidor oficial, nota-se que, das
137,9 mil escolas públicas do País, 49,2% têm internet com velocidade
considerada adequada. Já em 36,1%, a conexão medida é ruim e não serve para
professores e alunos. Para o MEC, contudo, o patamar é diferente: 60% têm
velocidade adequada, enquanto 25% exibem rede considerada ruim. A reportagem
registrou casos de dados inflados em praticamente todos os Estados. Também há
relatos de estudantes que passaram a usar o dinheiro recebido via Pé-de-Meia –
o programa que oferece bolsas para evitar a evasão no ensino médio – para
contratar pacotes de internet e utilizar nas atividades pedagógicas. Mesmo
reconhecendo que são casos extremos, fica evidente que o prejuízo imposto aos
alunos e professores é incalculável.
No mundo onírico do governo, Lula da Silva
prometeu chegar ao fim do mandato, em 2026, com todas as unidades conectadas
(resta torcer para que, na cosmologia lulopetista, ter escola “conectada”
signifique conexão compatível com o uso da internet). No mundo real enfrentado
pela comunidade escolar, pesquisas básicas na internet para realizar atividades
escolares requerem puxadinhos constrangedores, como capturar a rede da “tia” da
lanchonete ou subir na cadeira para pegar um sinal, como descreveu uma aluna. É
de consumir a energia do aluno e esgotar a paciência – e a esperança – do País.
São exemplos como esses que reforçam a
desconfiança nacional em relação ao futuro e põem em dúvida a capacidade de
nossas autoridades – mesmo aquelas bem-intencionadas, como as que estão hoje no
MEC – de pavimentar nosso caminho rumo à condição de nação mais desenvolvida e
menos desigual. Para tanto, não há outra rota se não a da transformação
educacional, com qualificação da mão de obra, preparação das novas gerações
para o novo mundo e tecnologia e pesquisa de ponta. Basta ver o exemplo de
países com economia similar à brasileira que estavam no mesmo patamar que o
Brasil há algumas décadas – e hoje estão muito adiante. É o caso dos países
asiáticos que, invariavelmente, lideram os rankings de avaliação de ensino.
Foram nações que souberam contar com adoção de currículos bem estruturados,
formação robusta de professores, escolas em tempo integral, uso constante de
avaliações e continuidade de reformas com visão de longo prazo.
Há um extenso percurso para o Brasil
percorrer até tornar real, como se espera, a mudança efetiva na qualidade de
nossa educação. Ter escolas conectadas é parte desse percurso – sem dados
inflados, por óbvio.
Flertando com a arbitrariedade
O Estado de S. Paulo
Ao lacrar celulares de advogados de acusados
de golpe, ministro Zanin afronta prerrogativa da profissão
O presidente da Primeira Turma do Supremo
Tribunal Federal (STF), ministro Cristiano Zanin, mandou lacrar, durante uma
sessão, os celulares de todos os advogados dos acusados de “gerenciar” um plano
de golpe de Estado no Brasil. O veto aos aparelhos ocorreu no julgamento da
segunda denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra
seis ex-auxiliares do ex-presidente Jair Bolsonaro.
A ordem foi imposta por Zanin sob a alegação
de que o STF já proíbe que as sessões de suas turmas e do plenário sejam
fotografadas e filmadas por aqueles que ocupam as suas plateias. No julgamento
da primeira denúncia da trama golpista, no qual Bolsonaro virou réu, essa regra
foi descumprida, e a Corte decidiu então vetar o uso dos celulares.
Os aparelhos dos advogados e também dos
jornalistas foram postos em sacolas plásticas, em que pese o caso não correr em
segredo de Justiça. A determinação foi executada sem a edição de um ato formal
nem uma devida fundamentação jurídica. Posteriormente, em nota, o STF afirmou
que a decisão “excepcional” foi chancelada por todos os integrantes da turma
para “assegurar o bom andamento dos trabalhos e o cumprimento de uma decisão do
ministro-relator” – no caso, a proibição de Alexandre de Moraes de que Filipe Martins
filmasse a sessão.
Não faz muito tempo, era Zanin, na condição
de advogado de Lula da Silva, que criticava as decisões de Sergio Moro na
Operação Lava Jato. O então causídico chegou a se insurgir por ter sido
proibido de gravar suas audiências. Suas queixas ganharam à época o apoio da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Agora, a Ordem teve de reclamar do ex-colega
que chegou à Corte por indicação de seu ex-cliente, hoje presidente da
República. Beto Simonetti, presidente da entidade, enviou a Zanin um ofício
contra o veto aos celulares e precisou dizer o óbvio. O representante dos
advogados citou que esses profissionais, no exercício regular de suas
atividades, fazem o uso de “vasto acervo eletrônico”, e o celular, portanto, é
um instrumento de trabalho.
Mas, mais importante, Simonetti lembrou o
ministro de que o Estatuto da Advocacia, uma lei federal, estabelece que um dos
direitos dos advogados é “exercer, com liberdade, a profissão em todo o
território nacional”. Por óbvio, liberdade não é um adorno na lei. Atuar com
liberdade na defesa dos clientes é uma das prerrogativas dos advogados.
O presidente da OAB destacou ainda que os
“direitos fundamentais” impõem “limites ao desempenho de funções dos poderes
públicos”. Logo, é dever do Judiciário respeitar o contraditório e a ampla
defesa, conforme previsto na Constituição. Sobretudo quando sobre os clientes
dos advogados pesam crimes graves, como organização criminosa armada, golpe de
Estado e tentativa de abolição violenta do Estado democrático.
Ao Poder Judiciário cabe respeitar as prerrogativas dos advogados e os direitos fundamentais dos acusados. Mas o caso dos celulares lacrados só expõe os flertes da mais alta Corte brasileira com a arbitrariedade nos últimos tempos.
Brasil precisa abraçar a velhice
Correio Braziliense
Até 2030 — ou seja, em menos de cinco anos —,
o Brasil terá mais idosos do que crianças. Pouco tempo depois, em 2046, os 60+
formarão a maior fatia populacional do país, chegando a 28%, quase o dobro do
percentual atual
Em texto escrito pouco antes da última
internação a que foi submetido, o papa Francisco aponta os desafios do
envelhecimento. "Não devemos ter medo da velhice, não devemos temer
abraçar o envelhecer, porque a vida é a vida, e adoçar a realidade significa
trair a verdade das coisas (...) É verdade, envelhecemos, mas esse não é o
problema: o problema é como envelhecemos." O prefácio do livro Na espera
de um novo começo. Reflexões sobre a velhice é mais um dos nobres ensinamentos
do pontífice que precisam ecoar para além das balizas da Igreja Católica.
Trata-se de desafio que extrapola também os limites individuais. Portanto, de
razão civilizatória.
Maior país católico do mundo, o Brasil não
escapa à urgência de aceitar-se velho, como sugere Francisco. Projeções
recentes do IBGE deixam evidente que, se não começar a se ajustar agora à nova
configuração etária que se molda de forma acelerada, o país corre o risco de
ver estruturas sociais debilitadas colapsarem. Até 2030 — ou seja, em menos de
cinco anos —, o Brasil terá mais idosos do que crianças. Pouco tempo depois, em
2046, os 60 formarão a maior fatia populacional do país, chegando a 28%, quase
o dobro do percentual atual.
Viver e fazer planos em um país
majoritariamente idoso será, sem dúvidas, um desafio. E não faltam sinais de
que o Brasil resiste a enfrentar a "verdade das coisas". No campo da
saúde, a falta de profissionais especializados é gritante. A estimativa do
Conselho Federal de Medicina é de que seria preciso ter mais 29 mil
geriatras para dar suporte à atual população idosa conforme as recomendações da
Organização Mundial da Saúde (OMS) — hoje são apenas 2.670 profissionais,
contra 48.650 pediatras.
Ao Correio, a geriatra Aline Laginestra
atribui esse deficit a uma resistência da própria categoria em aceitar o
envelhecimento: "Ver a velhice com doença é muito difícil. Eu digo que é
etarismo porque pratica-se a medicina da longevidade, da antiage". A
professora universitária indica a necessidade de o país investir também em
educação em saúde e científica para proteger a população dos falsos elixires da
juventude.
Pratica-se também no Brasil violência contra
os idosos, em todas as suas formas. Em 2023, foram registradas 390 queixas de
denúncias de violência contra os mais velhos por dia, segundo dados da
Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Considerando o fato de que os filhos
são os principais agressores, ao menos a metade deles, é razoável afirmar que o
número real de vítimas é muito maior.
Não está velado, porém, que a maioria das
vítimas é mulher e que os crimes envolvem de negligência a violência
psicológica, passando por abusos físicos e financeiros. Diante de um compilado
tão diverso de agressões, a adequação das estruturas de segurança e de suporte
às vítimas deve ser prioridade. Delegacias especializadas, agentes qualificados
e refúgio aos vulneráveis — quase sempre pessoas que também sofrem com a
autonomia comprometida — estão entre as demandas de agora.
Há ainda que se adaptar o sistema previdenciário, o mercado de trabalho, as estruturas das cidades, os acessos a lazer e cultura. Tudo isso considerando as especificidades de um país diverso e continental: os idosos que vivem hoje em favelas, como as fluminenses, têm dificuldades de chegar aos serviços do Estado que não sobem o morro, por exemplo. Abraçar a velhice exige do Brasil planejamento e, sobretudo, ação. O país, infelizmente, tem perdido a oportunidade de usufruir da longevidade conquistada de uma forma mais justa e sustentável.
O aplauso do cearense às águas do Orós
O Povo
É de emocionar, até a reação empolgada do
cearense, nos últimos dias, com o registro de que o açude Orós voltou a
sangrar, algo que não acontecia há 14 anos. Uma verdadeira multidão correu ao
local, a partir da noite do último sábado, dia 26, assim que começaram a
circular as notícias de que o evento histórico estava por acontecer, numa
demonstração reafirmada da força de resistência da raiz cultural de um povo.
Sem chamamento, sem nada organizado, num ato de pura espontaneidade.
A alegria proporcionada por tais momentos é
única, ainda mais considerando que a última vez em que o emblemático
reservatório experimentou situação semelhante foi no ano de 2011. Há muito
tempo, portanto. Não há modernidade tecnológica ou ambiente de inovação que
mude essa realidade, como fica novamente demonstrado pelo cenário que nos
envolve hoje, agora. Coisa para ser comemorada de verdade, sem qualquer
preocupação de estabelecer lado ideológico ou corrente partidária na
perspectiva de buscar ganhadores ou interessados em tirar proveito, algo raro
nestes dias de polarização em que tudo acaba transformado em objeto de disputa
política.
O entusiasmo das autoridades e dos populares,
tocante em vários aspectos, tem a ver com o que isso representa na vida real
das famílias, garantindo água nas casas e nos estabelecimentos em geral por um
tempo longo à frente, mas, num plano simbólico paralelo que entendemos de
grande relevância, diz respeito a um valor cultural que nos acompanha uma
geração após a outra. Sua valia mais forte, de verdade, está relacionada à
capacidade que apresenta de atingir a alma de uma população.
O açude foi inaugurado em 1961 pelo
presidente Juscelino Kubistchek, finalizando, num clima de grande festa para os
cearenses, uma construção que havia sido iniciada ainda durante os governos de
Epitácio Pessoa, entre 1919 e 1922. É uma obra gigante localizada no Centro Sul
de nosso estado, com capacidade para armazenar 1,9 bilhão de m³ d'água,
posicionando-se atrás apenas do Castanhão (em Jaguaribara), bem mais recente e
que comporta 6,7 bilhões de m³. Os dois formam, junto aos açudes Araras (em
Varjota), Banabuiú (em Banabuiú) e Figueiredo (em Alto Santo), o top 5 dos
reservatórios cearenses.
As autoridades locais fizeram o que lhes
cabia na adoção das providências necessárias para garantir condições mínimas de
estadia às milhares de pessoas que correram ao local, na promoção do reencontro
com o que temos de mais nosso. Apenas estar informado do que acontecia no Orós
não bastava, era preciso testemunhar e, mais do que isso, comemorar. Nada mais
cearense, e nordestino.
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