terça-feira, 29 de abril de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Calendário abre espaço a reforma administrativa

O Globo

Um quarto dos servidores federais parará de trabalhar nos próximos dez anos, segundo o próprio governo

Nos próximos dez anos, um quarto do total de servidores públicos federais, um contingente de 153,6 mil, deverá se aposentar. O pico de desligamentos ocorrerá neste ano, segundo estimativas do governo reveladas pelo GLOBO. Trata-se de uma ótima oportunidade para promover uma reforma administrativa que represente ganhos de eficiência no setor público. Infelizmente é difícil acreditar que tal iniciativa parta do atual governo, que já deu diversas mostras de não considerar o tema prioritário.

O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) afirma dimensionar as demandas antes de definir os concursos públicos que realizará. Com o aumento da automação digital, diversas tarefas se tornaram obsoletas. Seria um contrassenso contratar novos datilógrafos ou até mesmo vigias, serviços que podem ser fornecidos por empresas privadas. Mas é uma lástima que o MGI não demonstre disposição para enfrentar a baixa produtividade dos servidores.

A máquina pública no Brasil é cara e ineficiente. Os funcionários públicos representam 5,6% da população — fração inferior à média dos países ricos —, mas as despesas com funcionalismo equivalem a 13% do PIB, mais que em países conhecidos pela máquina perdulária, como Portugal ou França. O serviço prestado é de qualidade baixa, e as despesas com Judiciário e Ministério Público contribuem para aumentar o custo e criar distorções. Realizar concursos sem enfrentar tais problemas equivale a criar uma nova geração de brasileiros insatisfeitos com os serviços públicos, pois novas regras valerão apenas para concursos futuros.

Avanços na carreira dependem apenas de tempo de serviço e certificados. Competência e desempenho não são critérios para promoção. Quem é comprometido recebe as mesmas benesses de quem faz corpo mole até a aposentadoria. Sem gestão de desempenho e avaliações periódicas, nada mudará. Além disso, as carreiras são fragmentadas e engessadas, muitas vezes impedindo a transferência de funcionários a setores onde são mais necessários.

O governo editou portaria tentando facilitar transferências. E até expandiu o Programa de Gestão e Desempenho, mas pouco mudou na prática. Primeiro, o modelo adotado é voluntário. Segundo, as próprias equipes podem definir as atribuições de seus cargos. Em resumo, faz quem quer e do jeito que bem entender. O certo seria aprovar no Congresso um conjunto de leis que tivesse impacto nos estados e redesenhasse por completo carreiras, trabalho e remuneração no setor público.

No Legislativo, o compromisso com a eficiência da gestão também tem sido pífio. Basta ver o que aconteceu com o Projeto de Lei sobre os supersalários. Cedendo a pressões, o texto original foi alterado para contemplar inúmeras exceções que tornam completamente ineficaz a tentativa de restringir os penduricalhos que permitem à elite do funcionalismo receber remunerações absurdas, acima do teto constitucional.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não perde a oportunidade de mencionar seu compromisso em melhorar a vida dos mais pobres. Pois a reforma administrativa está entre as medidas com maior potencial positivo na vida dos brasileiros. Até o momento, Lula tem preferido ficar do lado dos sindicatos do funcionalismo. O Brasil ganharia muito se, em vez de simplesmente aprovar novos concursos públicos, ele revisse sua posição sobre o assunto.

Sobreposições no cadastro rural exigem política permanente de fiscalização

O Globo

Há quase 140 milhões de hectares — o equivalente ao tamanho do Pará — de propriedades com áreas sobrepostas

O Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado em 2014, trouxe avanço inegável por permitir um registro oficial de propriedades, necessário tanto para a obtenção de crédito em bancos quanto de licenças ambientais junto ao governo. Na Amazônia, contudo, fraudes têm se tornado frequentes. Proprietários de terras têm registrado áreas sobrepostas para esconder desmatamentos ilegais e têm ocultado identidade usando laranjas e CPFs falsos. Uma pesquisa nos registros do CAR feita pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), a pedido do GLOBO, revelou 139,6 milhões de hectares com sobreposição. É como se, à extensão territorial do Brasil, fosse acrescida uma área equivalente ao Pará.

Um exemplo ilustrativo do que tem acontecido na Amazônia é a fazenda Terra Roxa, do tamanho da cidade do Rio, situada entre os municípios de São Félix do Xingu e Altamira, no sul do Pará. Surpreendeu técnicos do Ibama a velocidade com que surgiram na propriedade pastos, estradas e uma pista de pouso. As obras foram embargadas, e as multas chegaram a R$ 5 milhões, mas a punição jamais foi aplicada. A fazenda está em nome de um aposentado de Salvador que jamais saiu da cidade. Os técnicos descobriram outros 50 imóveis empilhados na mesma área nos arquivos do CAR.

Falsificações desse tipo foram constatadas por um estudo do Center for Climate Crime Analysis (CCCA), organização não governamental que rastreia crimes ambientais. Mais de 9 mil imóveis rurais foram deslocados ou mudaram de tamanho no CAR entre 2019 e 2024, para tentar esconder sinais de desmatamentos ou sobreposição com áreas protegidas. Além de fraudadores preencherem o cadastro com dados inconsistentes ou mesmo falsos, o tamanho da propriedade costuma ser reduzido para esconder desmatamento. Em 480 casos, fazendas foram parar em rios e lagos distantes.

A Fazenda Jatobá, em Altamira (PA), é outro desses casos. O Ibama constatou desmatamento e verificou que o proprietário alterara os dados no CAR, transferindo a propriedade para dentro do Rio Xingu, a mais de 300 quilômetros. O engenheiro florestal Rodolfo Gadelha de Sousa, do CCCA, chama casos assim de “fazendas voadoras”.

“O CAR não pode ser vilanizado. Ele é uma tomografia, um raio X do caos que há no Brasil”, afirma o engenheiro agrônomo Raimundo Deusdará, ex-presidente do SFB responsável por ter colocado o sistema em operação. É o cadastro que permite comprovar a sobreposição de terras na Amazônia. Falta, porém, fiscalização sistemática dos dados do CAR autodeclarados pelos proprietários. É uma responsabilidade que cabe aos estados. As informações estão lá, à espera de um trabalho consistente. O ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, relator de ação exigindo suspensão imediata do cadastro de imóveis rurais em que tenha sido constatado desmatamento, determinou que os estados da Amazônia Legal e a União elaborem um plano para cancelar registros irregulares no CAR. É uma ação bem-vinda, que precisa ser posta em prática.

Em 100 dias, Trump isola os EUA e ataca as instituições

Valor Econômico

Presidente americano tenta acabar com a ordem internacional do pós-guerra da qual os EUA foram o principal artífice

Em apenas 100 dias de governo, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foi capaz de abalar sete décadas da ordem política e econômica mundial. É uma façanha para poucos, e longe de significar um avanço histórico - neste curto período de tempo, assemelha-se mais a um desastre. Em geral, trocas de governo costumam ser acolhidas com esperança ou ceticismo moderado, não com apreensão, medo e ódio, como agora. Trump quer mudar o mundo impondo sua vontade com a força de que dispõe no comando da maior potência mundial. Isso já seria uma missão impossível para um político excepcional, que tivesse um plano e apoio de amplas camadas da elite e do povo. Mas ele é errático e segue os caprichos de sua vontade, que são profundamente divisivos. Os resultados até agora não são bons e podem piorar no futuro.

As pesquisas indicam que a popularidade de Trump, após 100 dias, é a menor em 80 anos. A avaliação negativa é maior entre os eleitores independentes, aqueles que preferiram um segundo mandato de Trump à continuidade no cargo de Joe Biden ou sua substituta, Kamala Harris. As insatisfações com os democratas tinham razões econômicas, como a alta inflação, políticas e sociais, como a questão identitária e o avanço da imigração, para a qual o governo anterior não ofereceu uma resposta que agradasse à maioria da população.

As propostas de Trump seguiram as linhas esboçadas e não executadas em seu primeiro mandato. A América se tornaria “grande de novo” restringindo fortemente a imigração, que reservaria os empregos para os americanos, conseguido por outra medida essencial: criação de uma muralha tarifária que isolasse do mundo a economia americana, até ontem a mais aberta e um avatar da globalização.

Para esta guinada histórica, propôs drenar o “pântano de Washington”, sobrepujando as elites que teriam levado o país à decadência. O caminho para isso prescinde do respeito às instituições. Trump já mostrara até onde poderia chegar ao insuflar uma inacreditável rebelião para impedir a posse do governo legitimamente eleito de Biden - e, o que o tornou ainda mais confiante, escapou das punições com todos seus direitos políticos preservados.

O início do segundo mandato foi marcado por uma enxurrada de decretos para dar rápida forma a mudanças radicais. As tarifas começaram com 25% contra seus principais aliados comerciais (Canadá e México), foram ampliadas ao aço e ao alumínio do resto do mundo, automóveis, e depois instituídas “tarifas recíprocas” que chegavam a 50% sobre produtos de quase uma centena de países. Tarifas sobre a China atingiram 145%, que estabeleceu contratarifas de 125%.

Na cena externa, o presidente americano praticamente rompeu com a Otan, a organização militar formada com potências europeias para conter a ameaça da então URSS, apoiou as reivindicações do presidente Vladimir Putin sobre territórios conquistados à força na Ucrânia, retirou-se do Acordo de Paris e de organizações como a OMS. O unilateralismo de Trump alienou parceiros tradicionais dos EUA, todos eles com disputas com a China que poderiam ser catalisadas em uma coalizão com objetivos comuns.

TO que Trump conseguiu até agora foi causar um gigantesco tumulto global. As ações americanas e o dólar perderam valor, e, em movimento inédito, isso ocorreu ao mesmo tempo com a venda massiva de títulos do governo, os mais seguros do mundo. As chances de recessão nos EUA são cada vez maiores. Para quem prometeu acabar com a inflação, o instrumento das tarifas é dos mais inadequados, e as expectativas inflacionárias estão subindo, impedindo o Federal Reserve de reduzir os juros. A guerra tarifária trouxe a perspectiva de desaceleração global do comércio e do crescimento.

Trump não só significa um retrocesso da globalização como, o que é mais perigoso, tenta destruir os valores democráticos. Ele atenta contra o direito de imigrantes que sofrem truculências ilegais, assim como juízes que tentam fazer valer seus direitos, investe contra universidades que defendem políticas de inclusão, demite procuradores que atuaram nos dois processos de impeachment dos quais escapou. Está cortando verbas de ciência e tecnologia, eliminando a legislação de proteção ambiental, interferindo em agências reguladoras e demitindo funcionários públicos sem critérios.

Trump toma decisões rápidas e volta atrás em seguida, o que impede que fique claro seus próximos passos ou o ponto intermediário que sua agenda maximalista quer atingir. As tarifas recíprocas estão suspensas e ele já ensaia um recuo em relação à China. Enquanto a reação dos mercados pode corrigir até certo ponto o radicalismo de Trump, seus ataques à democracia parecem ser bem menos flexíveis. O presidente infringirá todos as normas que lhe convierem, até ser impedido pela Justiça, a qual tenta intimidar.

Trump tenta acabar com a ordem internacional do pós-guerra da qual os EUA foram o principal artífice. O país não é mais parceiro confiável de ninguém e, em vez de garantia de estabilidade, tornou-se, sob Trump, um dos principais atores de uma era de crises.

Governo de Donald Trump envelhece depressa

Folha de S. Paulo

Presidente republicano abusou da verborragia e da caneta nos primeiros cem dias, mas apenas colhe graves problemas

A surpresa dos primeiros cem dias do segundo governo de Donald Trump está mais associada ao ímpeto, ao método e à velocidade na implantação de sua agenda nacional-populista do que ao teor das medidas, que havia sido fartamente antecipado nos quatro anos em que passou fora da Casa Branca.

A ideia era transformar os Estados Unidos num país mais fechado ao comércio internacional e à imigração, sabotar a aliança entre nações desenvolvidas democráticas, reformar por razão ideológica a burocracia federal e subjugar organizações consideradas hostis pelo trumpismo, como as universidades de elite.

O radicalismo da plataforma, numa nação em que o poder presidencial é limitado por constrangimentos constitucionais seculares, requereria o esforço planejado e concentrado de políticos e profissionais talentosos, a definição de prioridades e a paciência dos reformistas para iniciar agora um processo que apenas ao longo dos anos daria frutos.

Nada disso combina com o presidente Trump. Numa corrida destrambelhada, ele pôs-se a assinar decreto atrás de decreto na expectativa de transformar a ordem das coisas à sua imagem e semelhança. Em cem dias de frenesi, acumulou problemas graves nas diversas frentes que abriu sem colher nenhum bônus.

As famílias norte-americanas estão no pior dos mundos. Um choque de preços está a caminho, pelo encarecimento abrupto de bens importados, e poderá associar-se a um choque de juros, fruto da desconfiança no dólar sob Trump, o que não é trivial num país em que muitos se acostumaram a sustentar dívidas elevadas.

As empresas tampouco conseguem se planejar em meio à mudança constante de regras e preços. Cadeias de fornecimento foram duramente atingidas, e decisões de investimento ficarão suspensas até que se tenha um quadro mais claro do estrago.

A chuva de decretos de Trump enfrenta dificuldade crescente na Justiça, o que com o tempo reduzirá a efetividade do frêmito mudancista. Universidade centenária de bolsos recheados, Harvard sabe que sobreviverá ao assédio de um governo passageiro e por isso não se dobra à chantagem intervencionista da Casa Branca.

Se o Congresso de tênue maioria republicana faz vista grossa ao assalto de suas competências pelo Executivo, a situação pode mudar em novembro de 2026, quando todos os assentos da Câmara e um terço dos do Senado entrarão em disputa. A popularidade de Trump, em queda, hoje não ajudaria seus correligionários.

Como havia ocorrido na pantomima encenada com o ditador norte-coreano no primeiro mandato, as bravatas do mandatário não puseram um fim súbito à agressão russa na Ucrânia. O presidente dos EUA mal esconde sua simpatia por autocratas.

Trump abusou da verborragia e da tinta da caneta na arrancada inicial, mas a impressão é que isso só acelerou a obsolescência. Seu governo envelhece rapidamente.

A farra sem fim dos penduricalhos

Folha de S. Paulo

TJ-SP quadruplicou, em apenas três meses, benesses de magistrados; Congresso precisa fazer valer o teto constitucional

Parte do Poder Judiciário brasileiro vive em uma ilha de privilégios à custa do contribuinte. O caso mais recente vem de São Paulo. Em apenas três meses, de janeiro a março de 2025, o Tribunal de Justiça do estado quadruplicou os repasses que superam o teto do serviço público, hoje de R$ 46.366 mensais.

Com base em contracheques de cerca de 2.600 magistrados, a Folha revelou que eles receberam mais de R$ 689,4 milhões além dos salários, ante cerca de R$ 164 milhões (corrigidos pela inflação) no mesmo período de 2024.

A farra dos penduricalhos se espalha pelo país. Durante o Carnaval deste ano, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) pagou benefício extra de R$ 75 mil a juízes e desembargadores, além de prever o dispêndio de R$ 25 mil por mês até dezembro, também fora do teto do funcionalismo.

Alega-se que magistrados devem receber remuneração compatível com o cargo para atrair talentos e desincentivar corrupção. Mas tal argumento não justifica despesas públicas exorbitantes, que driblam a legislação, em prol de uma categoria que já recebe salários elevados.

Comparação entre 50 países realizada pelo Tesouro Nacional, com dados de 2022, coloca o Brasil no segundo lugar em despesas com tribunais, atrás apenas de El Salvador. A conta aqui é de 1,33% do PIB, ante a média de 0,3%. Para piorar, observa-se tendência de alta.

Em 2023, o desembolso de R$ 156,6 bilhões foi 11,6% superior ao de 2022, descontada a inflação —é a maior expansão da série histórica iniciada em 2010. Desse montante, 80,2% (R$ 125,6 bilhões) foram direcionados a magistrados e servidores

O resultado, por óbvio, é o favorecimento à elite do funcionalismo, consumindo verbas que poderiam melhorar o acesso da população ao sistema de Justiça.

Os penduricalhos do TJ-SP no primeiro trimestre de 2025 já excedem a previsão de investimentos para todo o ano em construções, reformas e aquisição de equipamentos. Assim, quem paga pelos supersalários não vê sua contribuição convertida, como se espera, em melhoria do serviço.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que deveria supervisionar a movimentação financeira dos tribunais, tem atuado de maneira permissiva, violando a sua função constitucional —em março, o corregedor do órgão inventou o limite igual a outro teto de R$ 46,4 mil para benesses que extrapolam salários.

Congresso Nacional precisa fazer valer a Constituição. Magistrados não têm direito especial que os coloque acima dos demais servidores.

Drible no Orçamento

O Estado de S. Paulo

TCU expõe artimanhas do governo para gastar dinheiro sem passar pelo Orçamento, que deveria refletir as escolhas da sociedade. Isso ameaça a credibilidade das contas públicas

Auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o Orçamento Geral da União apontou problemas cuja solução o governo Lula da Silva tem empurrado com a barriga. Não recolhimento de receitas à conta única do Tesouro, uso de fundos privados ou entidades para execução de políticas públicas, utilização de fundos para concessão de crédito e falta de transparência na gestão de fundos públicos e privados foram alguns dos achados preliminares de técnicos da Corte de Contas, de acordo com reportagem publicada pelo Estadão.

Em conjunto, essas práticas, classificadas como “heterodoxas” por tramitarem fora do Orçamento, ameaçam a integridade, a transparência e a sustentabilidade do regime fiscal brasileiro e podem trazer riscos à sustentabilidade da dívida pública e à credibilidade das contas públicas. Não é, portanto, assunto de menor importância, mas o governo não parece estar preocupado nem ter pressa para equacionar os problemas mencionados pelo TCU.

Afinal, faz oito meses que o País aguarda uma solução para financiar o novo Auxílio Gás. Em agosto, o Executivo anunciou uma proposta para quadruplicar o programa por meio de recursos do Fundo Social do Pré-Sal. Ao todo, R$ 13,6 bilhões seriam transferidos diretamente à Caixa e, do banco, para os revendedores de botijões que atendessem aos beneficiários do Bolsa Família. Trata-se de clara burla às regras fiscais, segundo as quais todas as receitas e despesas devem transitar pelo Orçamento. E, diante das críticas, o Ministério da Fazenda disse que enviaria um novo projeto para corrigir essas falhas, o que ainda não ocorreu.

Outro problema identificado pelo TCU diz respeito ao Pé-de-Meia, que concede bolsas para incentivar estudantes de baixa renda a concluírem o ensino médio. O programa tampouco conta com reserva suficiente de recursos no Orçamento e tem sido custeado por meio de fundos privados. Não é a primeira vez que a Corte de Contas cobra ajustes no programa. Bloqueado pelo TCU em janeiro, o pagamento das bolsas foi liberado no mês seguinte com o compromisso de que governo e Congresso encontrariam uma maneira definitiva de incluir o programa no Orçamento. Até agora, nada.

Os exemplos evidenciam que a heterodoxia não configura uma exceção. Ao contrário: sem essas práticas fiscais controversas, duas das principais bandeiras eleitorais do governo Lula da Silva simplesmente não teriam condições de existir. E a experiência mostra que, aos poucos, aquilo que deveria ser uma saída temporária pode se tornar uma solução definitiva. Os R$ 14,9 bilhões em honorários pagos a advogados públicos em causas ganhas em defesa do governo, por exemplo, têm recebido tratamento extraorçamentário desde 2017, ou seja, desde o governo Michel Temer.

Lamentavelmente, os alertas do TCU não têm sido muito efetivos. Anunciados em outubro do ano passado, os R$ 29,75 bilhões em recursos do Fundo Rio Doce, pagos como compensação pelo rompimento da barragem de Mariana (MG), servirão para financiar políticas públicas. No entanto, não vão transitar pela conta única do Tesouro. Na semana passada, o governo confirmou que enviará R$ 15 bilhões do Fundo Social do Pré-Sal para o Minha Casa Minha Vida, que agora financiará também a classe média – outro caso de medida parafiscal.

Bem se sabe que o Orçamento está engessado por despesas obrigatórias há anos e tem um espaço cada vez menor para gastos discricionários, mas práticas como essas enfraquecem ainda mais uma peça que deveria refletir com clareza as escolhas da sociedade.

Transformar o Orçamento num documento protocolar e sem amparo na realidade pode ser o caminho mais fácil, mas não é algo inofensivo. As consequências mais palpáveis são o aumento dos juros, a desvalorização da moeda, a alta da inflação e a fuga de investimentos.

No médio e no longo prazos, isso se materializa em crescimento econômico baixo e errático, infraestrutura insuficiente, produtividade pífia, indicadores educacionais ruins, mão de obra pouco qualificada e empregos de baixa remuneração. E é sintomático que ninguém no setor público pareça incomodado com isso.

Escolas desconectadas

O Estado de S. Paulo

Falta o básico nas escolas públicas do País. Conexão de qualidade e informação confiável são duas das lacunas, como se nota ao constatar que o MEC infla dados sobre internet adequada

Quando, em setembro de 2023, lançou a chamada Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, o governo do presidente Lula da Silva mirou numa ambição bem-vinda ante um desafio inadiável: coordenar e qualificar o acesso à internet das escolas públicas brasileiras – e, de quebra, melhorar a infraestrutura de telecomunicações, especialmente em regiões mais remotas. Ter internet com velocidade adequada, de modo a potencializar o uso da tecnologia para fins pedagógicos, é um daqueles requisitos elementares num país onde, em muitos lugares, ainda falta o básico, como a disponibilidade de energia elétrica para a rede pública e a contratação de serviço de conexão capaz de operar com vídeos, jogos e outros recursos tecnológicos mínimos. São lacunas a preencher com uma boa política pública, desenhada e implementada com a unificação de diferentes ações federais e o envolvimento de vários órgãos de governo, incluindo o Ministério da Educação (MEC), o Ministério das Comunicações e o BNDES.

Pois agora se descobre que falta também outro elemento básico: informação confiável para atestar os resultados do programa. Como mostrou recentemente o Estadão, o MEC trabalha com dados inflados sobre a qualidade da conectividade nas escolas públicas. Em outras palavras, o MEC enxerga como “adequada” a velocidade de 15.404 escolas cuja rede está aquém do que a comunidade escolar precisa. A discrepância se deve a uma razão simples, mas de efeito complexo: em vez de utilizar o medidor oficial, como recomenda uma resolução do Comitê Executivo da Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, o MEC considera, em muitos casos, desempenhos declarados por outras fontes de informação, originadas das secretarias estaduais e municipais.

Usando o medidor oficial, nota-se que, das 137,9 mil escolas públicas do País, 49,2% têm internet com velocidade considerada adequada. Já em 36,1%, a conexão medida é ruim e não serve para professores e alunos. Para o MEC, contudo, o patamar é diferente: 60% têm velocidade adequada, enquanto 25% exibem rede considerada ruim. A reportagem registrou casos de dados inflados em praticamente todos os Estados. Também há relatos de estudantes que passaram a usar o dinheiro recebido via Pé-de-Meia – o programa que oferece bolsas para evitar a evasão no ensino médio – para contratar pacotes de internet e utilizar nas atividades pedagógicas. Mesmo reconhecendo que são casos extremos, fica evidente que o prejuízo imposto aos alunos e professores é incalculável.

No mundo onírico do governo, Lula da Silva prometeu chegar ao fim do mandato, em 2026, com todas as unidades conectadas (resta torcer para que, na cosmologia lulopetista, ter escola “conectada” signifique conexão compatível com o uso da internet). No mundo real enfrentado pela comunidade escolar, pesquisas básicas na internet para realizar atividades escolares requerem puxadinhos constrangedores, como capturar a rede da “tia” da lanchonete ou subir na cadeira para pegar um sinal, como descreveu uma aluna. É de consumir a energia do aluno e esgotar a paciência – e a esperança – do País.

São exemplos como esses que reforçam a desconfiança nacional em relação ao futuro e põem em dúvida a capacidade de nossas autoridades – mesmo aquelas bem-intencionadas, como as que estão hoje no MEC – de pavimentar nosso caminho rumo à condição de nação mais desenvolvida e menos desigual. Para tanto, não há outra rota se não a da transformação educacional, com qualificação da mão de obra, preparação das novas gerações para o novo mundo e tecnologia e pesquisa de ponta. Basta ver o exemplo de países com economia similar à brasileira que estavam no mesmo patamar que o Brasil há algumas décadas – e hoje estão muito adiante. É o caso dos países asiáticos que, invariavelmente, lideram os rankings de avaliação de ensino. Foram nações que souberam contar com adoção de currículos bem estruturados, formação robusta de professores, escolas em tempo integral, uso constante de avaliações e continuidade de reformas com visão de longo prazo.

Há um extenso percurso para o Brasil percorrer até tornar real, como se espera, a mudança efetiva na qualidade de nossa educação. Ter escolas conectadas é parte desse percurso – sem dados inflados, por óbvio.

Flertando com a arbitrariedade

O Estado de S. Paulo

Ao lacrar celulares de advogados de acusados de golpe, ministro Zanin afronta prerrogativa da profissão

O presidente da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cristiano Zanin, mandou lacrar, durante uma sessão, os celulares de todos os advogados dos acusados de “gerenciar” um plano de golpe de Estado no Brasil. O veto aos aparelhos ocorreu no julgamento da segunda denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra seis ex-auxiliares do ex-presidente Jair Bolsonaro.

A ordem foi imposta por Zanin sob a alegação de que o STF já proíbe que as sessões de suas turmas e do plenário sejam fotografadas e filmadas por aqueles que ocupam as suas plateias. No julgamento da primeira denúncia da trama golpista, no qual Bolsonaro virou réu, essa regra foi descumprida, e a Corte decidiu então vetar o uso dos celulares.

Os aparelhos dos advogados e também dos jornalistas foram postos em sacolas plásticas, em que pese o caso não correr em segredo de Justiça. A determinação foi executada sem a edição de um ato formal nem uma devida fundamentação jurídica. Posteriormente, em nota, o STF afirmou que a decisão “excepcional” foi chancelada por todos os integrantes da turma para “assegurar o bom andamento dos trabalhos e o cumprimento de uma decisão do ministro-relator” – no caso, a proibição de Alexandre de Moraes de que Filipe Martins filmasse a sessão.

Não faz muito tempo, era Zanin, na condição de advogado de Lula da Silva, que criticava as decisões de Sergio Moro na Operação Lava Jato. O então causídico chegou a se insurgir por ter sido proibido de gravar suas audiências. Suas queixas ganharam à época o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Agora, a Ordem teve de reclamar do ex-colega que chegou à Corte por indicação de seu ex-cliente, hoje presidente da República. Beto Simonetti, presidente da entidade, enviou a Zanin um ofício contra o veto aos celulares e precisou dizer o óbvio. O representante dos advogados citou que esses profissionais, no exercício regular de suas atividades, fazem o uso de “vasto acervo eletrônico”, e o celular, portanto, é um instrumento de trabalho.

Mas, mais importante, Simonetti lembrou o ministro de que o Estatuto da Advocacia, uma lei federal, estabelece que um dos direitos dos advogados é “exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional”. Por óbvio, liberdade não é um adorno na lei. Atuar com liberdade na defesa dos clientes é uma das prerrogativas dos advogados.

O presidente da OAB destacou ainda que os “direitos fundamentais” impõem “limites ao desempenho de funções dos poderes públicos”. Logo, é dever do Judiciário respeitar o contraditório e a ampla defesa, conforme previsto na Constituição. Sobretudo quando sobre os clientes dos advogados pesam crimes graves, como organização criminosa armada, golpe de Estado e tentativa de abolição violenta do Estado democrático.

Ao Poder Judiciário cabe respeitar as prerrogativas dos advogados e os direitos fundamentais dos acusados. Mas o caso dos celulares lacrados só expõe os flertes da mais alta Corte brasileira com a arbitrariedade nos últimos tempos.

Brasil precisa abraçar a velhice

Correio Braziliense

Até 2030 — ou seja, em menos de cinco anos —, o Brasil terá mais idosos do que crianças. Pouco tempo depois, em 2046, os 60+ formarão a maior fatia populacional do país, chegando a 28%, quase o dobro do percentual atual

Em texto escrito pouco antes da última internação a que foi submetido, o papa Francisco aponta os desafios do envelhecimento. "Não devemos ter medo da velhice, não devemos temer abraçar o envelhecer, porque a vida é a vida, e adoçar a realidade significa trair a verdade das coisas (...) É verdade, envelhecemos, mas esse não é o problema: o problema é como envelhecemos." O prefácio do livro Na espera de um novo começo. Reflexões sobre a velhice é mais um dos nobres ensinamentos do pontífice que precisam ecoar para além das balizas da Igreja Católica. Trata-se de desafio que extrapola também os limites individuais. Portanto, de razão civilizatória.

Maior país católico do mundo, o Brasil não escapa à urgência de aceitar-se velho, como sugere Francisco. Projeções recentes do IBGE deixam evidente que, se não começar a se ajustar agora à nova configuração etária que se molda de forma acelerada, o país corre o risco de ver estruturas sociais debilitadas colapsarem. Até 2030 — ou seja, em menos de cinco anos —, o Brasil terá mais idosos do que crianças. Pouco tempo depois, em 2046, os 60 formarão a maior fatia populacional do país, chegando a 28%, quase o dobro do percentual atual. 

Viver e fazer planos em um país majoritariamente idoso será, sem dúvidas, um desafio. E não faltam sinais de que o Brasil resiste a enfrentar a "verdade das coisas". No campo da saúde, a falta de profissionais especializados é gritante. A estimativa do Conselho Federal de Medicina é de que seria  preciso ter mais 29 mil geriatras para dar suporte à atual população idosa conforme as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS)  — hoje são apenas 2.670 profissionais, contra 48.650 pediatras. 

Ao Correio, a geriatra Aline Laginestra atribui esse deficit a uma resistência da própria categoria em aceitar o envelhecimento: "Ver a velhice com doença é muito difícil. Eu digo que é etarismo porque pratica-se a medicina da longevidade, da antiage". A professora universitária indica a necessidade de o país investir também em educação em saúde e científica para proteger a população dos falsos elixires da juventude. 

Pratica-se também no Brasil violência contra os idosos, em todas as suas formas. Em 2023, foram registradas 390 queixas de denúncias de violência contra os mais velhos por dia, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Considerando o fato de que os filhos são os principais agressores, ao menos a metade deles, é razoável afirmar que o número real de vítimas é muito maior. 

Não está velado, porém, que a maioria das vítimas é mulher e que os crimes envolvem de negligência a violência psicológica, passando por abusos físicos e financeiros. Diante de um compilado tão diverso de agressões, a adequação das estruturas de segurança e de suporte às vítimas deve ser prioridade. Delegacias especializadas, agentes qualificados e refúgio aos vulneráveis — quase sempre pessoas que também sofrem com a autonomia comprometida — estão entre as demandas de agora.

Há ainda que se adaptar o sistema previdenciário, o mercado de trabalho, as estruturas das cidades, os acessos a lazer e cultura. Tudo isso considerando as especificidades de um país diverso e continental: os idosos que vivem hoje em favelas, como as fluminenses, têm dificuldades de chegar aos serviços do Estado que não sobem o morro, por exemplo. Abraçar a velhice exige do Brasil planejamento e, sobretudo, ação. O país, infelizmente, tem perdido a oportunidade de usufruir da longevidade conquistada de uma forma mais justa e sustentável.

O aplauso do cearense às águas do Orós

O Povo

É de emocionar, até a reação empolgada do cearense, nos últimos dias, com o registro de que o açude Orós voltou a sangrar, algo que não acontecia há 14 anos. Uma verdadeira multidão correu ao local, a partir da noite do último sábado, dia 26, assim que começaram a circular as notícias de que o evento histórico estava por acontecer, numa demonstração reafirmada da força de resistência da raiz cultural de um povo. Sem chamamento, sem nada organizado, num ato de pura espontaneidade.

A alegria proporcionada por tais momentos é única, ainda mais considerando que a última vez em que o emblemático reservatório experimentou situação semelhante foi no ano de 2011. Há muito tempo, portanto. Não há modernidade tecnológica ou ambiente de inovação que mude essa realidade, como fica novamente demonstrado pelo cenário que nos envolve hoje, agora. Coisa para ser comemorada de verdade, sem qualquer preocupação de estabelecer lado ideológico ou corrente partidária na perspectiva de buscar ganhadores ou interessados em tirar proveito, algo raro nestes dias de polarização em que tudo acaba transformado em objeto de disputa política.

O entusiasmo das autoridades e dos populares, tocante em vários aspectos, tem a ver com o que isso representa na vida real das famílias, garantindo água nas casas e nos estabelecimentos em geral por um tempo longo à frente, mas, num plano simbólico paralelo que entendemos de grande relevância, diz respeito a um valor cultural que nos acompanha uma geração após a outra. Sua valia mais forte, de verdade, está relacionada à capacidade que apresenta de atingir a alma de uma população.

O açude foi inaugurado em 1961 pelo presidente Juscelino Kubistchek, finalizando, num clima de grande festa para os cearenses, uma construção que havia sido iniciada ainda durante os governos de Epitácio Pessoa, entre 1919 e 1922. É uma obra gigante localizada no Centro Sul de nosso estado, com capacidade para armazenar 1,9 bilhão de m³ d'água, posicionando-se atrás apenas do Castanhão (em Jaguaribara), bem mais recente e que comporta 6,7 bilhões de m³. Os dois formam, junto aos açudes Araras (em Varjota), Banabuiú (em Banabuiú) e Figueiredo (em Alto Santo), o top 5 dos reservatórios cearenses.

As autoridades locais fizeram o que lhes cabia na adoção das providências necessárias para garantir condições mínimas de estadia às milhares de pessoas que correram ao local, na promoção do reencontro com o que temos de mais nosso. Apenas estar informado do que acontecia no Orós não bastava, era preciso testemunhar e, mais do que isso, comemorar. Nada mais cearense, e nordestino.

 

 

Nenhum comentário: