sexta-feira, 30 de maio de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Itamaraty agiu bem ante novo visto americano

O Globo

Até agora, não houve medida concreta contra autoridades brasileiras, e não interessa ao país inflamar os ânimos

Tem sido positiva a postura do Itamaraty em relação à nova política de vistos anunciada pelos Estados Unidos. Na quarta-feira, o secretário de Estado, Marco Rubio, declarou que restringirá a entrada no país de autoridades estrangeiras “cúmplices na censura a americanos”, citando América Latina e Europa. Em depoimento a parlamentares americanos, ele antes mencionara a possibilidade de impor sanções contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Apesar de ser uma medida sem cabimento, a reação da diplomacia brasileira foi serena e cautelosa, e é essencial que se mantenha assim. Por enquanto, não houve nenhuma medida concreta contra autoridades brasileiras, e o país tem outros interesses a defender na relação bilateral com os americanos, em particular no campo das tarifas. Não interessa ao Brasil inflamar os ânimos.

Em audiência no Congresso, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, lembrou que a concessão de vistos é prerrogativa de cada Estado. Não cabe ao Brasil, ou a qualquer outro país, dizer aos Estados Unidos o que fazer a respeito. Também é cedo para ter certezas sobre a mudança. Sob Donald Trump, o governo americano tem dado inúmeras demonstrações de incoerência, com vaivéns e recuos. A guerra tarifária deflagrada desde o início do mandato é o exemplo mais bem-acabado disso.

O mais provável é que a principal motivação da restrição a vistos seja econômica. No plano externo, o governo Trump tem defendido as redes sociais. Em fevereiro, o vice-presidente americano, J.D. Vance, chamou as regras europeias de moderação de conteúdo de “censura autoritária”. No mês seguinte, o presidente da Comissão Federal de Comunicações (FCC), Brendan Carr, também criticou a Lei de Serviços Digitais do bloco europeu. Outro alvo das restrições pode ser a China, maior atingida pela suspensão de vistos estudantis também imposta pelos americanos.

É plausível que autoridades brasileiras venham a sofrer restrições, pois o Brasil discute a regulação das redes sociais, atualmente uma terra sem lei, em termos similares aos europeus. Enquanto o Congresso tem sido omisso e procrastina, o STF tem sido forçado a agir. Ao longo do ano passado, Moraes protagonizou um embate com Elon Musk, dono do X, por desrespeito contumaz a decisões judiciais. Por enquanto, porém, tudo tem ficado mais no plano da retórica. Caso Moraes ou outras autoridades brasileiras se tornem alvos explícitos da nova política de vistos, será natural que o Brasil suba o tom em sua resposta, desde que sempre mantendo a serenidade.

Fora dos holofotes, diplomatas já têm buscado enfatizar às autoridades americanas a robustez da democracia brasileira e o respeito à legislação local. O Brasil não é a Nicarágua, muito menos a China. Depois da declaração de Rubio, a mobilização de bastidores conseguiu evitar o pior cenário, a aplicação de sanções financeiras — inclusive a cartões de crédito com bandeira americana — por meio da Lei Magnitsky. Nesse caso, as consequências seriam mais severas que a impossibilidade de viajar para os Estados Unidos. Tal cenário não pode ser descartado, mas diversas decisões de Trump têm sido derrubadas pela Justiça americana. Não causará surpresa se sanções arbitrárias a autoridades estrangeiras seguirem o mesmo caminho.

É urgente deter a expansão dos cigarros eletrônicos no Brasil

O Globo

Apesar de proibidos, uso dos vapes — mais nocivos que cigarro comum — cresceu 24% em apenas um ano

É preocupante o aumento no uso de cigarros eletrônicos constatado pelas autoridades de saúde. Dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca) revelam que, em 2024, 2,6% dos adultos brasileiros (4 milhões) usavam os dispositivos conhecidos como vapes, cuja venda é proibida. O percentual é o maior desde 2019, início da série histórica. Em um ano, a alta foi de 24%. Preocupa que a expansão aconteça principalmente entre jovens, alvos preferenciais da indústria tabagista.

Em abril do ano passado, depois de consulta pública que ouviu mais de 30 entidades médicas e científicas, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu manter a proibição aos vapes, em vigor desde 2009. A resolução veda fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento e transporte desses dispositivos, além de impedir qualquer propaganda. Mas eles continuam a ser vendidos sem maiores embaraços.

A indústria tabagista os apresenta como caminho para reduzir danos ou largar o cigarro. Não é bem assim. A carga de um único dispositivo pode equivaler a 20 cigarros tradicionais, segundo a Associação Médica Brasileira. Em artigo no GLOBO, o médico João Paulo Becker Lotufo, coordenador do ambulatório antitabágico do Hospital Universitário da USP, afirma que estratégias como sabores e ausência de cheiro disfarçam os riscos, como concentração de nicotina bem mais alta. Sem falar nas substâncias desconhecidas contidas nos produtos. Eles se tornaram mais atraentes — e mais nocivos.

tabagismo causa 477 mortes por dia no Brasil, ou 174 mil por ano, segundo dados do Inca. Está por trás de casos de obstrução pulmonar crônica, doenças cardíacas, derrame, câncer, diabetes e outros males. Apenas o fumo passivo responde por 20 mil mortes anuais. Ainda de acordo com o Inca, isso representa um custo anual de R$ 154 bilhões à sociedade, incluindo tratamento médico e perdas econômicas por morte prematura. No ano passado, 11,6% da população brasileira se declarou fumante. Entre os homens, o percentual é de 13,8%, quando já foi de 45% no passado.

O Brasil foi um dos países mais bem-sucedidos na redução do tabagismo, conquista obtida ao longo de décadas por meio de políticas exitosas. A expansão dos cigarros eletrônicos pode pôr tudo a perder. Por isso exige atenção das autoridades, e não só de saúde. Estabelecer legislação rígida é importante, mas, como se vê, não basta baixar uma resolução e achar que o problema está resolvido. Os dispositivos continuam inundando o mercado por caminhos subterrâneos. Regulamentá-los, como muitos defendem, não é solução. Continuarão a causar os mesmos males, só que de forma legalizada.

Além de ampliar campanhas educativas, é preciso investigar a origem dos vapes e aumentar a fiscalização para impedir a venda clandestina, sobretudo na internet. Do contrário, corre-se o risco de criar uma nova geração de fumantes, com cigarros mais novos, mas os mesmos velhos malefícios. Seria um retrocesso depois do avanço notável que o país empreendeu.

Justiça põe tarifas em disputa e deve estender trégua de Trump

Valor Econômico

Batalha judicial tem resultado incerto, aumentando a insegurança, mas pela primeira vez a Justiça atingiu o principal eixo econômico da atual administração

O presidente Donald Trump feriu todas as regras do comércio internacional ao decidir unilateralmente impor tarifas de importação a todos os países com os quais os Estados Unidos comerciam. Na quarta-feira, porém, uma decisão da Corte americana sobre Comércio Internacional indicou que o presidente também está ferindo as leis do próprio país e não poderia fazer o que tem feito. A Corte diz que a legislação usada pelo governo, uma lei de emergência de 1997, não o autoriza a usar para os fins que a lei traça o instrumento das tarifas, algo que compete basicamente ao Congresso. Um tribunal federal de apelações, ontem, restaurou a possibilidade de aplicar tarifas, até que se julgue se o governo feriu ou não as leis. Haverá uma batalha judicial de resultado incerto, aumentando a insegurança, mas pela primeira vez a Justiça atingiu o principal eixo econômico da atual administração.

O desfecho da disputa com a Justiça é imprevisível, e o governo, para perseguir seus objetivos, tem recorrido até a leis deixadas para trás no tempo, há mais de dois séculos, como a que foi aplicada para expulsar imigrantes, mesmo legais, do país. Mas a contestação é um sinal de reação que tende a se intensificar à medida que Trump tenta levar em conta apenas sua vontade errática e desrespeitar as leis que a tolhem. É possível que o contencioso chegue até a Suprema Corte, hoje dominada por uma maioria conservadora formada após indicações do atual presidente. Isso mostra também que o sistema de pesos e contrapesos da democracia americana, após a surpresa inicial paralisante da enxurrada de atos do Executivo que atordoou o país, continua ativo.

Trump e sua equipe pretendem obter salvo-conduto para qualquer atitude do presidente. Em algum momento, que pode ou não estar próximo, haverá um choque vital que pode fazer a mais antiga democracia do mundo refluir perigosamente. O governo utiliza argumentos potencialmente explosivos para enfrentar as barragens judiciais a seus anseios e fez uso deles novamente agora - dizendo que juízes, que não foram eleitos pelo povo, não podem impedir o Executivo de cumprir sua missão. A premissa coloca o Judiciário como subordinado no equilíbrio entre os poderes da república.

Não bastasse isso, o governo levanta sistematicamente suspeitas generalizadas contra os juízes, encarregados de zelar pelo cumprimento das leis, chamando-os, como fez ontem o diretor do Conselho Nacional de Economia, Kevin Hassett, de “ativistas” que estariam tentando frear “negociações muito importantes”, nas quais os EUA estariam obtendo “massivas concessões”.

Embora o prazo para a suspensão das tarifas “recíprocas”, de 90 dias, se encerre em 9 de julho, não se conhece nenhum acordo com países que, segundo o governo americano, estariam ávidos para fazê-lo. O único conhecido até agora foi feito com um aliado histórico, o Reino Unido. O entendimento com a China é provisório e dura também 90 dias, tornando as importações de produtos chineses as mais taxadas pelos EUA até agora.

Como Trump não hesita em falsear a realidade de acordo com seus desejos ou frequentemente confunde uma e outra coisa, é muito provável que tudo não passe de mais um blefe. O presidente americano, como Narciso ferido, indignou-se com o acrônimo Taco (“Trump always chickens out”, algo como “Trump sempre arrega”) e esclareceu que seus recuos são táticas de negociação, em que, no início, ameaça com tarifas “ridiculamente altas”. Ou seja, suas ameaças, segundo ele próprio, não são para valer, o que tem um efeito colateral: não se sabe aonde Trump quer chegar, dúvida a que talvez nem ele próprio saiba responder ao certo.

A Corte de Comércio Internacional dera um prazo de 10 dias para o governo atender sua decisão, sustada agora pelo tribunal de apelações. Porém, o sinal de que há um contrapeso institucional ao desafio lançado por Trump às regras constitucionais americanas tende a enfraquecer politicamente tentativas de conciliação das demandas abusivas do presidente, já consideradas exorbitantes pelos parceiros comerciais e agora, pela primeira vez, tidas como ilegais domesticamente.

Com esse obstáculo inesperado, é possível que a trégua tarifária se prolongue ainda mais, para alívio do sistema comercial internacional. Tanto o acordo com o Reino Unido como o armistício com a China se baseiam apenas na palavra de Trump, que muda com o vento, como suas intenções. Os incentivos para uma contemporização com as demandas dos EUA diminuem em um bom grau quando as próprias bases negociais, as tarifas de importação, se tornam questionáveis legalmente no país de origem, ou seja, reversíveis a qualquer momento. Há bons motivos para que os países alvos do protecionismo americano ganhem tempo nas discussões.

Sem as tarifas recíprocas, a proteção tarifária americana já se elevou de 2% para 15% em média, o suficiente para provocar danos econômicos significativos à economia americana e global. Interromper por aí a guerra tarifária de Trump seria dos males o menor.

Câmara recomeça mal o debate da reforma administrativa

Folha de S. Paulo

Grupo de trabalho descarta rever o alcance exagerado da estabilidade do funcionalismo; mais cômodo é aprovar reajustes

Em Brasília se diz que, quando não há intenção de resolver um problema, é criado um grupo de trabalho. Parece ser esse o caso do grupo de trabalho criado pela Câmara dos Deputados para debater a reforma administrativa, que começou —mal— nesta quinta-feira (29).

De saída, o coordenador do colegiado, o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) já deixou claro o que não pretende fazer. A reforma, disse, não promoverá um ajuste fiscal nem tocará na estabilidade do funcionalismo. "A ideia agora não é demitir ou maltratar o servidor, como se ele fosse o culpado pela ineficiência do Estado."

Vá lá que o objetivo principal não seja mesmo cortar gastos públicos de forma imediata e em grande escala. Ainda assim, há providências que poderiam contribuir para o reequilíbrio do Orçamento, como a redução dos salários iniciais das carreiras, de modo a distanciá-los do topo, e a regulamentação do teto remuneratório, hoje desmoralizado por penduricalhos de todo tipo.

Mas pior mesmo é descartar a revisão da estabilidade, a anomalia mais evidente do serviço público brasileiro. Conforme a Folha reportou em novembro do ano passado, 65% dos servidores de União, estados e municípios gozam de tal privilégio, proporção que não encontra paralelo entre os principais países.

A garantia contra demissões só faz sentido para carreiras típicas de Estado —juízes, procuradores, policiais, militares, auditores e outros profissionais que precisam de autonomia para exercer suas funções. Essa condição compreende pouco mais de 10% do quadro de servidores hoje.

Não se trata de culpar os funcionários pela ineficiência do Estado, mas de constatar que essa cultura de complacência a agrava. Como noticiou este jornal, um ínfimo 0,19% dos profissionais que ingressaram na administração federal entre 2014 e 2024 foram reprovados no estágio probatório a que são submetidos nos primeiros três anos, quando ainda não são formalmente estáveis.

É ilusório, ademais, imaginar que se possa manter por conveniência essa norma insustentável. Apurou-se recentemente que, entre 2013 e 2023, o número de funcionários temporários nas prefeituras —o nível de governo em que há mais demanda por novos servidores— cresceu 52,5%, ante uma taxa de apenas 4% dos concursados no período.

Deputados e senadores preferem manter boas relações com o poderoso lobby do funcionalismo —mesmo porque muitos de seus auxiliares, aliados e familiares estão instalados na máquina do Estado. Ademais, rejeitam mexer nos penduricalhos extrassalariais que beneficiam em especial a elite do Judiciário.

Mais cômodo é aprovar outro reajuste salarial para os civis do Executivo, como fizeram nesta semana, a um custo de R$ 18 bilhões neste 2025 e R$ 73 bilhões em três anos. Para questões minimamente mais complexas, como a progressão nas carreiras, cria-se um grupo de trabalho.

Por trás dos ataques a Marina

Folha de S. Paulo

Ministra questiona a exploração de petróleo no Amazonas, mas Lula e o presidente do Senado desejam apressar a empreitada

Em entrevista à Folha, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, buscou fazer a melhor leitura possível do compromisso do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com a agenda da proteção ambiental.

"O governo tem agido, mesmo em meio a contradições [decorrentes] do fato de sermos uma frente ampla, respondendo às necessidades da agenda ambiental. Você acha que a gente teria reduzido o desmatamento no Brasil inteiro se não fosse o esforço do governo, com 19 ministérios trabalhando junto?", questionou.

É compreensível e louvável que a ministra tenha preferido evitar o vitimismo depois de enfrentar um inglório embate na Comissão de Infraestrutura do Senado na terça-feira (27) —marcado por manifestações grosseiras de senadores, alguns deles da base governista, contra políticas atribuídas a sua pasta. A situação, no entanto, é mais complexa.

Na sessão do colegiado, Marina contou com escasso apoio de aliados ante intimidações como a de Plínio Valério (PSDB-AM), que declarou separar a mulher, merecedora de seu respeito, da ministra, que não faria jus a ele.

Marcos Rogério (PL-RO), que presidia o evento, criticou o comportamento de Marina e disse que ela deveria se colocar em seu lugar. Após três horas e meia, a ministra deixou a audiência antes de seu encerramento.

É de lamentar que seja esse o nível das altercações no Congresso brasileiro —hoje em dia muito ensaiadas para propiciar a divulgação de vídeos e áudios sem contexto nas redes sociais. O pano de fundo, porém, vai além de boçalidades machistas.

Marina é uma voz isolada do governo no questionamento à exploração de petróleo na Foz do Amazonas, um tema complexo que envolve legítimos interesses econômicos e federativos. Tanto Lula quanto o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), manifestam o desejo de apressar os trâmites técnicos para iniciar a empreitada.

Na semana passada, o Senado aprovou por ampla maioria um projeto de lei destinado a flexibilizar o licenciamento ambiental. O PT até votou contra o texto, mas o governo liberou sua coalizão para votar como quisesse. Além de um sinal da baixa capacidade de articulação do Planalto, foi uma mostra de pouca clareza da política ambiental.

Há argumentos a serem considerados de lado a lado. Fato é que a decisão precisa respeitar critérios técnicos a serem definidos por órgãos de Estado. Mais do que endossar sua ministra, no que tem falhado, é isso que o governo Lula precisa deixar claro.

Lula paga o preço da malandragem

O Estado de S, Paulo

Congresso deixa claro que não aceitará levar passa-moleque do governo, que pretendia usar o IOF para aumentar a arrecadação em vez de discutir a sério maneiras de cumprir as metas fiscais

A malandragem do presidente Lula da Silva ao editar o decreto de aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) não colou. O governo está prestes a passar pelo vexame de ver a medida ser derrubada – seja por um recuo do próprio Palácio do Planalto, seja por ação do Congresso. Por meio da rede social X, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), informou que fez chegar ao governo a “insatisfação geral dos deputados com a proposta de aumento de imposto”, ressaltando que “o clima é para derrubada do decreto do IOF” na Casa. Motta e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), deram um ultimato ao governo: num prazo de dez dias, o Ministério da Fazenda tem de apresentar alternativas ao aumento do IOF.

Se serviu para alguma coisa, a esperteza de Lula escancarou que a intenção do governo era mesmo tentar cumprir a meta fiscal deste ano pela via do aumento das receitas, mantendo intocado qualquer ajuste estrutural pelo lado das despesas. A rigor, isso não chega a ser novidade, pois é notória a ojeriza do petista à ideia de austeridade fiscal, sobretudo em ano pré-eleitoral.

Mas o que chama a atenção em todo este imbróglio é a audácia de um governo absolutamente emasculado de tentar engambelar um Congresso poderoso e claramente infenso às suas pautas, quando não hostil. E da pior maneira possível: por meio da perversão da natureza regulatória do IOF, com o evidente objetivo de passar a perna no Poder Legislativo e, assim, fugir do debate democrático sobre a pertinência de mais um aumento da alta carga tributária do País. Nesse sentido, Hugo Motta está coberto de razão ao cobrar que o presidente da República participe diretamente da negociação sobre as alternativas ao aumento do IOF, vale dizer, da construção de um plano fiscal consistente e duradouro, e não de “gambiarras tributárias só para aumentar a arrecadação”.

A bem da verdade, também recai sobre os ombros do Congresso uma parcela da responsabilidade pelo desarranjo das contas públicas. Convém lembrar que, no final de 2022, o então recém-eleito Lula da Silva contou com a chamada Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição para iniciar o governo gastando como se não houvesse amanhã. E, agora, vê-se que essa conta não fecha. Ademais, com que autoridade pode pontificar um Congresso que tomou para si nada menos que R$ 50,4 bilhões do Orçamento da União apenas em 2025 a título de emendas parlamentares – dispostas, como é sobejamente sabido, sem a devida transparência republicana?

De toda forma, no regime presidencialista que, supostamente, ainda vige no Brasil, cabe ao Poder Executivo propor e liderar um esforço nacional pela racionalização dos gastos públicos. Mas, ao que parece, isso nem de longe está no radar de Lula, como seus comícios Nordeste afora nesta semana deixaram claro para quem ainda tinha alguma dúvida. Portanto, é diante desta esquizofrenia de um governo que, por um lado, propõe medidas erradas para cumprir a meta fiscal e, por outro, informa que gastará o que tem e o que não tem à disposição em nome do triunfo eleitoral em 2026 que o Congresso que aí está se ergue como um bastião da austeridade fiscal, e não sem certa dose de razão, é forçoso reconhecer.

Caso estivesse genuinamente preocupado com o equilíbrio fiscal do País, Lula não apenas poderia, como deveria ter envolvido o Congresso na discussão de medidas voltadas a esse nobre fim a tempo certo. Não apenas não o fez, como, em vias de descumprir o que ainda resta de arcabouço fiscal, optou por driblar o Poder Legislativo. Agora, Lula pagará com humilhação por essa malandragem, além de ver a credibilidade de sua equipe econômica – que já não era alta – restar ainda mais desgastada.

Já para o País, o prejuízo é ainda maior: a corrosão da confiança dos agentes econômicos na capacidade do governo de liderar uma política fiscal coerente, estável e previsível. A insegurança gerada por esse tipo de artifício afasta investimentos e empurra o Brasil para um círculo vicioso em que o populismo sabota qualquer vislumbre de crescimento sustentável.

Distribuição de renda às avessas

O Estado de S. Paulo

Direito à Justiça gratuita, que deveria facilitar acesso ao Judiciário a quem é pobre, beneficia até trabalhador com alto salário. Como nada é de graça, conta fica para o pagador de impostos

Previsto como um instrumento para abrir as portas do Judiciário aos brasileiros pobres e tornar democrático o acesso a esse Poder, o direito à Justiça gratuita se tornou, na prática, em mais uma fonte de injustiças no Brasil. E o desvirtuamento desse direito pode ser constatado sobretudo na Justiça do Trabalho.

Como destacou o professor José Pastore em sua coluna no Estadão, é possível encontrar inúmeros processos em que assalariados com boa renda usufruíram do benefício – destaca-se, a título de exemplo, o caso de um empregado que recebia R$ 40 mil mensais e que não pagou nada para entrar com processo na Justiça do Trabalho. Trata-se de uma espécie de distribuição de renda às avessas, custeada, claro, pelo Estado.

Significa dizer que cidadãos com renda nada desprezível podem ser dispensados do pagamento de custas processuais, taxas e emolumentos. Como movimentar o aparato judicial para pleitear um alegado direito tem custo, alguém precisa bancá-lo. Ao fim e ao cabo, é o cidadão pagador de impostos quem financia o privilégio.

A reforma trabalhista de 2017 bem que tentou impor alguma racionalidade na concessão da gratuidade. As mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) tinham, ao lado da modernização das leis trabalhistas, o objetivo de frear a chamada litigância aventureira, tão deletéria para o ambiente de negócios no Brasil.

A ideia dos legisladores era fazer com que pedidos absurdos tivessem um custo para quem os pleiteasse. Esses pedidos indevidos eram comuns porque acionar o Judiciário não custava nada ao bolso dos aventureiros, haja vista que lhes eram garantidos a Justiça gratuita e o não pagamento de honorários sucumbenciais ao advogado da parte vencedora em caso de derrota.

Em boa hora, a reforma trabalhista determinou que tudo isso estava errado. Ficou estabelecido, então, que somente o trabalhador que recebe até 40% do teto do benefício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), hoje em R$ 3.263, teria direto à Justiça gratuita. E, em caso de derrota, o empregado teria de pagar os honorários de sucumbência, mesmo quando beneficiado pela Justiça gratuita.

Os números provam como a litigância aventureira era banalizada. A quantidade de novos processos trabalhistas caiu de 2,6 milhões, em 2017, para apenas 1,7 milhão, em 2018. Desde então, a Justiça do Trabalho parece resistir como pode à reforma trabalhista – e no ano passado o Tribunal Superior do Trabalho (TST) deu mais um passo para esvaziá-la.

O TST decidiu que os juízes devem conceder o benefício da Justiça gratuita a quem ganha mais de 40% do teto do INSS se apresentar uma mera declaração de pobreza. É uma interpretação bastante expansiva, uma vez que a reforma trabalhista havia definido que os juízes poderiam conceder o benefício desde que comprovada a insuficiência de recursos para pagar o processo. Para piorar, o TST firmou o entendimento de que o empregador pode contestar o benefício, mas terá de provar que quem lhe processa tem dinheiro.

O potencial dessa decisão, por óbvio, será explosivo. O número de ações trabalhistas, que já voltou a superar os 2 milhões no ano passado após uma série de flexibilizações nas regras da reforma, poderá crescer ainda mais.

Felizmente, há no Congresso quem tente colocar as coisas no lugar. Um projeto sob relatoria do senador Laércio Oliveira (PP-SE) poderá limitar o benefício a quem recebe menos de 40% do teto dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, a beneficiário de programa social do governo federal, a quem aufere renda mensal de até três salários mínimos, a mulheres em situação de violência doméstica e familiar, a membros de comunidade indígena ou quilombola e a quem quer que seja representado por defensores públicos. Ou seja, será uma lei cujo objetivo é obrigar a cumprir o que já está na lei.

É lamentável quando o óbvio precisa ser dito, sobretudo a juízes, que são perfeitamente capazes de saber que a Justiça gratuita deveria ser garantida a quem de fato precisa, ou seja, a quem é pobre.

Desafinado

O Estado de S. Paulo

Barroso se zanga ao ser criticado por cantar em festa de empresário com interesses no STF

O ministro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, anda ressentido com a imprensa profissional por causa das críticas que alguns membros do Poder Judiciário e, em particular, do Supremo têm recebido por certos comportamentos que conspurcam a aura de imparcialidade que deve revestir a judicatura. No que se afigurou como uma nova manifestação de seu despreparo para lidar com o escrutínio público, o sr. Barroso zangou-se com o tratamento dado a um vídeo no qual ele aparece cantando e confraternizando com empresários que têm interesses comerciais em jogo no julgamento de ações que tramitam na Corte. Entre eles, o principal era o anfitrião do convescote, Diego Barreto, presidente do iFood.

Na abertura da sessão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do dia 27 de maio, Barroso atribuiu as críticas que recebeu à “incultura” que grassa no Brasil, “um problema difícil de sanar” por essas bandas, segundo o iluminado ministro. Isso porque no jantar, é claro, foi servido um coquetel de boas intenções – sempre elas, aquelas das quais o inferno está cheio.

A causa, não se discute, é nobre: o jantar celebrava o financiamento do Programa de Ação Afirmativa para Ingresso na Magistratura, uma iniciativa do CNJ em parceria com a FGV e a Universidade Zumbi dos Palmares para conceder bolsas para futuros magistrados negros e indígenas, de modo a diminuir a discrepância entre o painel socioeconômico da magistratura e a demografia brasileira. O problema, porém, não é o conteúdo, mas a forma.

O ministro Barroso pode ficar chateado, mas é dever de quem preza pelos valores republicanos, como este jornal, chamar a atenção para o fato de que o presidente do Supremo não pode ser visto em animada confraternização com um empresário cujos negócios dependem do voto dos ministros deste mesmo Supremo, onde tramita o caso do reconhecimento de vínculo trabalhista de entregadores por aplicativo.

Não custa lembrar que, por mais recalcitrantes que sejam alguns ministros do STF em aceitar que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional também se aplica a eles, qualquer magistrado do País está obrigado a “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular” (art. 35, VIII, da Lei Complementar 35/1979). E não se pode dizer que tenha sido “irrepreensível” a conduta do ministro Barroso naquela festa, como bem notaram os integrantes da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos, que reúne muitos trabalhadores associados ao iFood.

Em nota, esses “incultos”, segundo a concepção do ministro Barroso, foram certeiros ao lembrar que “à mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta”. E acrescentaram: “O presidente do STF representa a instituição perante o povo. Deve, portanto, se recompor e voltar ao seu trabalho, que é o de ser guardião da Constituição federal da República, a Constituição Cidadã”. Bingo.

Se Barroso está mesmo bem-intencionado e quer prestar um serviço à República – e não há razões para duvidar disso –, melhor faria se trocasse os sarais eivados de conflitos de interesse pelo silêncio institucional, e a afetação iluminista pelo respeito aos limites do cargo.

A jovem geração ansiosa demanda mais cuidados

Correio Braziliense

Todas as iniciativas de vigilância e que estimulem o uso saudável de dispositivos são bem-vindas. Assim como a cooperação entre diferentes atores para conter os excessos

Nesta semana, veio ao Brasil Jonathan Haidt, um dos principais psicólogos sociais da atualidade e autor do livro A geração ansiosa — Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais, obra que se popularizou por enfatizar os prejuízos para o desenvolvimento infantojuvenil do uso das telas. Haidt apresentou números e fez paralelos instigantes sobre a relação entre a tecnologia e os riscos do consumo excessivo desses meios para a saúde física e mental, especialmente de crianças e adolescentes. E analisou o cenário nacional.

É importante destacar que, em fevereiro último, o governo brasileiro, a partir do Decreto nº 12.385/2025, regulamentou a Lei nº 15.100/2025, proibindo o uso de celulares e outros dispositivos eletrônicos no ambiente escolar. Pouco mais de três meses após o início da vigência das novas regras, Haidt, que também é professor universitário, elogia a situação do país: segundo ele, o Brasil tornou-se um exemplo mundial a ser seguido. 

Não restam dúvidas de que o decreto reduziu drasticamente a fixação dos usuários por esses dispositivos, pelo menos nas escolas, numa faixa etária em pleno desenvolvimento físico e intelectual. A comunidade escolar agradece, com destaque para os professores, que têm notado resultados positivos no que diz respeito à maior concentração nos estudos, à participação em sala de aula e à socialização entre seus pares. Sem dúvida, um avanço no âmbito educacional. Mas os desafios continuam.

Haidt alerta, por exemplo, para o impacto diferenciado das tecnologias sobre meninos e meninas. Enquanto eles são imediatistas, focados mais em games que em redes sociais, o que os torna dependentes, elas preferem as redes, são mais "investigativas" e assediadas pelos meninos, com impactos também na saúde mental. Há ainda o fenômeno do avanço das bets, que são cheias de chamativos para o público  jovem, como a presença de influencers e a ligação com resultados de jogos esportivos.

É cedo, certamente, para afirmar que a proibição do uso de celulares na forma como foi adotada na maioria das escolas é a melhor estratégia. Instituições acabaram por conduzir o processo de forma rígida, reduzindo a quase zero o uso dos dispositivos até mesmo pelos professores, e seguem os alertas sobre a importância da adoção de ferramentas tecnológicas como recursos pedagógicos. 

Melhor mesmo seria o uso consciente da tecnologia, sem repressão, sem vigília. Nesse sentido, Haidt defende como a etapa a ser seguida imediatamente um exercício maior de relacionamento entre pais e filhos. Conversar, monitorar e alertar para os riscos diversos e também letais. Há um aumento de casos de adolescentes que são vítimas de crimes praticados no submundo das redes e daqueles apreendidos por articulação com quadrilhas que disseminam desafios virtuais, conteúdos de estímulo à autolesão e ao suicídio, entre outras atrocidades.

Em um Brasil que se posiciona como o quinto país, entre 193, com a maior quantidade de usuários de smartphones no planeta e que oito em cada 10 pessoas com 9 a 17 anos que usam internet têm o próprio celular, todas as iniciativas de vigilância e que estimulem o uso saudável de dispositivos são bem-vindas. Assim como a cooperação entre diferentes atores — pais, agentes públicos, profissionais da educação e saúde — para conter os excessos.

Marco Civil da Internet volta à pauta do STF

O Povo (CE)

O Brasil será um exemplo para o mundo se chegar a uma regulamentação que preserve a democracia, enquadrando as big techs nos limites da lei

O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), agendou para a próxima semana a retomada do julgamento sobre a revisão do Marco Civil da Internet. O processo retornou automaticamente à pauta depois de expirar o prazo do pedido de vista do ministro André Mendonça, em dezembro.

O fulcro do debate é a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil (lei 12.965/2014), que responsabiliza as redes sociais e outras plataformas online por conteúdos gerados por terceiros, somente em caso de descumprimento de ordem judicial para removê-los.

Ou seja, o artigo 19 exclui qualquer responsabilidade das plataformas sobre o que é publicado por terceiros, e as redes só podem ser apenadas se recusarem o cumprimento de uma ordem judicial para a retirada do conteúdo publicado.

Observe-se, portanto, que atualmente, as plataformas não são automaticamente responsáveis por conteúdos ilícitos publicados por usuários de seus serviços. Assim, empresas são desobrigadas, por exemplo, de usar filtros para evitar a divulgação de tais informações. O argumento dos que defendem a manutenção do artigo 19 é evitar a censura prévia e garantir a liberdade de expressão.

Em seu voto, que começou a ser proferido em novembro do ano passado, o ministro Dias Toffoli, relator do processo, defendeu que o artigo 19 é inconstitucional, por sua incapacidade de oferecer proteção aos direitos fundamentais em ambientes virtuais. Para ele, a responsabilidade das plataformas deverá ter como base o artigo 21 do Marco Civil, que prevê a retirada do conteúdo após simples notificação.

O ministro Barroso busca uma espécie de "caminho do meio", com responsabilização parcial das empresas. Ele defende que, em alguns casos, como crimes contra a honra, seria necessária uma ordem judicial para a retirada do conteúdo. Em outros, as empresas ficariam obrigadas a adotar medidas para prevenir a circulação de conteúdos criminosos, como pornografia infantil, terrorismo, incitação ao suicídio, tráfico de pessoas e ataques à democracia.

É inegável que o Marco Civil da Internet precisa de atualização, pois completou 11 anos. Na velocidade com que evoluem as ferramentas digitais, a cada dia surgem novas questões legais e éticas.

Além do mais, é preciso levar em conta que as grandes empresas de tecnologia, as big techs, rejeitam qualquer tipo de regulamentação em seus serviços, muitas vezes passando por cima da legislação do país onde operam. Portanto, não resta dúvida de que o caminho correto é o da regulamentação dessas empresas de tecnologia.

O Brasil será um exemplo para o mundo se chegar a um modelo que preserve a democracia, enquadrando essas empresas nos limites da lei.

 

 


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