segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Velhas práticas, novos discursos, por Jorge Chaloub*

Folha de S. Paulo

Operação policial reproduziu velhas práticas do Estado em meio a novos discursos de teor fascista

Defesa da morte como política pública ganha destaque e mostra mudança brusca no Brasil

[RESUMO] Operação contra o Comando Vermelho nos complexos do Alemão e da Penha, a mais letal da história do país, com 121 mortos, expõe tanto continuidades (incursões violentas em favelas, desrespeito a direitos humanos) quanto mudanças no cenário brasileiro, como a centralidade que o culto à morte passou a ter na esfera pública, tornando desnecessárias as justificativas para matanças. Em meio a uma direita radicalizada e uma esquerda com dificuldade a assumir papel relevante neste debate, não há coalizão capaz de apoiar políticas alternativas de combate ao crime.

A chacina ocorrida no Complexo do Alemão expõe evidentes continuidades. Há, por um lado, a renitente violência com a qual o Estado brasileiro trata regularmente certos grupos sociais. Despontam ainda permanências mais recentes, como a política de guerra empreendida pelo estado do Rio de Janeiro, que ultrapassa os marcos históricos dos regimes políticos, sejam eles democráticos ou autoritários.

De Carlos Lacerda a Chagas Freitas, passando por Marcelo Alencar e Sérgio Cabral, as incursões violentas da polícia nas favelas são uma das principais formas de impor certa ideia de ordem, definida por um uso seletivo da lei, hábil em limitar os direitos dos moradores.

Por outro lado, em meio às mudanças no território, há a contínua dominação territorial do crime organizado, um problema grave não apenas para o Alemão ou a Penha, mas para a implantação de uma ordem democrática no Brasil.

A ênfase nas permanências ofusca, entretanto, aspectos centrais do evento e mudanças importantes no cenário político do Brasil. Se a ação policial segue um roteiro em vários aspectos semelhante, o discurso público a justificá-la tem elementos novos, ou ao menos relegados às margens nas últimas décadas, e aponta para um lugar diferente da segurança pública.

Menções explícitas ao crime organizado como ameaças à "soberania nacional" e a definição dos criminosos como "narcoguerrilheiros" buscam justificar não apenas uma mudança de governo, a partir de cálculos eleitorais, mas uma ruptura com o atual regime político, como bem apontou Gabriel Feltran há alguns dias nas páginas da Folha.

As inspirações internacionais são evidentes. Um primeiro personagem é Nayib Bukele, presidente de El Salvador, que constrói sua popularidade a partir de uma política de segurança pública declaradamente amparada na violência policial, no encarceramento em massa e no desrespeito a direitos individuais.

Ainda mais influente é Donald Trump, que faz da relação entre criminalidade e soberania nacional um dos centros do seu governo de ultradireita, em argumentação capaz de justificar desde ações militares em grandes cidades norte-americanas até empreitadas militares internacionais.

O discurso encontra terreno fértil no Brasil. Retratar parte da população como criminosa é estratégia frequente na história nacional, das representações racializadas da vagabundagem à caçada aos subversivos.

Sem grandes confrontos externos, as Forças Armadas brasileiras há muito elegem inimigos internos, em regra tratados como tipos especiais de criminosos, que ameaçam não apenas alguns indivíduos ou mesmo parte da ordem social, mas colocam em risco os princípios da coletividade.

Há, todavia, uma mudança qualitativa nas duas últimas décadas. Parte central da identidade da ultradireita depende da representação de amplos setores da sociedade não como adversários, que seriam derrotados eleitoralmente, mas como inimigos a serem combatidos e preferencialmente exterminados.

Se o movimento apresenta diversas continuidades, há uma dimensão ostensiva de culto estético à morte, do elogio do extermínio do inimigo como um fim em si, que destoa dos exemplos históricos mais frequentes.

Durante a ditadura militar, por exemplo, massacres de certos grupos sociais eram usualmente tratados como males necessários, ou efeitos colaterais de medidas imprescindíveis para manter a ordem. Não é esta, todavia, a retórica atual.

dança do ex-governador Wilson Witzel quando de uma execução na Ponte Rio-Niterói, as reiteradas menções a tortura feitas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e as declarações do atual governador do Rio, Cláudio Castro, sobre o sucesso da operação compartilham de uma mesma representação da morte dos "criminosos" como algo moralmente positivo em si, sem a necessidade de uma justificativa maior.

Parte do fenômeno decorre de certo movimento de espetacularização da política a partir das redes sociais, nas quais frequentemente se recorre às maiores atrocidades como uma forma de acumular likes ou mobilizar seguidores.

Há, contudo, também a perda de velhos consensos construídos no pós-1945, que não impediram anteriormente as matanças estatais, porém tornavam inadequado certo tipo de culto à morte. Perdida certa memória de repulsa, elementos da linguagem política fascista se tornaram outra vez centrais na esfera pública.

A defesa da morte como política pública não está mais nas vozes de parlamentares secundários, mesmo que populares, como Tenório Cavalcante, ou personagens bizarros, como Sivuca, mas como um dos principais discursos de um ex-presidente da República. Bolsonaro defende a tortura de um modo que líderes autoritários anteriores nunca ousaram.

O retorno do fascismo não passa, entretanto, pela reconstrução de um regime político pregresso, mas emerge em um cenário bem distinto e não tem, como outrora, o evidente protagonismo do mundo mais vasto da ultradireita.

As polícias são, é claro, uma base social tradicional e fortemente mobilizada pelos traços mais clássicos do "fascio", como o elogio da violência e da ação em detrimento da razão, assim como o cultivo de certa ideia de um povo verdadeiro, que deve ser defendido e revelado por homens em armas.

O olhar para a cena mais ampla revela, todavia, outros discursos simpáticos à violência e distintos da tradição fascista, como certo ideal ultraliberal que reivindica o uso de armas e a autodefesa dos indivíduos. Tal linguagem política mobiliza grupos políticos distintos e soa mais palatável para parte das elites, de empresários a políticos da direita tradicional.

Assim como em outros momentos históricos, as linguagens políticas da ultradireita também tratam de problemas reais. Do mesmo modo que o fascismo surgiu a partir das mazelas concretas da guerra, o atual cenário lida com condições sociais e de segurança pública gravíssimas, o que bem sinalizam o altíssimo número de mortes violentas no país. Os descalabros e as violências dos grupos armados se voltam sobretudo contra os moradores dos territórios, situação intolerável em qualquer ideia de ordem democrática.

Reconhecer a gravidade da situação não implica, contudo, naturalizar saídas extremas ou violentas. Uma vez que se descumprem princípios constitucionais, como a garantia à vida, está em xeque a própria ordem social e jurídica. Não existe, por outro lado, qualquer garantia de eficácia, como experiências pregressas bem demonstram.

No atual debate, há frequente recurso a uma suposta natureza "conservadora" da maior parte da população, que, por isso, apoiaria a ação no Alemão. O argumento tem mobilizado uma série de pesquisas de opinião feitas no calor da hora, que foram tomadas, por diversos atores, como verdades objetivas sobre a visão popular a respeito da operação.

Um elemento básico das pesquisas de opinião é como elas respondem à conjuntura e são sensíveis ao momento. A conjunção entre a cobertura pública do massacre e a realização à quente das pesquisas exige muita cautela na análise dos dados, de modo a matizá-los a partir do momento. Há, sem dúvida, grande apoio da população a soluções violentas contra a criminalidade, todavia a ideia de um respaldo irrestrito e generalizado a um massacre é, no mínimo, precoce.

Não resta dúvida do papel secundário da esquerda neste debate. Ideias antes rejeitadas na esfera pública são cada vez mais fortes, sintoma da crescente influência da ultradireita na conformação dos limites do debate político.

Os diagnósticos sobre as possibilidades de ação dos atores progressistas parecem, contudo, assumir feição excessivamente idealista, como se a questão fosse a escassez de propostas ou o pouco conhecimento da realidade. Em tentativa de emular moderação, parte da imprensa e da militância das redes sociais apenas reproduz chavões da ultradireita.

A questão, entretanto, está mais no campo da capacidade de articulação política do que da posse de conhecimento técnico. Não há uma coalizão capaz de apoiar políticas alternativas de combate ao crime.

Dado o grande pragmatismo da esquerda nas mais diversas agendas, não parece crível que tudo se restrinja a um purismo de todo o campo, como parte das representações parece propor. Se faz necessário investigar como as lógicas eleitorais e a relação com as bases sociais explicam parte do fenômeno, cujo diagnóstico por certo ultrapassa um texto com este.

Resta, porém, a certeza de que as saídas não passam pela adesão a traços da dinâmica fascista, por muitos tratada como solução realista. Capitular deste modo retira a legitimidade da esquerda como ator capaz de disputar o tema.

Há, contudo, uma dinâmica ainda mais perversa. O fascismo se estrutura a partir da ideia de inimigos, sociais e intelectuais, de modo que, com frequência, a capitulação estimula novos processos de radicalização. Ao invés da saciedade gerada pela ideia de "faxina" dos supostos criminosos, virá a exigência de ações cada vez mais frequentes e intensas, em um cenário que só aprofundará o horror vigente.

*Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) 

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