Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Terminado o prazo de filiação partidária para os candidatos às eleições de 2010, no balanço notam-se perdas e nenhum ganho. Houve, sim, uma involução da espécie. Um recuo acentuado em relação a tudo o que tem sido dito e ouvido nos últimos anos sobre a necessidade de reformar os meios e os modos da política, a começar pelo fortalecimento dos partidos.
Na prática, o que se teve foi a negação desse discurso. Cresceram as legendas de aluguel, filiaram-se celebridades a mancheias atrás de volume de votos para aumentar o valor da cota dos recursos (públicos) do fundo partidário e celebrou-se o acordo tácito segundo o qual é golpe baixo reclamar na Justiça o cumprimento do preceito constitucional que dá posse dos mandatos aos partidos.
Instituiu-se a fidalguia da ilegalidade. Dela, decorreram fenômenos visíveis a olho nu: quem sai de um partido sem justa causa - a justeza estabelecida na lei, bem entendido - é uma pobre vítima, se o partido de origem reclama seus direitos. Outro: é sinal de habilidade política manter o bico fechado a fim de evitar represálias na mesma moeda.
Mais um: os perdedores ficam quietos na esperança de que, amanhã ou depois, a legenda que abrigou os trânsfugas venha a ser uma aliada. Com isso, tem-se o Supremo Tribunal Federal feito de bobo e a Constituição de letra morta.
Note-se o absurdo traduzido em percentuais. No Congresso, os partidos que mais cresceram com o troca-troca de última hora foram o PSC e o PR. O primeiro deu um salto de quase 90% e o segundo cresceu mais de 70%. É normal, isso?
Pela ótica do presidente do PSC, normalíssimo. E lucrativo. "Não tem problema nenhum. Aceitamos todo mundo. Se tiver recursos, melhor. Gostou do partido, da proposta, em recursos lícitos, vai ser candidato", diz Vitor Nóisses, já notório na área por sua atuação em outros carnavais.
A "proposta" em questão é "o ser humano em primeiro lugar" e os recursos aludidos partem do patamar de R$ 1 milhão. Não seria aluguel explícito?
"Quem não é alugado que atire a primeira pedra. Esses partidos são de certa forma alugados com vários cargos." Bem feito para os partidos que poderiam dormir sem essa, caso não emprestassem suas siglas para a degenerescência geral.
Aí incluídas as filiações de cantores, costureiros, jogadores de futebol, dirigentes de clubes, gente sem a menor intimidade com a política que, uma vez eleita, desaparece sob as engrenagens do sistema profissional e, na verdade, corre atrás de mais notoriedade. Na versão amena dos fatos.
E os partidos ganham o quê? Milhares, quando não milhões, de votos para eleger outros tantos sem-voto e engordar os cofres com as verbas do fundo partidário, pago proporcionalmente à representação parlamentar. Votos esses completamente desprovidos do sentido da representação político-partidária. Na realidade, uma legítima representação da despolitização do processo.
De um modo geral, as justificativas para as trocas de partido podem ser resumidas numa só: a oportunidade de eleição mais fácil. Um diz que se "sente melhor" no novo partido, o outro alega que a nova legenda proporcionou "mais facilidades para composições" e há os que, meigos, choramingam reclamando de maus tratos na moradia anterior.
Uma situação em tudo e por tudo bem pior que o cenário já ruim de 2002, quando o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do STF, Nelson Jobim, dizia que aproveitaria a oportunidade daquela eleição presidencial para fazer um levantamento minucioso mostrando, Estado por Estado, o grau de distanciamento entre o eleitorado, os eleitos e os partidos.
Dizia Jobim que, sem novas regras, o próprio caráter representativo do Parlamento seria desmoralizado. Defendia como normas indispensáveis a obrigatoriedade de as alianças regionais acompanharem os acordos partidários nacionais, a eleição proporcional em lista fechada, a fidelidade partidária, cláusula de desempenho para acesso a vagas no Legislativo, financiamento público, fim da prática da soma dos tempos de televisão das legendas coligadas.
Jobim argumentava que os grandes partidos seriam os primeiros interessados numa reforma desse tipo, pois sairiam delas fortalecidos.
Ledíssimo engano. Se o tal levantamento foi feito e entregue aos partidos, ninguém deu a menor bola. Todos os avanços feitos pelo Judiciário foram derrubados - na lei ou na marra - pelos partidos e, o que dependeu de decisão do Congresso, não foi feito. As poucas modificações tiveram o condão de piorar as coisas, a exemplo da permissão para doações ocultas.
Nesse meio tempo Nelson Jobim deixou o Judiciário, virou ministro da Defesa e nunca mais falou do assunto em público nem se tem notícia de empenho junto ao seu partido, o PMDB, para levar adiante as questões que, segundo ele, ou eram resolvidas ou acabariam provocando a falência do sistema político-eleitoral no Brasil.
Sete anos depois, é exatamente para onde caminhamos.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Terminado o prazo de filiação partidária para os candidatos às eleições de 2010, no balanço notam-se perdas e nenhum ganho. Houve, sim, uma involução da espécie. Um recuo acentuado em relação a tudo o que tem sido dito e ouvido nos últimos anos sobre a necessidade de reformar os meios e os modos da política, a começar pelo fortalecimento dos partidos.
Na prática, o que se teve foi a negação desse discurso. Cresceram as legendas de aluguel, filiaram-se celebridades a mancheias atrás de volume de votos para aumentar o valor da cota dos recursos (públicos) do fundo partidário e celebrou-se o acordo tácito segundo o qual é golpe baixo reclamar na Justiça o cumprimento do preceito constitucional que dá posse dos mandatos aos partidos.
Instituiu-se a fidalguia da ilegalidade. Dela, decorreram fenômenos visíveis a olho nu: quem sai de um partido sem justa causa - a justeza estabelecida na lei, bem entendido - é uma pobre vítima, se o partido de origem reclama seus direitos. Outro: é sinal de habilidade política manter o bico fechado a fim de evitar represálias na mesma moeda.
Mais um: os perdedores ficam quietos na esperança de que, amanhã ou depois, a legenda que abrigou os trânsfugas venha a ser uma aliada. Com isso, tem-se o Supremo Tribunal Federal feito de bobo e a Constituição de letra morta.
Note-se o absurdo traduzido em percentuais. No Congresso, os partidos que mais cresceram com o troca-troca de última hora foram o PSC e o PR. O primeiro deu um salto de quase 90% e o segundo cresceu mais de 70%. É normal, isso?
Pela ótica do presidente do PSC, normalíssimo. E lucrativo. "Não tem problema nenhum. Aceitamos todo mundo. Se tiver recursos, melhor. Gostou do partido, da proposta, em recursos lícitos, vai ser candidato", diz Vitor Nóisses, já notório na área por sua atuação em outros carnavais.
A "proposta" em questão é "o ser humano em primeiro lugar" e os recursos aludidos partem do patamar de R$ 1 milhão. Não seria aluguel explícito?
"Quem não é alugado que atire a primeira pedra. Esses partidos são de certa forma alugados com vários cargos." Bem feito para os partidos que poderiam dormir sem essa, caso não emprestassem suas siglas para a degenerescência geral.
Aí incluídas as filiações de cantores, costureiros, jogadores de futebol, dirigentes de clubes, gente sem a menor intimidade com a política que, uma vez eleita, desaparece sob as engrenagens do sistema profissional e, na verdade, corre atrás de mais notoriedade. Na versão amena dos fatos.
E os partidos ganham o quê? Milhares, quando não milhões, de votos para eleger outros tantos sem-voto e engordar os cofres com as verbas do fundo partidário, pago proporcionalmente à representação parlamentar. Votos esses completamente desprovidos do sentido da representação político-partidária. Na realidade, uma legítima representação da despolitização do processo.
De um modo geral, as justificativas para as trocas de partido podem ser resumidas numa só: a oportunidade de eleição mais fácil. Um diz que se "sente melhor" no novo partido, o outro alega que a nova legenda proporcionou "mais facilidades para composições" e há os que, meigos, choramingam reclamando de maus tratos na moradia anterior.
Uma situação em tudo e por tudo bem pior que o cenário já ruim de 2002, quando o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do STF, Nelson Jobim, dizia que aproveitaria a oportunidade daquela eleição presidencial para fazer um levantamento minucioso mostrando, Estado por Estado, o grau de distanciamento entre o eleitorado, os eleitos e os partidos.
Dizia Jobim que, sem novas regras, o próprio caráter representativo do Parlamento seria desmoralizado. Defendia como normas indispensáveis a obrigatoriedade de as alianças regionais acompanharem os acordos partidários nacionais, a eleição proporcional em lista fechada, a fidelidade partidária, cláusula de desempenho para acesso a vagas no Legislativo, financiamento público, fim da prática da soma dos tempos de televisão das legendas coligadas.
Jobim argumentava que os grandes partidos seriam os primeiros interessados numa reforma desse tipo, pois sairiam delas fortalecidos.
Ledíssimo engano. Se o tal levantamento foi feito e entregue aos partidos, ninguém deu a menor bola. Todos os avanços feitos pelo Judiciário foram derrubados - na lei ou na marra - pelos partidos e, o que dependeu de decisão do Congresso, não foi feito. As poucas modificações tiveram o condão de piorar as coisas, a exemplo da permissão para doações ocultas.
Nesse meio tempo Nelson Jobim deixou o Judiciário, virou ministro da Defesa e nunca mais falou do assunto em público nem se tem notícia de empenho junto ao seu partido, o PMDB, para levar adiante as questões que, segundo ele, ou eram resolvidas ou acabariam provocando a falência do sistema político-eleitoral no Brasil.
Sete anos depois, é exatamente para onde caminhamos.
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