DEU EM O GLOBO
A empresa tem que fornecer água potável para os trabalhadores. Essa é uma das 252 normas do Ministério do Trabalho para as fazendas. Por que escrever uma exigência óbvia? Entre 2003 a 2008, em 451 fazendas ficou constatado que os trabalhadores não tinham acesso à água minimamente aceitável. Há regras que não precisariam ser escritas desde o fim das senzalas.
Exemplos de regras espantosamente básicas: é preciso haver banheiro nos alojamentos; água para lavar o agrotóxico das mãos antes das refeições; os alojamentos têm que ser divididos por sexo; alojamentos de famílias não podem ser coletivos; trabalhador não pode pagar pelo equipamento de trabalho; se sofrer acidente, tem que receber primeiros socorros. Não deveria existir instruções assim tão detalhistas. O normal é que não houvesse.
Mas os relatórios dos grupos móveis de fiscalização, que foram a quase 1.800 fazendas d e s d e 2003, mostram que o que deveria ser normal numa sociedade civilizada, nem sempre é oferecido ao trabalhador de certas propriedades rurais.
A senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), disse à “Veja” que é impossível cumprir essa lista de 252 itens, conhecida como NR-31. Sugeriu que o descumprimento de qualquer dessas normas levaria a empresa rural a ser enquadrada por praticar o crime. Citou como exemplo de distorções o impedimento de que o trabalhador cuide do gado, depois das galinhas e depois limpe o pasto.
Quem acompanha o tema tem dificuldade de entender a senadora, ou de encontrar o nexo entre o que ela diz e os fatos. Primeiro, a Norma Regulamentadora 31 foi discutida, durante quatro anos, por uma comissão tripartite da qual a CNA participou; segundo, o que configura o trabalho escravo ou degradante é o artigo 149 do Código Penal e não essa instrução; terceiro, não há na lista nada que impeça que um trabalhador tenha várias funções na fazenda.
Até 2003, o artigo do Código Penal que condenava o trabalho análogo à escravidão era genérico, e isso favorecia as fazendas irregulares.
Mas o Congresso alterou o texto — com voto contrário da então deputada Kátia Abreu. O Código, agora, descreve quatro condutas que configuram o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo: trabalho forçado; servidão por dívida; jornada exaustiva; trabalho degradante.
A senadora reclama dessas normas dizendo que elas são fruto de preconceito ideológico contra a propriedade privada. Na verdade, não parecem ser contra o capitalismo, mas sim a favor do trabalho assalariado e, com garantias e direitos, que é da natureza do próprio capitalismo. Não cumprir essas regras seria restituir uma ordem medieval do trabalho.
Só uma minoria das empresas é encontrada com trabalho escravo, mas os casos não deixam dúvidas de que o país não está diante de uma picuinha de fiscais preconceituosos, ou de normatização compulsiva do governo. Os flagrantes são repulsivos. E o Ministério do Trabalho admite que só se fixa em 30% daquelas normas, as que são mais elementares.
Em 2005, a destilaria Gameleira, em Mato Grosso, foi autuada com mil trabalhadores com salários atrasados, em condições de moradia e alimentação inaceitáveis.
A empresa foi autuada quatro vezes pelo mesmo crime. Não mudou de conduta, mas mudou de nome. Em julho de 2007, 1.064 trabalhadores foram encontrados na fazenda Pagrisa, no Pará, em alojamentos superlotados, esgoto a céu aberto, salário com descontos de remédios ao preço seis vezes mais alto que nas farmácias da cidade, e água de beber “da cor de caldo de feijão”, como diz o relatório. No dia 13 de novembro de 2007, os fiscais encontraram 820 índios trabalhando numa das sete fazendas do grupo José Pessoa de Queiroz Bisneto, em Brasilândia, Mato Grosso do Sul. Eles trabalhavam com agrotóxico e depois comiam, sob o sol, sem ter, ao menos, água para retirar o produto das mãos. Entre várias cenas grotescas, os fiscais encontraram os trabalhadores amontoados em alojamentos mínimos. Em um deles, eram 20 pessoas em 26 metros quadrados.
Em abril de 2010, em Aragarças, Goiás, 143 cortadores de cana vindos de vários estados eram obrigados a pagar pela comida e habitação, dormiam em barracos, e foram pagos com cheques sem fundo, não tinham repouso remunerado.
Ao todo, de 2003 para 2009, foram encontrados 30 mil trabalhadores em condições análogas às da escravidão nas fazendas inspecionadas.
Uma minoria é autuada. Outras são simplesmente advertidas ou orientadas sobre o cumprimento da lei. Nestas, em geral a fiscalização depois encontra tudo resolvido. A dúvida é: se não houvesse a fiscalização, elas mudariam a atitude? No caso de J.
Pessoa de Queiroz Bisneto, no dia seguinte à operação ele me contou que tinha contratado banheiros químicos para os trabalhadores, instalado local com sombra para eles almoçarem e garantiu que reformaria os alojamentos.
A senadora sabe que o problema existe. Algumas dessas fazendas, como a Pagrisa, ela até visitou para prestar solidariedade aos proprietários. A melhor defesa dos produtores rurais seria separar a minoria criminosa e lutar contra essa prática. Em vez disso, a líder ruralista ataca as exigências feitas pela fiscalização.
Com ações assim, ela acabará convencendo o país que os empresários rurais são todos iguais. Se a CNA quiser falar sério sobre modernização, tem que começar desistindo de lutar no Supremo contra a lista que informa quem são as empresas criminosas.
A empresa tem que fornecer água potável para os trabalhadores. Essa é uma das 252 normas do Ministério do Trabalho para as fazendas. Por que escrever uma exigência óbvia? Entre 2003 a 2008, em 451 fazendas ficou constatado que os trabalhadores não tinham acesso à água minimamente aceitável. Há regras que não precisariam ser escritas desde o fim das senzalas.
Exemplos de regras espantosamente básicas: é preciso haver banheiro nos alojamentos; água para lavar o agrotóxico das mãos antes das refeições; os alojamentos têm que ser divididos por sexo; alojamentos de famílias não podem ser coletivos; trabalhador não pode pagar pelo equipamento de trabalho; se sofrer acidente, tem que receber primeiros socorros. Não deveria existir instruções assim tão detalhistas. O normal é que não houvesse.
Mas os relatórios dos grupos móveis de fiscalização, que foram a quase 1.800 fazendas d e s d e 2003, mostram que o que deveria ser normal numa sociedade civilizada, nem sempre é oferecido ao trabalhador de certas propriedades rurais.
A senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), disse à “Veja” que é impossível cumprir essa lista de 252 itens, conhecida como NR-31. Sugeriu que o descumprimento de qualquer dessas normas levaria a empresa rural a ser enquadrada por praticar o crime. Citou como exemplo de distorções o impedimento de que o trabalhador cuide do gado, depois das galinhas e depois limpe o pasto.
Quem acompanha o tema tem dificuldade de entender a senadora, ou de encontrar o nexo entre o que ela diz e os fatos. Primeiro, a Norma Regulamentadora 31 foi discutida, durante quatro anos, por uma comissão tripartite da qual a CNA participou; segundo, o que configura o trabalho escravo ou degradante é o artigo 149 do Código Penal e não essa instrução; terceiro, não há na lista nada que impeça que um trabalhador tenha várias funções na fazenda.
Até 2003, o artigo do Código Penal que condenava o trabalho análogo à escravidão era genérico, e isso favorecia as fazendas irregulares.
Mas o Congresso alterou o texto — com voto contrário da então deputada Kátia Abreu. O Código, agora, descreve quatro condutas que configuram o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo: trabalho forçado; servidão por dívida; jornada exaustiva; trabalho degradante.
A senadora reclama dessas normas dizendo que elas são fruto de preconceito ideológico contra a propriedade privada. Na verdade, não parecem ser contra o capitalismo, mas sim a favor do trabalho assalariado e, com garantias e direitos, que é da natureza do próprio capitalismo. Não cumprir essas regras seria restituir uma ordem medieval do trabalho.
Só uma minoria das empresas é encontrada com trabalho escravo, mas os casos não deixam dúvidas de que o país não está diante de uma picuinha de fiscais preconceituosos, ou de normatização compulsiva do governo. Os flagrantes são repulsivos. E o Ministério do Trabalho admite que só se fixa em 30% daquelas normas, as que são mais elementares.
Em 2005, a destilaria Gameleira, em Mato Grosso, foi autuada com mil trabalhadores com salários atrasados, em condições de moradia e alimentação inaceitáveis.
A empresa foi autuada quatro vezes pelo mesmo crime. Não mudou de conduta, mas mudou de nome. Em julho de 2007, 1.064 trabalhadores foram encontrados na fazenda Pagrisa, no Pará, em alojamentos superlotados, esgoto a céu aberto, salário com descontos de remédios ao preço seis vezes mais alto que nas farmácias da cidade, e água de beber “da cor de caldo de feijão”, como diz o relatório. No dia 13 de novembro de 2007, os fiscais encontraram 820 índios trabalhando numa das sete fazendas do grupo José Pessoa de Queiroz Bisneto, em Brasilândia, Mato Grosso do Sul. Eles trabalhavam com agrotóxico e depois comiam, sob o sol, sem ter, ao menos, água para retirar o produto das mãos. Entre várias cenas grotescas, os fiscais encontraram os trabalhadores amontoados em alojamentos mínimos. Em um deles, eram 20 pessoas em 26 metros quadrados.
Em abril de 2010, em Aragarças, Goiás, 143 cortadores de cana vindos de vários estados eram obrigados a pagar pela comida e habitação, dormiam em barracos, e foram pagos com cheques sem fundo, não tinham repouso remunerado.
Ao todo, de 2003 para 2009, foram encontrados 30 mil trabalhadores em condições análogas às da escravidão nas fazendas inspecionadas.
Uma minoria é autuada. Outras são simplesmente advertidas ou orientadas sobre o cumprimento da lei. Nestas, em geral a fiscalização depois encontra tudo resolvido. A dúvida é: se não houvesse a fiscalização, elas mudariam a atitude? No caso de J.
Pessoa de Queiroz Bisneto, no dia seguinte à operação ele me contou que tinha contratado banheiros químicos para os trabalhadores, instalado local com sombra para eles almoçarem e garantiu que reformaria os alojamentos.
A senadora sabe que o problema existe. Algumas dessas fazendas, como a Pagrisa, ela até visitou para prestar solidariedade aos proprietários. A melhor defesa dos produtores rurais seria separar a minoria criminosa e lutar contra essa prática. Em vez disso, a líder ruralista ataca as exigências feitas pela fiscalização.
Com ações assim, ela acabará convencendo o país que os empresários rurais são todos iguais. Se a CNA quiser falar sério sobre modernização, tem que começar desistindo de lutar no Supremo contra a lista que informa quem são as empresas criminosas.
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