DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
ENTREVISTA - Rogério Bastos Arantes é professor do departamento de Ciência Política da USP
Segurança pública não é só um problema cotidiano dos cidadãos – é questão de governo e de Estado, diz especialista
Ivan Marsiglia
Quando o cientista político Rogério Bastos Arantes decidiu, em um trabalho inédito, construir um banco de dados para analisar 600 operações da Polícia Federal ocorridas entre 2003 e 2008, ele esperava conhecer a ação do Estado contra a corrupção e o crime organizado no País. O que acabou conhecendo melhor, conta ele, foi outra coisa: "Como o crime organizado e a corrupção são dependentes do Estado".
Professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) de 1995 a 2008, Arantes, 41 anos, é um especialista no funcionamento das instituições políticas e judiciais brasileiras. Goiano de Anápolis, ele viu sua pesquisa sobre a atuação da PF ganhar relevância extra essa semana, quando notícias sobre o grupo criminoso Primeiro Comando da Capital (PCC) extrapolaram as fronteiras nacionais.
Dois brasileiros supostamente ligados à organização foram presos em Pedro Juan Caballero após um atentado contra o senador paraguaio Robert Acevedo. Não foi só isso: na segunda-feira, o governo dos EUA emitiu um comunicado pedindo que seus cidadãos evitem o litoral sul paulista, onde 13 assassinatos foram atribuídos à facção criminosa nos últimos dias.
Diante dos fatos, os principais pré-candidatos à Presidência da República foram à guerra. O postulante tucano, José Serra, prometeu, se eleito, a criação de um Ministério da Segurança Pública. A petista Dilma Rousseff rebateu, exaltando a coordenação federal da área, que já vem sendo feita via Ministério da Justiça. "Pela Constituição, cabe aos governos estaduais o combate ao crime", ressalta Rogério Arantes, "mas segurança pública diz respeito também a políticas de governo e de Estado".
Na entrevista a seguir, o cientista político fala do atraso com que o tema da segurança entrou na agenda da redemocratização, dos R$ 22 bilhões em recursos sugados do País pelas organizações criminosas - mais que o orçamento anual do Bolsa-Família -, do papel decisivo e dos riscos da atuação da PF e da conivência que marca por vezes o cidadão brasileiro: "As pessoas costumam ver a corrupção apenas no Estado, mas ela está na sociedade também".
Pesquisas de opinião mostram que a segurança, ao lado da educação, é a segunda maior preocupação dos eleitores brasileiros, atrás apenas da saúde. O tema será decisivo na campanha presidencial?
Sem dúvida, é um dos temas candentes da opinião pública nacional por aquilo que cerca as pessoas em seu cotidiano. Mas o debate entre os principais candidatos, Serra e Dilma, me parece, vai além: diz respeito a políticas de governo e de Estado. Foi o que os levou a divergir sobre a criação de um Ministério da Segurança Pública.
Um novo ministério é o caminho?
Eu diria que é natural que essa ideia apareça no contexto atual. Uma política que, segundo a Constituição, é fundamentalmente estadual, sofreu nos últimos anos um deslocamento para o plano federal - em função da política de segurança capitaneada pelo Planalto. Esse deslocamento envolve um fortalecimento das instituições federais de combate ao crime organizado e à corrupção, como a Polícia Federal e o Ministério Público. O governo chamou para si a responsabilidade de coordenar a área, e a proposição de um Ministério da Segurança viria consolidar esse processo.
E por que Dilma rejeitou a proposta?
Foi como se Serra se apropriasse de uma política que vem sendo conduzida de modo bem-sucedido pelo atual governo - na linha da estratégia de campanha tucana, que é a do "podemos mais". Dilma disse que a questão é mais de coordenação que de institucionalização em forma de ministério, pois é o que o Ministério da Justiça já vem fazendo. E em nível bastante agressivo: hoje, 17 Estados têm como secretários de segurança delegados da PF que foram conduzidos ao cargo mediante essa política articulada entre o governo federal e estaduais. E as Secretarias de Segurança sempre foram cargos estratégicos para as elites locais - que hoje não se incomodam ou se veem obrigadas a cedê-los para o nível federal. Dilma também disse: "Nós fizemos a Força Nacional". Mas o eleitor pergunta: onde está essa força? Ela não existe como corporação, é um conceito, que serve, nos casos previstos pela lei, para reunir policiais de corporações já existentes. A verdadeira força nacional hoje é a PF.
Por quê?
Ela é uma novidade republicana. Para repetir o bordão de Lula, nunca na história deste país se teve uma força policial de caráter civil, sob o comando do Poder Executivo federal e com capacidade de atuação em todo o território nacional. Nem os militares ousaram "empoderar" assim a organização. Após a ditadura não se fez isso, o governo FHC não o fez - exceto no final, quando inicia o reaparelhamento da PF. Quem de fato "soltou os federais" foi Lula. Já a criação de um ministério específico para a área esbarraria no texto constitucional. Seria uma tarefa mais complicada.
Nos últimos dias, o PCC saltou do noticiário paulista para o internacional, com o atentado no Paraguai e a recomendação do governo americano para que seus turistas evitem o litoral sul de São Paulo. A pressão de fora pode mobilizar as autoridades brasileiras?
Esses episódios pressionam o governo, mas são de fôlego curto. Entretanto, é perigoso para a segurança do Estado brasileiro o fato de que na região fronteiriça haja uma confluência do tráfico de drogas, de armas e do crime organizado. Quando um Estado não consegue controlar minimamente seu território e o uso da força nele, a ponto de ter que decretar "estado de exceção", como fez o Paraguai, passa a caminhar na direção do que a literatura chama de failed states - "Estados falidos". No Brasil, o crime organizado nunca chegou a ameaçar a ordem nesse nível. Mas a atenção do País deve ser redobrada.
Depois de um período de retração, o número de homicídios em São Paulo, a principal unidade da federação, voltou a subir. Outro dado preocupante: desde 2004, 21.240 das 97.549 armas de fogo registradas em nome de empresas de segurança privada foram roubadas ou furtadas. O que fazer?
Cabe à PF a fiscalização do porte de armas pelas empresas de segurança. A polícia não vinha sendo capaz de exercer esse controle de fato, e a sociedade desconhecia esses números e seu significado. Nós realizamos um referendo nacional sobre comercialização de armas e não dispúnhamos dessa informação crucial sobre o ingresso de armas no mercado ilegal brasileiro.
Por que o debate sobre segurança parece tão atrasado no País?
Porque desde a redemocratização a questão da segurança foi muito mais trabalhada sob o signo dos direitos humanos do que do fortalecimento do aparato policial. Isso foi muito benéfico, mas travou a discussão sobre a questão do crime a necessidade de reaparelhar as instituições de segurança pública. Naquele momento, importava mais reconstruir o Estado de Direito. O que ocorre agora é uma mudança de paradigma, e não deixa de ser curioso que tenha tido início na passagem da era FHC para a era Lula. Talvez por isso o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) não tenha encontrado terreno propício no debate público ou o STF tenha posto uma pedra sobre a ideia de revisão da Lei de Anistia. Não sei se essa é a melhor forma de encerrar o longo ciclo da redemocratização, mas diria que foram os últimos suspiros do cisne.
Uma das conclusões da pesquisa que o sr. realizou foi de que o crime organizado no Brasil é "dependente-associado" do Estado em 4 de cada 10 casos. O que isso quer dizer?
Que, em grande parte dos casos, o crime organizado depende do Estado e de seus agentes para se realizar. Seja de modo ativo, pelo assalto a recursos públicos, seja passivo, pela corrupção das atividades de fiscalização e de policiamento. Quando decidi estudar as operações da PF, estava motivado pela ideia de conhecer a ação do Estado contra a corrupção e o crime organizado. O que acabei conhecendo melhor foi como o crime organizado e a corrupção são dependentes do Estado. O maior número de operações da PF, por exemplo, ocorreu no combate à corrupção no INSS - que, no orçamento federal, detém a maior rubrica. Uma única operação desbaratou uma quadrilha que desfalcou a Previdência em R$ 1 bilhão. De modo que a PF a apelidou de "Ajuste Fiscal". O volume de recursos movimentados pelas organizações criminosas, estimado a partir de 125 dessas operações, foi da ordem de R$ 22 bilhões (o orçamento do Bolsa-Família previsto para 2010 é de R$ 13,7 bi). Isso quer dizer que boa parte da riqueza socialmente produzida no Brasil não é apropriada pelas vias legais - mas pelo crime, pela sonegação, pela facilitação de negócios ilícitos, etc. As pessoas costumam ver a corrupção apenas no Estado, mas ela está na sociedade também.
Sua pesquisa considera a atuação da PF positiva. Há problemas também?
A PF aparece na linha de frente dessas operações, mas por trás dela há quase sempre uma "força-tarefa", envolvendo também o MP e o Poder Judiciário e até agentes de outras instituições. Isso gera maior eficácia, mas preocupa os defensores das garantias e liberdades individuais. É o receio de que resultem em abuso de autoridade - como chegou a alertar o ex-presidente do STF, Gilmar Mendes.
Os principais candidatos à Presidência parecem bem informados sobre segurança?
O primeiro round travado entre os dois revela baixo grau de entendimento dessas questões. Quero crer que a campanha eleitoral seja capaz de produzir informação mais qualificada. Se a gente considerar que nas áreas econômica e social o mais provável é que haja continuidade, independentemente de quem assumir a Presidência em 2011, o que pode fazer diferença nas eleições deste ano são áreas como a da segurança. Seria muito útil, por exemplo, se esses candidatos pelo menos antecipassem o perfil dos futuros ocupantes dos cargos de ministro da Justiça e procurador-geral da República. São estes que lideram as organizações mais importantes para a segurança hoje, a PF e o MP, e terão que enfrentar o desafio de manter o equilíbrio das funções no interior do sistema. Eu definiria o meu voto em função dessas escolhas.
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