
Assim como nunca antes um presidente se envolveu tanto na eleição do sucessor, também não há referência, na história recente, de um presidente governando no Palácio do Planalto à sombra do antecessor popular e carismático que o elegeu. É uma novidade com a qual o país terá de aprender a conviver e que ninguém sabe exatamente aonde vai dar.
Em 2002, Lula agradeceu a "neutralidade" de Fernando Henrique Cardoso nas eleições, e a transição foi elogiada por sua "civilidade". É difícil imaginar a mesma cena, depois das de 3 de outubro, se o tucano José Serra vencer a disputa. Como o mais provável é a vitória de Dilma, a expectativa é em relação à autonomia da criatura em relação ao criador.
Lula diz que não pretende "se meter no cotidiano" de um eventual governo Dilma. "Não existe um tutor", tem repetido o presidente aos aliados, evidentemente preocupado com a repercussão de declarações que fez sobre seu papel na hipótese da eleição da candidata que inventou para disputar a sua sucessão.
Talvez no embalo das pesquisas, que indicam a vitória de Dilma no primeiro turno, Lula fez declarações que diminuem a candidata do PT. Em Petrolina (PE), por exemplo, afirmou que continuará viajando pelo país, depois que encerrar o mandato e se mudar do Palácio do Planalto, para ver o que fez e o que deixou de fazer no governo.
"E, se tiver alguma coisa errada, vou pegar o telefone e ligar para minha presidenta (referindo-se Dilma Rousseff, que o acompanhava) e dizer: "Olha, tem uma coisa errada aqui, pode fazer minha filha porque eu não consegui fazer", disse na região do rio São Francisco. Na mesma viagem, o presidente especificou o que pretende fazer após passar a faixa presidencial a Dilma. "Pode ficar certo que vou virar uma casca de ferida para fazer reforma política. É essa a contribuição que um político tem que dar para o País".
Em um comício de porta de fábrica, em São Bernardo do Campo, Lula também disse o que pensava sobre seu papel, após o 1º de janeiro de 2011: "Eu não serei apenas seu ajudante para fazer coisas melhores pra esse pessoal (os sindicalistas)", afirmou, em ato às portas da Mercedes Benz. "Mas também vou ajudar o pessoal a telefonar (para a presidente Dilma Rousseff)".
As declarações de Lula só aumentaram as dúvidas existentes em relação ao grau de autonomia de um governo chefiado por Dilma. Com sua imensa aprovação e popularidade, Lula seria um corpo com alta densidade gravitacional mesmo no caso de vitória do principal candidato da oposição, o tucano José Serra. Imagine-se com Dilma, uma candidata que Lula criou do nada, nunca pensou em ser presidente da República e está agora prestes a ocupar o cargo político mais importante do país.
Lula avançou por um terreno perigoso. Agora trata de reduzir os danos. Atribui seu discurso recorrente ao calor do momento e da campanha - um comício no Nordeste e um ato de porta de fábrica. Seus aliados dizem que o presidente tem "um enorme bom senso" e sabe muito bem que, depois que sentar na cadeira, Dilma pode até hesitar uma ou duas semanas, mas logo veste a roupa de presidente da República. Esta é a ordem natural das coisas.
Aos aliados, Lula disse que não passa por sua cabeça "governar nas sombras". Longe disso - afirma - será no máximo um "conselheiro político" da presidente nas grandes questões políticas. Confirma que seu projeto será então convencer o PT e os demais partidos da base de sustentação do governo a propor e votar a reforma política, no Congresso. Lula também pretende encampar a tese da criação de uma ampla frente partidária com todos os partidos aliados e não só aqueles situados à esquerda no espectro político.
Ideologicamente, a frente partidária imaginada por Lula é algo nos moldes daquela existente no Uruguai - uma ampla coalizão eleitoral de centro-esquerda que elegeu o presidente Tabaré Vázquez e seu sucessor, José Mujica. Na via inversa: transformar o que é hoje uma aliança eleitoral em aliança política permanente.
A convocação de Lula não será só à esquerda tradicionalmente aliada do PT, como o PCdoB, PSB e PDT. O alistamento será aberto a todos os "que estiverem interessados no processo de mudanças", segundo um interlocutor que discutiu o assunto com o presidente. Inclusive ao PMDB ou setores do partido.
Para o presidente, é evidente que, por se tratar de uma legenda maior que as demais siglas da aliança, o PMDB resista a fazer parte da frente ampla . Mas Lula e seus aliados esconjuram a informação de que ele articula um alinhamento de forças para se contrapor ou simplesmente contrabalançar o poder congressual pemedebista, que deve eleger a maioria no Senado e bancada igual ou ligeiramente menor que a do PT, na Câmara.
Em seus oito anos na Presidência da República, Lula não moveu uma palha pela reforma política. Diz agora que foram esses oito anos que o levaram a compreender que se trata de uma reforma "indispensável". Foram dois mandatos em que teria ficado "peitando" o varejo do Congresso, o toma lá, dá cá de deputados e senadores nas votações de interesse do governo. "É um custo peitar o varejo", diz um aliado do presidente.
Lula vai defender o voto em lista fechada e o financiamento público de campanha como os pilares da reforma do sistema eleitoral. Muitos dos aliados do presidente defendem que deve ser convocada uma constituinte exclusiva para fazer a reforma política. Ele mesmo ainda não indicou a posição que vai adotar. Seja qual for, uma coisa é certa: qualquer movimentação de Lula, fora do governo, terá repercussão dentro do governo e nas alianças congressuais de Dilma. Não há como separar o "cotidiano" do Palácio do Planalto das "grandes questões políticas". Para usar uma frase de uso comum no Congresso: quem pode mais - ou seja, reunir maioria para fazer a reforma política -, pode menos, como influir na nomeação ou demissão de um ministro.
Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário