Houve beleza, broncas, propostas e ambiguidades no discurso feito ontem pela presidente Dilma na ONU. Foi bonito começar e terminar lembrando de mais da metade do planeta que nunca esteve naquele podium naquele momento. As contradições em relação às revoltas do mundo árabe não chegaram a reduzir a força das afirmações sobre a crise econômica.
O Brasil há 64 anos faz o primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU. Como Dilma é a primeira mulher a governar o país, inaugurou também o privilégio de abrir a sessão de discursos da Assembleia. É apenas simbólico, mas é de símbolos assim que se faz o avanço de grupos discriminados.
Era previsível que Dilma falasse novamente da necessidade de mudar a governança do mundo. O planeta ficou mais complexo, o poder dos países que dominavam o mundo na metade do século passado está em declínio, mas a nova ordem não tem estrutura política que reflita a mudança. É assim na ONU, no FMI, Banco Mundial.
Neste momento em que FMI e Banco Mundial estão reunidos se vê como formou-se um conflito de interesses brutal na velha governança. A Europa dirige o Fundo Monetário e o FMI faz parte do resgate da Europa. A diretora-gerente, a francesa Christine Lagarde, tem tomado decisão sobre assuntos que são do interesse do seu próprio país, que, junto com a Alemanha, está pilotando a ajuda aos países endividados da UE.
Dilma repetiu que o Brasil quer assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. "Não é possível, senhor presidente, protelar mais." Realmente o assunto está há muito tempo em pauta. O problema é que na última vez que o assunto foi decisivo o país preferiu se abster. Ocupando uma cadeira rotativa, o Brasil não opinou sobre o apoio da Otan aos rebeldes líbios, sob argumento de que a força é o último recurso.
No discurso, ela repetiu, em relação às rebeliões norte-africanas, o mesmo e louvável princípio: a força como último recurso. Mas acrescentou: "Repudiamos com veemência as repressões brutais que vitimam populações civis." O que Muammar Kadhafi estava fazendo era exatamente uma "repressão brutal". Fica-se sem saber afinal qual é o ponto do Brasil. Dilma saudou a chegada do Sudão do Sul como novo membro da ONU e disse que lamentava não poder saudar o ingresso pleno da Palestina. Era uma forma de já adiantar que votará sim pelo reconhecimento da Palestina como Estado. Mas nenhuma palavra sobre a presença do novo governo líbio, cujo reconhecimento pelo Brasil foi espantosamente lento. Por semanas, a relação do Brasil com a Líbia ficou no limbo. Não reconhecia o novo governo e mantinha relações com um governo cujo líder tem paradeiro desconhecido. Sobre a brutal repressão do governo sírio aos manifestantes, o Brasil também foi ambíguo. Esse tipo de falta de clareza enfraquece os argumentos do Brasil em favor de um assento permanente no Conselho.
A presidente deu o tom certo para a crise econômica. Disse que é grave e pode provocar uma ruptura política e social sem precedentes. Acrescentou que a crise é séria demais para ser administrada por poucos. Para os países avançados, o recado foi que não está faltando recursos financeiros, o que falta são "recursos políticos"e "clareza de ideias". Para a China, o recado foi dado em tom mais suave. Ela disse que "os países superavitários" devem estimular seus mercados internos e deixar a moeda se fortalecer para, assim, reequilibrar a demanda global.
Mesmo sendo a presidente de um governo que na semana passada decidiu elevar em 30 pontos percentuais o imposto cobrado de carros importados, Dilma fez o costumeiro discurso contra o protecionismo. Disse que ele deve ser combatido porque confere competitividade de maneira espúria e fraudulenta. Pois é.
Ao tratar da questão climática e antes de convidar os chefes de Estado para virem para a Rio + 20, Dilma lembrou que o Brasil apresentou uma proposta "concreta, voluntária e significativa" de redução de emissões durante a reunião de Copenhague. Disse que espera novos avanços em Durban "no esforço de redução das emissões e garantindo que os países desenvolvidos cumprirão suas obrigações com novas metas do Protocolo de Kyoto para além de 2012."
Parece perfeita a posição, mas está contraditória. O Brasil tem dado sinais de que está recuando dos seus compromissos assumidos em Copenhague e neste momento vai na direção contrária na discussão do Código Florestal que facilita o desmatamento, nossa principal fonte de emissão. O Protocolo de Kyoto entrou num beco sem saída. Tem obrigações apenas para os países que o assinaram - os da Europa, Japão, Rússia - mas nada exige dos que se recusaram a assinar, como os Estados Unidos, o maior poluidor per capita do mundo; e a China, o maior poluidor do mundo. Kyoto entrou num impasse. Os países signatários não querem renovar seus compromissos.
No final do discurso, Dilma voltou a falar sobre as mulheres alertando que há muito a fazer para superar discriminações. Lembrou que é "mulher que sofreu tortura no cárcere" para dizer que sabe o que são importantes valores como democracia, justiça, direitos humanos e liberdade. Foi bem nos princípios. O diabo, como sempre, ficou nos detalhes.
FONTE: O GLOBO
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