Cientista político explica em entrevista os primeiros passos que pretende dar para resolver os sérios problemas de infra-estrutura da instituição
Ele discorda dos gastos assumidos pelo governo para a Feira de Frankfurt, mas garante que vai cumprir os compromissos
RIO - Quando foi anunciado que o cientista político Renato Lessa, de 58 anos, seria o novo presidente da Fundação Biblioteca Nacional, uma amiga mandou a ele uma mensagem de parabéns, com um recado: “Que Deus e o governo ajudem você”.
Pelos problemas que o esperam, Lessa realmente vai precisar da ajuda de todos os lados na gestão da instituição. Há um ano, desde uma inundação, sua sede no Rio está sem ar-condicionado, o que, no verão, levou a temperatura dos armazéns de livros para até 50 graus. Outro ponto a ser enfrentado por Lessa, oficialmente no cargo desde segunda-feira, são as críticas quanto aos atrasos e ao orçamento elevado na organização brasileira na Feira de Frankfurt, a maior do mundo para o mercado literário, que vai homenagear o Brasil em outubro.
Em entrevista no gabinete da presidência da Biblioteca Nacional ¬¬— com as janelas abertas pela falta de refrigeração —, Lessa reconheceu que há muito a ser feito. Segundo ele, serão necessários mais 120 dias para que um sistema antigo de ar-condicionado volte a funcionar na Biblioteca, e o tempo para que o sistema geral seja religado é indeterminado. Lessa também discorda dos gastos assumidos pelo governo para Frankfurt — R$ 15 milhões de investimentos diretos e a possibilidade de mais R$ 3 milhões via renúncia fiscal —, por acreditar que a homenagem deveria ser de responsabilidade do setor privado. Mas promete cumprir os compromissos.
Por fim, o novo presidente da Biblioteca Nacional discorda de Galeno Amorim, que esteve no cargo nos últimos dois anos, quanto à quantidade de municípios sem bibliotecas no Brasil: “É um número vergonhoso”.
Como foi feito o convite para o senhor assumir a presidência da Fundação Biblioteca Nacional? A ministra (Marta Suplicy, da Cultura) pediu algo específico ao senhor?
Foi em meados de março, poucas semanas antes de ela anunciar a mudança. Nós tivemos uma primeira conversa excelente, muito franca. O que me deixou muito seguro para aceitar o convite foi a possibilidade de institucionalizar políticas para a Biblioteca Nacional, sem que dependam de rompantes ou projetos pessoais, com um clima de independência. Além disso, ao mesmo tempo em que a ministra me deu autonomia e liberdade para estruturar a gestão da Biblioteca, ela manifestou também um enquadramento geral de como vê a coisa. A maior preocupação da ministra, da qual eu compartilho inteiramente, é ter uma restruturação tanto da Biblioteca Nacional quanto da política do livro. É um movimento que não incidiu apenas sobre a Biblioteca Nacional, ele inclui também a vinda do Castilho (José Castilho Marques Neto, presidente da editora Unesp) para a reorganização da política do livro e do Sistema Nacional de Bibliotecas como política pública de Estado em Brasília.
A junção de responsabilidades da Biblioteca Nacional com a política do livro era justamente uma das maiores críticas que parte do mercado fazia ao seu antecessor, Galeno Amorim.
A Biblioteca Nacional estava sobrecarregada. O excesso de atribuições torna impossível que todas recebam igual atenção. Não era um desenho adequado. Agora, a Biblioteca vai ficar desasfixiada para cuidar de suas atribuições naturais.
Em alguns de seus artigos publicados em jornais, o senhor já expressou críticas aos governos do PT. Isso em algum momento foi impeditivo para aceitar o convite?
Não foi só ao PT, também fui crítico aos governos anteriores. Mas em momento algum esse assunto apareceu na conversa com a ministra. Meus artigos não são secretos, têm a ver com meu lado de intelectual público, como observador dos hábitos políticos brasileiros. Não foram artigos que se dirigiam a este ou aquele governo. Isso é sabido, é público, estou longe de abjurar as coisas que eu escrevi. E acho que isso qualifica o convite, mostrando a ideia de independência de pensamento e de juízo.
Ainda há uma infinidade de livros físicos em circulação, mas ao mesmo tempo existe hoje um processo de digitalização em curso, de aumento da presença dos livros digitais. Em vista disso, qual o senhor considera ser o papel de uma biblioteca hoje? Esse papel está mudando?
Eu acho que o papel da biblioteca não se altera. O que as configurações novas trazem é a importância de uma biblioteca acrescentar dimensões a seu papel, que é a guarda de acervos valiosos. Fazer a guarda desses acervos incorporando tecnologias que permitam a recuperação e o restauro, mas isso tudo associado a uma perspectiva de publicização, de conquistar públicos leitores de diferentes níveis. Desde o leitor eventual até pessoas profissionalmente ligadas à pesquisa que têm na biblioteca seu local de trabalho. Acho que o futuro da biblioteca tem a ver com a capacidade de atender essa diversidade pública. Mas isso implica naturalmente um projeto agressivo de digitalização, mas não só do acervo específico de uma biblioteca, mas uma digitalização que componha redes de acervos digitalizados. Por exemplo, você pode imaginar uma grande biblioteca virtual que reúna as bibliotecas dos países lusófonos, em que os usuários possam compartilhar os acervos. Outro recorte possível é com a América do Sul. Existe um mundo para ser explorado de compartilhamentos de base da nossa Biblioteca Nacional com outras bibliotecas do mundo.
Como vai a digitalização do acervo da Biblioteca Nacional?
Ainda é muito pequeno, temos cerca de 25 mil títulos digitalizados. São 11 milhões de páginas.
De um total de quantos?
O total é complicado. Nunca houve um censo rigoroso de qual é o tamanho da Biblioteca, é uma coisa que precisamos fazer. Existe um número mágico de 9 milhões. Mas são 9 milhões de títulos, de volumes físicos? Por exemplo, naqueles 25 mil títulos digitalizados, a gente considera “O Globo” um título. Mas se forem exemplares, esse número já aumenta. Então não tenho como dizer um percentual do que já foi digitalizado. Mas posso dizer que é muito pouco, muito pequeno em função do volume do acervo. É uma prioridade das maiores, até porque, voltando à pergunta anterior, o papel da biblioteca depende da digitalização.
Falando sobre os problemas que a Biblioteca Nacional enfrentou nos últimos meses, o que ainda mais chama a atenção é a falta de ar-condicionado. É uma situação que se estende há um ano e que é prejudicial para usuários e funcionários, mas também é prejudicial para os livros. Ainda falta muito para isso se resolver?
É horrível para os livros. No pico do verão, me disseram que a temperatura no armazém de obras gerais bateu 50 graus. Você não pode ter um acervo valioso assim. O ideal são 23 graus, 22 graus. Mas, infelizmente, ainda está longe de chegarmos lá. Em marcha, começamos agora um processo de recuperação de um sistema antigo de ar-condicionado, e a estimativa que me deram é que a obra termine em 120 dias. Então a expectativa é que enfrentemos o verão com esse sistema antigo em funcionamento. Será um verão melhor do que o anterior, mas ainda longe do que a Biblioteca precisa. Já o sistema geral de refrigeração é de uma complexidade imensa e vai depender de um projeto de reforma. Temos dinheiro para isso e temos decisão de fazer a obra em seguida. Mas seria irresponsável eu dizer quando isso vai ficar pronto.
Qual a verba para essa reforma da refrigeração?
Existe um volume de recursos para as obras gerais da Biblioteca, que incluem as obras da sede e do anexo. O BNDES entra com pouco mais de R$ 40 milhões. Conseguimos também uma parte do PAC das cidades históricas, fizemos jus aos recursos porque somos um prédio histórico. E vamos ter ainda aplicações do orçamento da Biblioteca. Tudo isso vai dar um total de R$ 70 milhões. Vão ser usados para obras de estrutura, da refrigeração, da recuperação da claraboia, do reboco que andou caindo para a rua, da segurança, coisas assim. Enfim, são obras para levantar a infraestrutura. A administração anterior contratou a Fundação Getulio Vargas para fazer os termos de referência dessas obras, e eu vou ter uma reunião com eles na segunda-feira para saber em que pé isso está.
Mas olhando o acervo hoje, é possível que alguma obra tenha sofrido algum dano por causa do calor?
Não tenho notícias de danos ao acervo.
Outra questão muito discutida é a participação brasileira na Feira de Frankfurt, em outubro, quando o país será homenageado. Com a mudança na diretoria da Biblioteca Nacional, muda algo na organização da feira?
A participação brasileira na Feira de Frankfurt é uma política de governo que mobiliza o Ministério da Cultura e o Itamaraty. Acho importante desfazer um pouco a ideia de que a Feira de Frankfurt é a Biblioteca Nacional. Não é. A homenagem em Frankfurt significa que o governo brasileiro aceitou e entendeu que essa é uma oportunidade de promoção brasileira no exterior. O projeto é gerido por um comitê gestor, e a Biblioteca faz parte desse comitê, mas há outros integrantes, como a Funarte e o Ministério da Relações Exteriores.
Mas a Biblioteca tem um papel grande na organização.
Tem um papel grande, sim. Mas, na minha perspectiva, não é um papel compatível com as funcões próprias da Biblioteca. Como a Feira de Frankfurt tem uma dimensão econômica muito forte, algumas questões deveriam estar a cuidado dos editores do setor privado. Eu entendo que também há um interesse estratégico do Brasil, o que leva o poder público a participar, mas não me parece correto que isso seja pensado como exclusivamente fincado dentro de uma esfera estatal. Mas isso foi decidido em 2010 com comprometimentos financeiros e com o comprometimento da Biblioteca em algumas decisões, e isso será mantido. Estamos discutindo, hoje, que esse paradigma não se repita em outros eventos dessa natureza. Não cabe ao presidente da Biblioteca Nacional ser o dirigente dessa internacionalização dos livros brasileiros, e não associo o que penso sobre a Biblioteca Nacional a eventos do tipo. E ainda tenho uma reserva aos custos assumidos para a viabilização de negócios, sobretudo numa indústria que tem pujança, força e muita qualidade.
Quanto vai ser o gasto do governo em Frankfurt?
O orçamento total não vai passar de R$ 18 milhões. Desses, R$ 15 milhões vêm do orçamento do Estado brasileiro, pelo Fundo Nacional de Cultura. Já a Câmara Brasileira do Livro teve autorização para captar, via Lei Rouanet, R$ 13 milhões, dos quais nada ainda foi captado. Então, o que temos garantido hoje são R$ 15 milhões, e ainda faltam R$ 3 milhões para fechar o orçamento. Esse dinheiro virá ou de renúncia fiscal ou de patrocínio.
Houve algumas críticas sobre possíveis atrasos da preparação brasileira para Frankfurt. Alguma dessas críticas chegou ao senhor?
Com relação a prazos, nada chegou a mim. O que eu sei é que houve uma preocupação natural em relação à mudança na presidência da Biblioteca. Essas coisas são institucionais, mas envolvem relações pessoais. Então, quando há uma mudança dessas, surgem incertezas. Mas eu garanto que estamos trabalhando com a perspectiva de realizar o projeto na integridade.
Uma pergunta que é feita há anos e cuja resposta sempre foi um pouco nebulosa é sobre o número de municípios brasileiros ainda sem bibliotecas. O senhor sabe quantos faltam?
Eu não sei o número para te dizer, mas sei que é um número vergonhoso. A questão não é apenas o número de municípios sem biblioteca, mas temos que nos perguntar que bibliotecas existem e que pessoas trabalham nessas bibliotecas. Há gente que trabalha sem salários, com heroísmo. Essa é uma preocupação fortíssima da Elisa Machado, que dirige o Sistema Nacional de Bibliotecas: dar consistência a esse sistema, criando bibliotecas e fortalecendo as bibliotecas que existem.
É curioso porque, quando Galeno Amorim assumiu a presidência da Biblioteca Nacional, há pouco mais de dois anos, ele disse que faltavam “poucas dezenas” de municípios sem biblioteca no Brasil.
Eu não acho. A leitura no Brasil ainda é muito pequena, precisamos aumentar a familiaridade do brasileiro com o livro. Temos que ver isso realisticamente, como um obstáculo e desafio. Não como uma maldição que se abateu sobre a gente. A democratização do país não é só poder votar e ter liberdade para dizer o que pensa, democratização é a população ter acesso à cultura. E a biblioteca é um espaço fundamental desse processo.
Fonte: O Globo
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