quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Mário de Sá-Carneiro: Das sete canções de declíno

Um frenesi
hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Foi um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida...

Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil.
Na ideia de um país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem...

Parou ali a barca – e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... – ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo...

...Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor de rosa
As torres de platina e de saudade.

Avenidas de seda deslizando,
Praças de honra libertas sobre o mar...
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos – carícias de âmbar flutuando...

Os palácios a rendas e escumalha,
De filigrana e cinza as catedrais –
Sobre a cidade a luz – esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais...

Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho – solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada...

Exílio branco – a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos – seu brou-há-há...
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu – a estátua que nunca tombará...

Nenhum comentário: