- Valor Econômico
Duas décadas de observação da cena política nacional
No momento em que me despeço dos leitores desta coluna, espaço que ocupei por duas décadas de observação da cena política, vejo o retrato de um período em que, indispensável à democracia, essa atividade ficou estagnada, enquanto a tecnologia, a economia, a cultura, os costumes e a vida, enfim, sobretudo a sociedade, avançaram com firmeza.
O Brasil de hoje é muito diferente daquele de maio de 2000, quando, junto com a fundação do Valor, assumi este posto de observação. Já a política não repetiu, nos últimos 20 anos, os avanços que foram uma constante nas décadas anteriores, com ênfase à lembrança da redemocratização e da Constituinte.
Há dois exemplos da incompetência da política para dar respostas aos grandes desafios do país. Um, maior de todos, é o desemprego; o outro, a força de determinados grupos e corporações, de que se pode destacar os caminhoneiros, com sua constante ameaça de desabastecimento e paralisação do Brasil. Problemas que permanecem intocados.
A política foi incapaz de acompanhar o ritmo da evolução de uma economia mais aberta; de uma tecnologia desenvolvida; da massificação das informações; da modernização dos costumes e sua proteção às diferenças. Olhando para os governos que se sucederam no período, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), vê-se a direção da política em linha comum de concepção a todos eles, a da busca da governabilidade pela aliança da esquerda com a direita. Sem compromissos de ordem ideológica ou programática. Tentou-se juntar o liberalismo e a social democracia para levar adiante projetos de governo que se diferenciavam apenas por prioridades.
Fernando Henrique inaugurou o modelo, com a união de forças do PSDB e do antigo PFL, em torno dos dois orbitando os demais partidos do centro e da direita. A aliança levou o Congresso a aprovar reformas, oportunidade em que o governo desatou o forte nó do monopólio do petróleo. FH vinha do plano Real, que apontava o caminho para a economia, e de um impeachment do antecessor que apontava outro para a política. A reforma da Previdência foi tímida, mas o governo conseguiu dar um mínimo de equilíbrio às contas públicas.
Lula, que sofria derrotas eleitorais, decidiu que ou o PT se abria a alianças, ou não disputaria mais nada. Estava cansado de perder, queria sair do isolamento. O partido cedeu e, novamente, a união das forças políticas antagônicas foi a sustentação dos seus dois mandatos. A escolha de José Alencar, um grande empresário de Minas Gerais, de um partido da direita, para seu vice, selou o modelo que seria depois mantido nos dois mandatos que conquistou para Dilma Rousseff, que o sucedeu.
O que Lula fez com essa governabilidade viu-se, antes, na consolidação de um governo assistencial. Mas os empreiteiros assumiram a posição de patronos do governo, a mistura do público com o privado atropelou qualquer outra iniciativa e o combate à corrupção emergiu como o grande fato capaz de transformar a política.
Os primeiros sinais vinham do Mensalão, que não foi capaz de evitar a reeleição de Lula, quando o papel do Supremo Tribunal Federal, e do Judiciário de maneira ampla, tomou o controle da política das mãos do Legislativo e do Executivo. A Operação Lava-Jato veio na sequência e também não evitou a reeleição de Dilma Rousseff, mas embaralhou a política de tal forma que forçou uma renovação sem nada renovar.
Durante dois anos em que prendeu alguns dos mais importantes políticos e empreiteiros do país, a Operação assumiu a condição de maior iniciativa política do período e é reconhecida como tal. Sua contaminação por transgressões legais e éticas, porém, algumas da mesma natureza de seus investigados, reduz sua força e enfraquece a credibilidade de seus resultados.
Dilma Rousseff entrou na história do período com a queda de José Dirceu, o ideólogo do PT e artífice da candidatura de Lula. Fechou aliança com o MDB, mantendo o modelo da governabilidade pela união da esquerda com a direita. Mas começou por ele o esfacelamento do partido pelas denúncias de corrupção, levando Dilma ao seu lugar na chefia da Casa Civil e de lá, por escolha de Lula, à Presidência.
A negação da política foi a marca do governo Dilma. Seja pelo vício da luta armada, seja pelo isolamento, ou pouca sabedoria, Dilma não compreendeu que um país como o Brasil não admite governo voluntarista e personalista. Desprezou o Congresso no sentido político e institucional, e acabou sendo a principal patrocinadora do personagem que se tornou seu algoz, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha. O poder de Cunha cresceu no vácuo da omissão de Dilma e durou até se tornar inimigo público e ser preso.
Dilma considerava, a todos, ingênuos, só ela era sabida. Seu gesto fatal, de impedir a candidatura de Lula para se reeleger, apontou o rumo do desastre. O segundo governo foi um tumulto e o impeachment resultado da sua autossuficiência e aversão à política.
Assume o vice presidente Michel Temer, com ampla aliança ao centro. Impopular, lutou muito até o fim, principalmente depois de enfraquecido por denúncias de corrupção. Mas conseguiu livrar-se da cassação e aprovar dois ou três projetos importantes e necessários, sobretudo ao equilíbrio econômico.
O cortejo chegou ao governo Jair Bolsonaro, que não tem nada a ver com a história e do qual nada se sabe. De projeto personalista-militar, sem apoio no Legislativo, com governabilidade à deriva e falando apenas aos convertidos, o governo está ancorado no projeto econômico de uma única pessoa, o ministro Paulo Guedes, cujo desenrolar o presidente não conhece. Não se sabe o que Bolsonaro quer e para onde vai. Política está claro que não é.
Uma coisa mudou, radicalmente, no período: a maneira de a sociedade ver a política, com novas exigências, avaliações, críticas, condenações. A tolerância, hoje, é zero. Se, de um lado, intoxica o ambiente, de outro, incentiva a consciência sobre quem é protagonista de fato desta cena.
Agradeço a atenção, celebro a convivência, faço votos otimistas em relação ao futuro e sigo em frente.
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