Governantes não têm o privilégio do mistério. Os governados é que têm o direito à transparência
É notável o esforço do governo Jair Bolsonaro para impor mistério sobre as próprias ações, atropelando a legislação e os sistemas instituídos que garantem à sociedade plena visibilidade às decisões de Estado e aos atos dos agentes públicos.
Assiste-se, agora, a nova tentativa de legitimar uma inaceitável “democracia da ignorância”, na adequada definição introduzida pela ministra Cármen Lúcia no léxico do Supremo. O governo entra em rota de colisão com o STF e com o Congresso, ao se recusar a dar transparência devida no caso da suspeita de espionagem no Ministério da Justiça sobre um grupo de 579 servidores públicos.
A insistência no sigilo confronta o modo republicano de administrar o Estado e o direito ao escrutínio social. Mais grave é que, desta vez, o governo exibe desconfiança no Supremo.
Em resposta à ordem da Corte para apresentação de documentos, relevantes para esclarecer a suspeita de espionagem, o Ministério da Justiça alegou que “a mera possibilidade” de exame das suas informações “por outros atores internos da República — ainda que, em princípio, circunscrito ao âmbito do STF — já constitui circunstância apta a tisnar a reputação internacional do país”. Absurdo.
Acrescentou que “no cenário interno, não seria menos catastrófico abrir o acesso ao Judiciário a relatórios de inteligência”. Instou o Supremo à “parcimônia”, “sensibilidade” e “autocontenção”, sugerindo deixar o caso com o Legislativo, onde nasceu o recurso ao STF. Aparentemente, o órgão chefiado pelo ministro André Mendonça se vê como instância superior à autoridade constitucional.
Na quarta-feira, noutro processo, o Supremo estabeleceu limites à Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Relatora do caso, a ministra Cármen Lúcia lembrou: “Arapongagem é crime. Praticado pelo Estado, é ilícito gravíssimo”.
A lógica autoritária tem sido constante no governo. Logo depois da posse, servidores comissionados foram autorizados a classificar documentos como secretos e ultrassecretos. O Congresso revogou o decreto.
Na sequência, houve recusa na divulgação de estudos que fundamentavam a reforma da Previdência. O Legislativo reagiu. O atropelo segue na prática cotidiana de desidratação da Lei de Acesso à Informação.
Neste ano, o presidente chegou a editar Medida Provisória interrompendo requisições de informação aos ministérios. O STF suspendeu a MP. Em maio, o presidente explicitou sua relutância em cumprir ordem do STF para entregar os registros de uma reunião ministerial e resistiu a divulgar laudos de seus próprios exames para Covid-19.
A Constituição não permite aos governantes o privilégio do mistério. Ao contrário, garante aos governados o direito de saber como o Estado é administrado. O Ministério da Justiça está sob suspeita de espionagem política. O STF tem o dever de esclarecer se houve, ou não, um gravíssimo delito constitucional.
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