Digo adeus à ilusão/ mas não ao mundo. /Mas não à vida, meu reduto e meu reino. / Do salário injusto, / da punição injusta, / da humilhação, da tortura, /do terror, / retiramos algo e com ele construímos um artefato/ um poema/ uma bandeira (Agosto de 1964, Ferreira Gullar)
A Conferência Caio Prado Jr reconhece que a atual situação brasileira está a exigir que se procure defender e introduzir valores e comportamentos, particularmente de sentido ético, capazes de provocar uma revolução na cultura política do país, na forma de exercer mandatos, na forma de ser governo e na forma deste se relacionar com a sociedade civil, e no trato correto da coisa pública. Que atue a partir de doutrinas e ideais democráticos e humanistas, e identificados com as lutas pela equidade social e de gênero, pela defesa do meio ambiente, pluralidade étnica e religiosa, diversidade sexual, paz mundial e convivência pacífica entre países e povos, não interferência de um país em questões internas de outros, e contra a exclusão, as desigualdades e todas as formas de discriminação social.
É que, apesar dos diversificados esforços de partidos, correntes e personalidades, existe no país um espaço público incomodamente vazio. Daí a CCPJ propor que se trabalhe para ocupá-lo com uma esquerda democrática, republicana, identificada com a contemporaneidade, radicalmente reformista, compromissada particularmente com os social, econômica e politicamente excluídos e que esteja ancorada no regime de liberdades sancionado pela Constituição de 1988.
Por isso, a fim de corresponder ao anseio por uma cidadania plena de direitos e responsabilidades, apoia a necessidade de se discutir a centralidade e universalidade da questão democrática e suas consequências para qualquer agenda política no Brasil, tendo em vista que todo nosso sistema de relações sociais é profundamente viciado por padrões autoritários, desde a família, a escola, as empresas, a própria administração pública e a atividade política, e constata que sem projeto e métodos claros e transparentes, o campo da esquerda pode chegar ao poder, mas não consegue promover a mudança, isto é, ser esquerda no poder.
Dentro dessa perspectiva, propõe que se construa uma força política que tenha condições de contribuir para modernizar o conjunto da esquerda, de resto necessariamente plural, e, mais ainda, de incidir positivamente sobre todo o sistema político. Desta forma, pretende concorrer para que a extrema e contraditória diversidade de interesses e opiniões, que nasce naturalmente num país tão complexo como o nosso, tenha como um dos seus canais privilegiados de expressão a “forma partido”, sem nenhum prejuízo do amplo e rico tecido de organizações que deve caracterizar toda sociedade dotada de vida cívica democrática.
A auto-reforma das esquerdas - que nestes tempos nossos significa também “aggiornamento” - é, pois, um dos objetivos essenciais colocados por esta Conferência, uma primeira iniciativa que pretendemos dar na busca de novos rumos para o país. Já é hora de superarmos vocação autoritária da esquerda, uma vez que se baseia na incapacidade de compreender e absorver a centralidade da questão democrática.
Nestes termos, a democracia que aqui se afirma não é só um valor a que, há muito, aderimos com sólida convicção, mas também é o terreno mais adequado para a organização e a ação de mulheres e de homens, estimulando-os a ensaiar e exercitar o processo democrático na base da sociedade e no quotidiano de cidadãs e cidadãos. Pedagogicamente fundamental é se estabelecer uma correta e diferenciada relação com os movimentos sociais, evitando o aparelhismo e a partidarização das entidades.
Os recursos e os instrumentos da democracia política, por legitimarem plenamente a luta e o diálogo, o conflito e o consenso, são o método por excelência das imperiosas transformações sociais e econômicas requeridas. O eixo dessa mudança é a ampliação progressiva da democracia em extensão e profundidade. Trata-se de criar as condições materiais e políticas e gestar uma alternativa democrática que enfrente de forma positiva a atual realidade que oprime, aliena e exclui milhões de brasileiros de uma vida digna e livre. Um foco evidente da intervenção pública é a promoção ativa da cidadania.
A sociedade brasileira requer um Estado moderno que tenha nos processos democráticos e nos fundamentos republicanos a sua própria razão de ser. Ou se reforma o Estado, ou ele continuará a deformar impiedosamente as relações sociais e de poder. Por isso, o ponto central da agenda da esquerda é a Reforma democrática do Estado, necessária para retirar a máquina pública do atendimento de interesses privados restritos e corporativos, e abri-lo às necessidades de todos, submetendo-o ao controle da sociedade civil. A reforma deve ser completa, atingindo o funcionamento dos três Poderes, todas as agências do Executivo, assim como as instâncias de governo federal, estadual e municipal, tornando-as mais leves, ágeis, transparentes, reduzindo o arbítrio nas nomeações e fazendo valer o critério do mérito, em detrimento das relações de clientela. Para tanto são fundamentais a desconcentração e descentralização do poder, imprescindíveis também para que novos conjuntos de decisões sejam transferidos para as instâncias representativas locais, onde os cidadãos vivem, participam, decidem e fiscalizam.
Estas são, a nosso ver, pelo menos algumas das premissas irrenunciáveis da inadiável reconstrução das esquerdas brasileiras. E este, também, é o quadro mais geral em que se podem debater as mais diferentes soluções para as mais variadas questões tópicas.
Vivemos o fim de um ciclo – um rico período histórico, iniciado com a vitória de Tancredo-Sarney em 1985 e que parece encontrar seu fim com o Governo Lula. Vivemos seus estertores, mesmo que possam se prolongar um pouco mais no tempo, projetos diversos nascidos da resistência à ditadura e de paradigmas mundiais ultrapassados no seu tempo histórico. Um novo ciclo de desenvolvimento se torna imperioso, exigindo novas idéias, a materialização de paradigmas alternativos, enfim, um outro projeto reformador.
E esse novo ciclo no Brasil, como de resto em todo o mundo, exige repensar o modelo de desenvolvimento que deu formato ao chamado mundo moderno, em todas as suas configurações macroeconômicas. Outros critérios, que não apenas as taxas de crescimento econômico a todo custo, devem ser levados em consideração como por exemplo o respeito à sustentabilidade ambiental e à garantia de formas concretas de redução das desigualdades.
Os objetivos da Conferência Caio Prado Jr. permanecem vigentes como terreno de debate aberto aos diversos setores políticos, sociais, econômicos, e intelectuais, sobre esses aspectos fundantes da vida nacional. Ela se confirmou efetivamente como um primeiro passo para estimular a criação de um movimento amplo e sem hegemonismo capaz de construir e viabilizar as soluções para os graves problemas do país.
Essa grande tarefa nacional só será possível se articulada por forças partidárias democráticas renovadas, a começar pela esquerda, por amplos movimentos sociais, pela intelectualidade, pelos mundos do trabalho e da cultura, enfim por uma diversidade social e ideológica de quantos na sociedade brasileira almejam mudar os rumos da condução do país.
Imperioso reconhecer que, neste novo período da vida brasileira inaugurado com a Carta de 1988, infelizmente não tivemos nem temos uma esquerda dotada de agenda positiva para o conjunto do país, simultaneamente vocacionada para a luta e para o governo, enraizada capilarmente na sociedade, expressando suas demandas e reivindicações, mas em permanente ação de educação política, gerando cidadãs e cidadãos responsáveis, éticos e ciosos dos seus direitos e deveres. E também antenada com o seu entorno no continente e com o mundo em seu conjunto.
Este é um primeiro passo e que outros mais sejam dados em busca da construção de uma esquerda democrática capaz de estimular uma nova forma de fazer política e de criar uma nova perspectiva para o país. É isso que o povo brasileiro merece e precisa!
Brasília, DF, 19 de agosto de 2007 – Ano Caio Prado Jr.
(1) Sem caráter resolutivo, este documento levou em conta as várias ideias e manifestações apresentadas, nos dois dias de intenso trabalho da Conferência, seja dos componentes das mesas de discussão e do público, seja dos que participaram de debates, nos seminários preparatórios e na internet. Os temas escolhidos e as abordagens feitas foram, em essência extraídos de forma muito ampla, refletindo não o ideário de um partido, no caso o PPS, nem de sua Fundação Astrojildo Pereira, mas de quantos, independente de filiação ou concepção ideológica e política – com destaque para os intelectuais, técnicos e lideranças e sociais, pessoas de diferentes partidos ou sem partido, que participaram desta iniciativa – acreditam que o mundo e o Brasil podem e devem ter novo rumo.
Fonte: “O que é ser de esquerda, hoje?” p. 295-298. Fundação Astrojildo Pereira /Contraponto Editora Ltda. Brasília, Rio, 2013.
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