quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Fernando Exman: Teto de gastos, vítima da polarização eleitoral

Valor Econômico

Âncora fiscal é alvo de ataques de aliados de Bolsonaro e Lula

A polarizada campanha eleitoral ainda nem pegou tração neste início de 2022 e já produziu uma potencial vítima colateral. O teto de gastos. A âncora fiscal lançada ao mar revolto em 2016, para reduzir as turbulências no mercado provocadas pela irresponsabilidade fiscal que culminou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, tornou-se alvo de críticas dos grupos políticos que cercam os dois pré-candidatos que lideram as pesquisas - o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Uma parte da história é conhecida.

Instituído com a promulgação da Emenda Constitucional 95, proposta enviada pelo ex-presidente Michel Temer ao Legislativo com o objetivo de equilibrar as contas públicas, o teto de gastos já era visto naquela época como um rígido mecanismo de controle de despesas. O instrumento foi concebido para limitar por 20 anos os gastos públicos federais, que só poderiam crescer conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Estabeleceu-se que a inflação considerada para o cálculo seria a acumulada em 12 meses, até junho do ano anterior. E tal regime valeria para os orçamentos fiscal e da seguridade social, para todos os órgãos e todos os Poderes da República.

A partir do décimo aniversário da emenda constitucional, o presidente da República poderia rever o critério uma vez a cada mandato. Isso se daria por meio de um projeto de lei complementar a ser encaminhado ao Congresso.

Algumas despesas foram excluídas do teto, como as transferências de recursos da União para Estados e municípios, os recursos necessários para a realização de eleições e o dinheiro do Fundeb, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização do Profissionais da Educação Básica. A capitalização de empresas também ficou de fora.

A criação de um teto era, na visão de muitos, uma medida extrema, mas necessária. E que forçaria a aprovação de uma reforma da Previdência. Sem ela, o teto ficaria insustentável.

Não no entendimento do PT. O partido sempre chamou a proposta de emenda constitucional do teto de gastos de “PEC da Morte”.

Do lado do Centrão, muitos votaram a favor. Afinal, eles formavam a base do governo Temer e também haviam desembarcado da administração anterior. Para estes, contudo, inevitavelmente o sucessor do ex-presidente do MDB tentaria romper as amarras do teto de gastos com o objetivo de facilitar sua própria recondução ao cargo de chefe do Executivo e a reeleição de aliados.

É o que se vê agora. Primeiro, antecipou-se a discussão sobre a regra de atualização do teto de gastos, o qual passou a ser corrigido pela inflação de janeiro a dezembro. A medida, associada a um parcelamento do pagamento dos precatórios, abriu espaço fiscal para a implementação de um novo e amplo programa social para substituir o Bolsa Família, batizado de Auxílio Brasil.

Na sequência, com o apoio da oposição, lideranças governistas passaram a defender publicamente a necessidade de flexibilizar as regras do teto em ocasiões emergenciais como a que se enfrenta na Bahia por causa das fortes chuvas das últimas semanas. Esse tema foi tratado em recente reunião da cúpula da Câmara dos Deputados: a proposta sobre a mesa é a criação de um fundo com recursos fora do teto de gastos.

Além disso, como publicado nesta semana pelo Valor, o líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), reclamou que a arrecadação é elevada e as necessidades de gastos do governo são também altas, mas há obstáculos para realizar os desembolsos. “O teto de gastos tem nos ajudado a conter a voracidade das corporações sobre o Tesouro. O que nos atrapalha no país é pagar folha”, argumentou na entrevista exclusiva.

Entre os que caminham ao lado de Lula, também sobram críticas. Algumas são coincidentes, outras divergem em forma, conteúdo e modelo ideológico.

“O Estado brasileiro foi desmontado. Não vamos remontar com uma âncora que impede recompor carreiras e cargos”, argumenta um petista. Segundo esse líder da legenda, o grande problema que pode ser encontrado por Lula em seu eventual retorno ao Palácio do Planalto é o que a sigla considera uma completa desestruturação da capacidade do Estado de impulsionar uma retomada dos investimentos. Ele cita, por exemplo, a redução do poder de fogo de empresas estatais e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), assim como a mudança de perfil de programas de incentivo como o Inovar-Auto, regime automotivo que chegou a ser contestado pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Adicionalmente, esclarece, seria preciso promover uma transição gradual na política fiscal. A ideia é não abandonar uma regra rígida e adotar uma norma lasciva rápida e repentinamente - ou, em outras palavras, dar um cavalo de pau na economia.

De acordo com esse plano, a intenção é abrir exceções no teto de gastos para investimentos, despesas em saúde (as quais movimentariam diversos setores da economia, como química fina, a indústria de equipamentos, metalurgia, indústria mecânica, de plásticos e embalagens), ciência e tecnologia, infraestrutura e programas sociais. Dispêndios com pessoal e Previdência permaneceriam sob o teto num primeiro momento, até que o Brasil pudesse adotar como referência fiscal o resultado primário estrutural.

Tal métrica excluiria de um déficit os efeitos do ciclo econômico e eventos não recorrentes, como uma pandemia, eliminando fatos alheios às autoridades fiscais que podem interferir nas análises do resultado primário tradicional. Outros países já adotam esse indicador como referência, ponderam interlocutores de Lula.

O debate está só começando. Desenha-se, já a esta altura, um cenário de incertezas em relação ao destino da política fiscal.

 

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