O Globo
Chegamos até aqui bem mais conscientes de
nossas responsabilidades do que estivemos no primeiro turno
Dias atrás, um fino estudioso da obra de
Paulo Mendes Campos foi remexer na papelada do grande cronista e tradutor
mineiro. Acabou tropeçando em nove estrofes de “O povo continuará”, título dado
por Mendes Campos a um poema do americano Carl Sandburg, pouco conhecido por
aqui. Pena, pois Sandburg (três prêmios Pulitzer) fala a todas as gentes. Hoje
este espaço será intercalado por algumas estrofes do poema mencionado. Em dia
de eleição e esperança, a poesia também volta a ter vez.
O povo continuará./Aprendendo ou fazendo loucuras o povo continuará./Será logrado, vendido e revendido/e voltará a mãe terra pra nutrir suas raízes./O povo é tão bizarro ao progredir e regredir,/que não podemos rir de sua capacidade de topar a parada./O mamute descansa entre seus dramas ciclônicos.
Valeu, Brasil! Chegamos ao segundo turno!
Isso, em si, já é enorme para um país que há quatro anos vem sendo tragado pela
mesma espiral destrutiva e desumanizadora que contamina outras partes do mundo.
Só o fato de podermos sair de casa neste domingo com a cor que nos aprouver, e
depositar nosso voto em urnas democráticas, já merece comemoração. (Do
extremismo golpista do chefe da nação e de sua entourage, falamos mais
adiante).
Seja qual for o resultado da votação,
chegamos até aqui bem mais conscientes de nossas responsabilidades do que
estivemos no primeiro turno. A jornalista Ruth de
Aquino, no GLOBO, cravou um ponto central da questão: foi muito bom
para o Brasil ter um segundo turno, pois obrigou cada cidadão a fazer escolhas
por vezes incômodas —reaprendeu-se a negociar, a ouvir, a ceder poderes, a
rever posições, a domar a vaidade. Tudo para ampliar a bolha em que cada força
estava entrincheirada. O vasto círculo democrático que hoje converge no apoio
ao ex-presidente Lula —maior
frente ampla desde o alinhamento em torno de Tancredo Neves, no pós-ditadura —
será o melhor antídoto para qualquer aventura golpista pós-eleitoral.
—A democracia vale o que cada um de nós faz
—ensina a grande dama do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia,
que entende uma barbaridade do assunto.
Depois de haver ultrapassado/as margens da
necessidade animal,/a linha feroz da mera subsistência,/o homem chegou
afinal/aos ritos mais profundos de seus ossos,/às luzes mais leves que os
ossos,/chegou ao tempo de repensar as coisas,/à dança, à canção, ao conto,/chegou
às horas doadas ao devaneio. / Depois de ter ultrapassado a linha.
Mundo afora, são muitas as gentes
confrontadas com escolhas decisivas para suas vidas. Na Ucrânia, uma tomada de
posição inclui o risco de morrer pela pátria. No Irã, mulheres arriscam a vida
ao clamar pelo direito de ser e de escolher. No Brasil deste domingo, o momento
decisivo de cada um é, em comparação, um doce privilégio —o de (ainda) poder
escolher o futuro do país. Podemos ir votar a pé ou de bike, de transporte
público ou carona, em grupo ou sozinhos, abraçados ou com fome.
Seria estupendo estancar o rapto
bolsonarista da civilidade nacional. Dificilmente, porém, uma vitória de Lula
será tão acachapante quanto o histórico nocaute com que Muhammad Ali destronou
o peso pesado George Foreman também num dia 30 de outubro, mas de 1974, no
Zaire. Nem precisa tanto. Basta ficar claro que a maioria dos brasileiros
reencontrou seu denominador comum democrático —e, nele, o poder da destruição
intencional, da violência armada e do negacionismo insano não cabem mais. Já
foi testado e arruinou o país.
Se eleito para presidir o Brasil pela
terceira vez, o júbilo sem freios de quem fez essa escolha precisará ser breve
—o adversário tem armas que a democracia desconhece. E, caso o presidente Jair
Bolsonaro consiga a reeleição pelas urnas, é retomar a luta já a partir de
amanhã. A perda de direitos civis e de liberdades costuma ser mais veloz que
sua conquista —por vezes, basta um tropeço no encontro marcado com o voto.
Como foi fartamente lembrado nesta semana,
cem anos atrás Benito Mussolini era nomeado primeiro-ministro da Itália. Menos
de quatro anos depois, assumiu-se como primeiro ditador fascista da Europa do
século XX.
Há homens que não se vendem/Quem nasce no fogo vive bem no fogo./Estrelas não fazem barulho./Ninguém pode segurar o vento./O tempo tudo ensina. / Quem vai viver sem esperança?.../Para sempre o povo marcha...
Um comentário:
Muito bom o artigo.
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