domingo, 30 de outubro de 2022

Dorrit Harazim - Valeu, Brasil

O Globo

Chegamos até aqui bem mais conscientes de nossas responsabilidades do que estivemos no primeiro turno

Dias atrás, um fino estudioso da obra de Paulo Mendes Campos foi remexer na papelada do grande cronista e tradutor mineiro. Acabou tropeçando em nove estrofes de “O povo continuará”, título dado por Mendes Campos a um poema do americano Carl Sandburg, pouco conhecido por aqui. Pena, pois Sandburg (três prêmios Pulitzer) fala a todas as gentes. Hoje este espaço será intercalado por algumas estrofes do poema mencionado. Em dia de eleição e esperança, a poesia também volta a ter vez.

O povo continuará./Aprendendo ou fazendo loucuras o povo continuará./Será logrado, vendido e revendido/e voltará a mãe terra pra nutrir suas raízes./O povo é tão bizarro ao progredir e regredir,/que não podemos rir de sua capacidade de topar a parada./O mamute descansa entre seus dramas ciclônicos.

Valeu, Brasil! Chegamos ao segundo turno! Isso, em si, já é enorme para um país que há quatro anos vem sendo tragado pela mesma espiral destrutiva e desumanizadora que contamina outras partes do mundo. Só o fato de podermos sair de casa neste domingo com a cor que nos aprouver, e depositar nosso voto em urnas democráticas, já merece comemoração. (Do extremismo golpista do chefe da nação e de sua entourage, falamos mais adiante).

Seja qual for o resultado da votação, chegamos até aqui bem mais conscientes de nossas responsabilidades do que estivemos no primeiro turno. A jornalista Ruth de Aquino, no GLOBO, cravou um ponto central da questão: foi muito bom para o Brasil ter um segundo turno, pois obrigou cada cidadão a fazer escolhas por vezes incômodas —reaprendeu-se a negociar, a ouvir, a ceder poderes, a rever posições, a domar a vaidade. Tudo para ampliar a bolha em que cada força estava entrincheirada. O vasto círculo democrático que hoje converge no apoio ao ex-presidente Lula —maior frente ampla desde o alinhamento em torno de Tancredo Neves, no pós-ditadura — será o melhor antídoto para qualquer aventura golpista pós-eleitoral.

—A democracia vale o que cada um de nós faz —ensina a grande dama do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, que entende uma barbaridade do assunto.

Depois de haver ultrapassado/as margens da necessidade animal,/a linha feroz da mera subsistência,/o homem chegou afinal/aos ritos mais profundos de seus ossos,/às luzes mais leves que os ossos,/chegou ao tempo de repensar as coisas,/à dança, à canção, ao conto,/chegou às horas doadas ao devaneio. / Depois de ter ultrapassado a linha.

Mundo afora, são muitas as gentes confrontadas com escolhas decisivas para suas vidas. Na Ucrânia, uma tomada de posição inclui o risco de morrer pela pátria. No Irã, mulheres arriscam a vida ao clamar pelo direito de ser e de escolher. No Brasil deste domingo, o momento decisivo de cada um é, em comparação, um doce privilégio —o de (ainda) poder escolher o futuro do país. Podemos ir votar a pé ou de bike, de transporte público ou carona, em grupo ou sozinhos, abraçados ou com fome.

Seria estupendo estancar o rapto bolsonarista da civilidade nacional. Dificilmente, porém, uma vitória de Lula será tão acachapante quanto o histórico nocaute com que Muhammad Ali destronou o peso pesado George Foreman também num dia 30 de outubro, mas de 1974, no Zaire. Nem precisa tanto. Basta ficar claro que a maioria dos brasileiros reencontrou seu denominador comum democrático —e, nele, o poder da destruição intencional, da violência armada e do negacionismo insano não cabem mais. Já foi testado e arruinou o país.

Se eleito para presidir o Brasil pela terceira vez, o júbilo sem freios de quem fez essa escolha precisará ser breve —o adversário tem armas que a democracia desconhece. E, caso o presidente Jair Bolsonaro consiga a reeleição pelas urnas, é retomar a luta já a partir de amanhã. A perda de direitos civis e de liberdades costuma ser mais veloz que sua conquista —por vezes, basta um tropeço no encontro marcado com o voto.

Como foi fartamente lembrado nesta semana, cem anos atrás Benito Mussolini era nomeado primeiro-ministro da Itália. Menos de quatro anos depois, assumiu-se como primeiro ditador fascista da Europa do século XX.

Há homens que não se vendem/Quem nasce no fogo vive bem no fogo./Estrelas não fazem barulho./Ninguém pode segurar o vento./O tempo tudo ensina. / Quem vai viver sem esperança?.../Para sempre o povo marcha...

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo.