quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão* - De pires na mão, tentando atravessar a pinguela

Para não versados em assuntos diplomáticos,  a pretensão do  governo  Lula de compartilhar a gestão do bioma amazônico com outros países parece ser uma ideia não bem de girico, mas uma imprudente  aventura, conduzida pelo o que se chama de  "governance",  gestão eficiente,   de responsabilidade entre   parceiros nacionais e estrangeiros. 

Beneficiariam a nossa população tupininquim  ou  seria uma abertura planetária para um reposicionamento da Amazônia?  Quem pensou nisso, imaginou algo de dimensão ampla, incluindo a responsabilidade comum. Paradoxalmente, em nome de um  certo modelo civilizatório,  o  mundo parece não querer abandonar  a produção de gás carbônico (CO2), ao continuar a expandir o uso de máquinas e veículos   movidos a combustíveis derivados do petróleo .   

A floresta Amazônica absorve 30 % de CO2 produzido no Planeta. Mas, o homem  interfere cinicamente no processo, desmatando e queimando  florestas, que  minimizam um mal  maior, o aquecimento  global. A elevação das temperaturas tende a desequilíbrios climáticos, e a  provocar o desgelo nas  zonas glaciais , elevando o nível dos oceanos, cujas águas ao subirem  engoliriam  áreas costeiras e países mesmo.

No caso da proteção da Amazônia não estamos sozinhos . Oito países   - Brasil, Venezuela, Guianas, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador e Suriname -  são cobertos pelo bioma tropical, e são  estratégicos  nesse jogo de mudanças  climáticas.  A região amazônica  cobre   6,7 milhões de km2  do planeta com suas florestas tropicais,  dos quais    5,5 milhões de km² estão no Brasil. Absorve 1/3 do gás carbono lançado na atmosfera , além de abrigar uma enorme biodiversidade e princípios ativos desconhecidos.

Há um esforço mundial na busca de uma governança global para os recursos naturais. Chegou-se a inventar os tais créditos de carbono, adquiridos  por governos e empresas nacionais ou estrangeiras, cuja aquisição daria  passe livre para a exploração comercial da  biodiversidade    num total correspondente aos  volumes de  CO2  absorvidos pelos  ecossistemas  protegidos na  Amazônia, no cerrado, Mata Atlântica e até no  mar referidos nos certificados.

No viés  dos efeitos climáticos, o Brasil, de mocinho ambiental, passou a ser acusado, nas  Conferências do Clima (COPs), de ser um dos maiores destruidores  dos estoques de recursos naturais no  Planeta, ao não esforçar-se o bastante para  conter os desmatamentos e impedir  as queimadas que consomem anualmente milhares de hectares de recursos bióticos  endêmicos  dos trópicos . Reconhecer isso por aqui é difícil. As inflexões políticas provincianas ou ideológicas   afetam,  visivelmente,   a gestão ambiental no País, ao promover  mudanças profundas nessas políticas internas a cada mandato presidencial que se sucede. 

Os novos  governos  tratam os recursos ambientais à sua maneira e conveniência. O grupo dos sete países  tidos como os mais desenvolvidos - EUA, Grã Bretanha, Alemanha, Suécia, Itália, Canadá e Japão - chegou a criar linhas de crédito bilionárias para um  Programa Mundial de Proteção das Florestas Tropicais (PPG7). O Brasil recebeu  volumosos  recursos  para a proteção da Amazônia,    geridos administrativamente   via PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Era uma doação volumosa, mas sistematizada, cuja gestão operacional, no campo, cabia a  uma Secretaria da Amazônia, localizada na estrutura do  Ministério do Meio Ambiente.  Foram instalados  escritórios do PPG7 junto às secretarias de Meio Ambiente dos estados para estimular projetos de populações locais   e financiar centenas de  estudos científicos - um laboratório para estudos da biodiversidade  -  e exploração sustentável comunitária da biodiversidade  em Manaus  , com a criação de  reservas extrativistas para abrigar os caboclos na floresta  e as  populações indígenas nas suas terras. A Amazônia brasileira é habitada hoje por mais de 30 milhões de pessoas.

Ciúmes entre secretários e secretarias , regiões e Ongs ativistas não contempladas no projeto geraram vieses ideológicos e, em consequência, o desmonte do PPG7  no Brasil numa dessas  mudanças de  Governo. Argumentava-se, levianamente, que  a política ambiental brasileira estava sendo coordenada por estrangeiros: um primitivismo mais para falacioso . Embora os recursos do PPG7 fossem maiores que o Orçamento do Ministério - a contrapartida do  MMA  no Programa era ínfima - cabia ao MMA a responsabilidade direta pela sua gestão ,  via a Secretaria apropriada.  O PPG7 foi substituído, em parte, pelo Fundo da Amazônia, que dava  acesso direto às  autoridades brasileiras . As mudanças foram tantas que os recursos externos começaram a escassear, com a redução gradual das doações e a fuga dos doadores.

O que  está sendo proposto hoje: compartilhar a gestão da Amazônia, sem que se perca a soberania nacional, é algo, além de provocativo,  meio fantasioso . Que figura jurídica seria  essa?  Não são poucos os países e organizações internacionais que defendem a tese de uma  "autonomia relativa" na região. Parte-se do princípio de que a Amazônia é patrimônio  mundial, declarado pela Unesco. Daí a sensação de que  as picuinhas internas  estão abrindo as portas para uma escalada dessas presunções internacionais.  Na área ambiental, o Brasil não tem tido  uma política consistente e, agora, pretende retomar essa retórica protecionista concentrada na captação de recursos no exterior destinados a financiar  políticas públicas atemporais para a Amazônia.

A intempestiva  expulsão dos garimpeiros das terras isoladas no Norte, incluindo as reservas  dos nativos yanomamis ,   vai gerar milhares de desocupados  que haviam migrado para a região e  despovoar  as fronteiras , propícias  às invasões por estranhos,  e até desmontar  a renda de alguns grupos aborígenes.  As  encenações políticas são casuísticas. O ex-ministro da Defesa  de Lula e Dilma, Aldo Rabelo, que visitou a região, disse em entrevista recente que os problemas que estão sendo denunciados agora estão lá há mais de vinte anos: atravessaram esses últimos governos todos, e quem manda por ali são as ONGs.

Como financiar  soluções capazes de amenizar o abandono dessas populações ? Joe Biden,  Presidente dos EUA,  no encontro com Lula, ofereceu uma contribuição de US$ 50 milhões  para ajudar    ações climáticas do Brasil. A oferta foi desdenhada. O valor é, de fato, pouco significativo. Contudo, reflete uma desconfiança nas verdades  políticas, proclamadas aos quatro ventos, e na sinceridade dos objetivos da Agenda Brasileira para o Meio Ambiente.

Lula, com sua impetuosidade discursiva,  anunciou que, na viagem que estaria fazendo pelos estados do Nordeste, inauguraria esta semana uma nova narrativa política (???). Os cursos de História podem ser fechados. Em estilo político convencional vai, entretanto, anunciar um punhado de obras e feitos em suas gestões anteriores,  nos 100 dias iniciais de governo e, por certo, fazer promessas para o futuro, como o fez anteriormente inaugurando até   pedras fundamentais. 

Em seguida, vai a China visitar Ji Jinping que disputa espaço político com  Joe Biden, a quem acaba de visitar.  Quanto à Ucrânia, lavou as mãos para a  invasão russa. Ministros e gestores das políticas públicas precisam estar atentos . Podem se  enrolar com a nova narrativa e as promessas de  Lula. O Congresso não demonstra disposição embarcar em determinadas canoas. O Supremo até que  pode... A diplomacia brasileira, por sua vez,  parece estar  embrenhando-se por um campo minado, de futuro imprevisível.

*Jornalista e professor,