Valor Econômico
Não se deve duvidar da gesticulação: Lula
quer Nova Matriz Econômica de volta
A campanha movida contra a autonomia formal
do Banco Central e a permanência de Roberto Campos Neto no comando da
instituição jogará o Brasil numa nova crise econômica. Esta, na verdade, já
começou e está refletida na deterioração das condições financeiras.
Durante o período de formação de governo, Lula, segundo apurou o titular desta coluna, deixou claro, em conversas com alguns assessores, que seu desejo é reeditar a Nova Matriz Econômica (NME). Esta consiste numa série de medidas formuladas por economistas descontentes com o arcabouço de política econômica que começou a ser implantado em meados de 1999, primeiro ano do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Mesmo contra a vontade da maioria dos
economistas do PT, Lula herdou de bom grado, em 2003, o chamado tripé que, na
gestão FHC, se mostrou eficaz para estabilizar a inflação, dar solvência às
finanças públicas e reduzir a vulnerabilidade do país a crises externas. O
tripé consistia do regime de metas para a inflação, da geração de superávits
primários (conceito que exclui do resultado fiscal a despesa com juros da
dívida) e do sistema de câmbio flutuante.
Numa pequena digressão, necessária para nos
localizarmos no tempo, o tripé foi adotado para salvar o Plano Real. Por quê?
Porque, quando a nova moeda foi lançada, em julho de 1994, o governo não
dispunha de outra âncora para controlar a inflação, a não ser de um montante de
US$ 40 bilhões em reservas cambiais, na época considerado suficiente.
A melhor âncora para a estabilidade de uma
economia, digamos, a ideal, é a de natureza fiscal. Se o setor público gasta
menos do que arrecada em impostos, ou, no limite, a mesma quantia, a poupança
gerada pelas famílias (para financiar, por exemplo, a aposentadoria futura) e
peças empresas (para bancar investimentos que assegurarão o crescimento
contínuo de sua capacidade de produção) é direcionada ao financiamento do setor
privado.
Num contexto como o mencionado, a taxa de
juros de referência da economia, que espelha o custo de financiamento do
governo central, é naturalmente baixa porque há mais recursos disponíveis para o
crédito. Portanto, quando o governo de um país é responsável do ponto de vista
fiscal, os juros pagos por consumidores e empresários, ao tomar crédito nos
bancos, são menores. Como se vê, a disciplina fiscal é bom negócio para todos
os viventes de uma sociedade - e o seu oposto, acreditem, é muito pior para os
pobres.
Em outras palavras, quando o governo não
necessita recorrer à poupança doméstica para bancar os gastos públicos, sobra
mais dinheiro para financiar coisas como a compra da casa própria do trabalhador
e o investimento das companhias em máquinas, equipamentos e construção, sem o
qual o Produto Interno Bruto (PIB) não cresce.
Antes que alguns leitores apedrejem o
mensageiro, cabe observar que, sim, não há Estado soberano neste planeta que
gaste apenas o que arrecada em tributos. Todos vão ao mercado tomar dinheiro
emprestado. Hoje, as dívidas dos países ricos são bem maiores que as das nações
em desenvolvimento e de mercados emergentes. Apesar disso, os juros lá são
consideravelmente inferiores aos que conhecemos aqui.
Há várias razões para esse descompasso e
nem todas são aceitáveis. Acreditar que tudo funciona direitinho nas economias
avançadas e que, por isso, eles seriam mais virtuosos que os habitantes que
vivem ao sul do Equador é tolice. Ricos têm, por definição, poder para mudar
até a lei da Gravidade. Mas este é um dado da realidade que não deve ser
desprezado. De toda forma, um dos fatores que levam nossa taxa de juros a
atingir alturas maiores que as alcançadas por foguetes da Nasa somos nós
mesmos. Como assim?
Ora, a dívida pública é tomada por governos
eleitos diretamente por nós. Quando nos sentamos à mesa de um bar e, depois de
uns goles, damos opiniões como, entre outras, “foi um absurdo o governo acabar
com o risco de 100% do Tesouro nos casos de inadimplência do Fies”, "FHC,
Lula e Dilma deveriam ser enforcados em praça pública por terem acabado com a
aposentadoria integral dos funcionários públicos e a promoção dos militares no
momento de irem para a reserva”, “acabar com as férias remuneradas de dois
meses de juízes e procuradores é atentar contra a independência dos poderes” e
“acabar com a TJLP e os empréstimos subsidiados do BNDES a grandes empresas é
seguir ordens que vêm da Casa Branca para manter a indústria brasileira sem condições
de competir com as estrangeiras”.
Esse pensamento, segundo o qual, cabe ao
Estado prover recursos para todos, inclusive, os ricos e os remediados, faz a
festa dos citados, os donos do poder. A natureza patrimonialista da sociedade
brasileira explica os 11 calotes aplicados pelos governos no pagamento da
dívida pública, desde a instauração da República. É uma das principais
explicações do elevado custo de captação do Tesouro, que se reflete em cadeia
nos juros cobrados das famílias e das empresas.
O real foi lançado sem âncora fiscal. Na
verdade, a situação fiscal, com a queda brusca e drástica da inflação, piorou
porque os gastos dali em diante não foram corroídos pela perda de valor da
moeda. Por isso, adotou-se regime de câmbio quase fixo para ancorar os preços -
o mundo inteiro tinha feito isso. O problema é que a indisciplina fiscal lá
fora e aqui pôs esse regime cambial em xeque.
No início de 1999, o dólar disparou no
Brasil. Em julho, implementou-se o tripé e este funcionou bem. Em 2011, Dilma Rousseff
decidiu trocá-lo pela Nova Matriz. Isso levou o país a uma profunda crise.
Michel Temer restabeleceu o tripé e a taxa de juros caiu para 2% ao ano. A
pandemia ressuscitou a inflação aqui e no mundo. Lula derrotou Bolsonaro com o
apoio inclusive de velhos adversários, o país encheu-se de esperança e, agora,
ignorando o que nos levou à tragédia, quer reeditar a NME.
Um comentário:
Excelente análise, todas as cabeças pensantes deste condenam esta verdadeira palhaçada do “novo cercadinho” com a direção do BC. Quando leio que a primeira a investir contra o BC foi a presidente do PT e num jogo ensaiado foi seguida pelo titular do “novo cercadinho” com sua costumeira frase inicial “estou convencido”: blá, blá, blá. Triste e pobre país.
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