quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Brasil continua despreparado para as chuvas

O Globo

Autoridades têm de estar alertas para um cenário climático em que as tragédias deverão ser mais frequentes

Em fevereiro de 2022, a cidade de Petrópolis, na Região Serrana do Rio, sofreu as mais devastadoras tempestades de sua história. A chuva torrencial sobre ocupações irregulares em áreas de alto risco provocou inundações e deslizamentos catastróficos, resultando em 241 mortes e prejuízos gigantescos. Um ano depois da tragédia, o cenário pouco mudou. Como mostrou reportagem do GLOBO, pelo menos cem pontos destruídos pelas chuvas não receberam obras da prefeitura ou do governo do estado. A contenção das encostas prometida pelo governo federal continua inconclusa. Há risco de novos deslizamentos, mesmo sob chuvas menos intensas. Um novo temporal nesta semana fez transbordar rios, soar as sirenes da Defesa Civil e trouxe de volta o pesadelo.

Petrópolis é um triste retrato do que ocorre por todo o país. Há falhas na prevenção, no socorro às vítimas e na recuperação do estrago. O problema é crônico. Na segunda-feira, o deslizamento de uma encosta em São Gonçalo, no Rio, matou uma mulher e deixou três desaparecidos. No início do mês, uma moradora morreu soterrada por um barranco na periferia de São Paulo. Em Minas Gerais, desde setembro ao menos 21 moradores já perderam a vida em consequência das chuvas. De tão corriqueiras, as tragédias passam a ser vistas como normais. Não são.

A desculpa recorrente de quem deveria preparar as cidades para os desastres naturais são os índices pluviométricos fora do comum. Gestores têm obrigação de saber que, em decorrência das mudanças climáticas, as chuvas são e serão cada vez mais intensas. No Brasil e em qualquer parte do mundo. Isso não pode servir de pretexto para inépcia e omissão. Presidente, ministros, governadores, prefeitos, secretários precisam desenvolver planos de contingência para enfrentar as tempestades. A questão não é mais se acontecerão, mas quando.

Não faltam diagnósticos alertando sobre a gravidade da situação. Falta ação. Um estudo do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) em parceria com o IBGE estimou no ano passado que 9,5 milhões de brasileiros (5% da população) moram em áreas suscetíveis a deslizamentos ou inundações. O número é maior que o apontado em pesquisa de 2018 (8,3 milhões).

Não há como impedir que haja desastres naturais, mas é possível reduzir seus danos por meio de prevenção e planos de contingência. Para evitar novas tragédias, as prefeituras precisam mapear as famílias que vivem em áreas de risco e remover as que estão nos pontos mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, é necessário realizar obras de estabilização de encostas onde for viável e criar mecanismos para que os moradores deixem suas casas em situações de emergência. Há experiências bem-sucedidas, como sirenes acionadas quando a chuva atinge níveis preocupantes. Ainda que haja prejuízos materiais, preservam-se vidas.

É preciso, sobretudo, que haja mudança na mentalidade dos gestores. Iniciativas contra deslizamentos e inundações exigem ações vigorosas e permanentes, que não podem se limitar aos mandatos dos governantes, uma vez que demandam medidas de longo prazo. Não se pode ficar parado à espera do próximo temporal.

Acabar com furto de energia depende do combate ao crime organizado

O Globo

‘Gatos’ espalhados por comunidades pobres aumentam a conta de luz para quem paga dentro da lei

Um retrato da ausência do Estado nas comunidades pobres do país é o emaranhado de fios partindo dos postes em direção às casas. São os populares “gatos”, eufemismo que encobre práticas criminosas como furto de energia e outros serviços prestados por concessionárias. De tão comuns, e dadas as dificuldades logísticas, a incapacidade e a pouca disposição das autoridades para combatê-los, parecem inofensivos. Não são. Os “gatos” se tornaram predadores de serviços essenciais à sociedade.

No Rio, o furto de energia já ameaça as finanças das concessionárias. Na Light, que atua em 31 dos 92 municípios fluminenses, entre eles a capital, a perda com “gatos” entre 2017 e 2021 saltou de 37,2% para 54%, percentual que só não é maior que em duas empresas do Norte do país. Na Enel, presente em 66 cidades do estado, passou de 24,8% para 31,4%, como mostrou reportagem do GLOBO. A despeito dos 11,6 milhões de clientes, há uma semana a Light informou à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que, principalmente devido ao furto de energia, não tem geração de caixa suficiente para manter a sustentabilidade da concessão, que vai até 2026.

O problema não acontece apenas em áreas pobres. Nas comunidades dominadas por organizações criminosas, as concessionárias são impedidas de entrar para cobrar ou mesmo interromper o serviço em caso de inadimplência. Não que a energia saia de graça. Os moradores são obrigados a pagar ao crime organizado. A exploração de serviços essenciais é fonte importante de financiamento das milícias que controlam vastas regiões do Rio. Um morador contou ao GLOBO que grupos paramilitares cobram de R$ 50 a R$ 100 por mês.

Embora predomine em comunidades do Rio, o furto está presente também noutros estados. Entre 2017 e 2021, as perdas de energia das concessionárias subiram de 13,9% para 14,8% no Brasil todo. As empresas alegam que metade acontece em áreas onde estão impedidas de entrar. “As metas regulatórias estão ficando impossíveis de ser atingidas, levando a discussão para a Aneel”, diz Marcos Madureira, presidente da associação das distribuidoras.

Elas enfrentam limites para repassar o custo das perdas aos clientes. Não é justo que os cidadãos que mantêm suas obrigações em dia sejam obrigados a pagar a conta da ausência do Estado. O preço mais alto também funciona como incentivo ao furto. “Quanto mais cara a conta de luz, mais ‘gato’, mais inadimplência e maior o custo para quem está pagando”, diz Amanda Schutze, pesquisadora do Climate Policy Initiative (CPI) Brasil.

Iniciativas para combater o problema precisam passar prioritariamente pela segurança. O Brasil não pode conviver com um Estado paralelo onde serviços essenciais como o fornecimento de energia são controlados por grupos criminosos. O primeiro passo para acabar com os “gatos” é levar às comunidades as mesmas leis que vigoram no restante do país.

A meta de cada um

Folha de S. Paulo

Debate sobre inflação pode ganhar racionalidade com plano de ajuste fiscal

Evita-se o pior, ao menos por ora, com o arrefecimento relativo dos ataques do governo à autonomia do Banco Central e às metas de inflação. É evidente, porém, que a situação não está pacificada —e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e sua equipe ainda não indicaram como resolver os problemas que criaram.

Segundo o ministro Fernando Haddad, da Fazenda, a discussão sobre elevar as metas para o IPCA não está na pauta da reunião desta quinta-feira (16) do Conselho Monetário Nacional, formado por ele próprio, pela ministra do Planejamento e pelo presidente do BC. Se confirmada, a decisão é sensata.

A isso se somam as declarações conciliatórias do chefe da autoridade monetária, Roberto Campos Neto, em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Cultura. Ali o dirigente, mesmo rejeitando mudanças nos parâmetros da política de juros, manteve-se distante do tom de confronto e mostrou boa vontade com a nova gestão econômica.

Mexer nos objetivos inflacionários debaixo de pressão seria manobra temerária, e inexiste urgência em fazê-lo. Todos sabem que o BC não elevará os juros nem jogará o país numa recessão para obter a ferro e fogo a taxa de 3,25% neste 2023. O órgão já usou de realismo e flexibilidade para descumprir as metas nos últimos dois anos, aliás.

Importa, no entanto, que sua atuação mire, em um horizonte visível, um IPCA em torno de 3%, compatível com o observado em países emergentes de moeda mais estável.

A ideia de fixar o percentual em 4,5%, aventada por Lula como caminho para permitir menos juros e mais emprego, pode piorar as expectativas gerais sem propiciar as vantagens imaginadas.

Parte desse dano já aconteceu, com aumento das projeções para a inflação e alta dos juros de mercado —enquanto, atiçados pelo líder, políticos aliados, sindicalistas, economistas heterodoxos e influenciadores da internet vociferam contra o BC, o sistema financeiro e a teoria monetária.

O alarido estéril consumiu um mês e meio de mandato sem que o governo tenha formulado um plano para a economia ou encaminhado sua agenda legislativa. O comando do Congresso já indicou que não embarcaria numa eventual revisão da autonomia do BC.

A maneira mais eficaz de melhorar o ambiente e as perspectivas de crescimento do PIB é apresentar uma norma para conter a escalada da dívida pública —o que Haddad agora promete para março.

É bom que o ministro se apresse, porque colegas de Esplanada anunciam mais gastos a cada dia. Com maior previsibilidade orçamentária, o próprio debate sobre a inflação deve se tornar mais racional.

Público e privado

Folha de S. Paulo

Lei do conflito de interesses entre setores foi avanço, mas deve ser aprimorada

Houve um tempo em que o Estado servia basicamente para manter exércitos com os quais se travariam guerras. As cargas tributárias eram, então, bastante reduzidas, e ninguém esperava uma prestação de serviços muito sofisticada por parte do poder público.

A partir da Primeira Guerra Mundial, porém, o Estado torna-se mais atuante e assume uma série de funções como regulador e executor. A carga de impostos explode, rondando os 50% do PIB nos países com programas sociais mais generosos, casos de Suécia e França.

A quantidade de servidores públicos e detentores de cargos comissionados cresce exponencialmente. Entretanto, como eles transitam mais ou menos livremente entre os setores público e privado, criam-se problemas de conflito de interesses antes inexistentes.

No Brasil, durante muito tempo, fingimos que a promiscuidade entre público e privado não existia. Foi só há dez anos que se aprovou a Lei do Conflito de Interesses, que regula a matéria de forma ainda imperfeita —mas só o fato de haver uma norma já representa avanço. Deve-se, agora, aprimorá-la.

A lei atribui à Controladoria Geral da União (CGU) e à Comissão de Ética Pública da Presidência as tarefas de fiscalizar e de responder a consultas de servidores em dúvida sobre o que podem ou não fazer.

Os mais graduados, que tiveram acesso a informações sensíveis, devem passar por um período de quarentena: continuam a receber salários por seis meses, antes de assumir um cargo na iniciativa privada em área correlata na qual atuavam.

O objetivo é impedir prejuízos ao erário e evitar que uma empresa tenha acesso a informações privilegiadas, deturpando a concorrência.

A dificuldade é calibrar as quarentenas, para que não se tornem nem um período de férias, que onera o contribuinte, nem punição desnecessária ao profissional.

Se um ex-ministro da Fazenda decide cuidar da fábrica de parafusos de sua família, que não participa de licitações, não há motivo para impedi-lo, por exemplo.

O sistema sofreu retrocessos sob o governo de Jair Bolsonaro (PL). Servidores, incluídos ex-ministros, foram dispensados de quarentena em situações com potencial para conflitos. A comissão que dirime dúvidas de servidores só faz sentido se houver ampla transparência em relação às consultas e também às discussões do colegiado.

Os dez anos de experiência com a lei oferecem um ponto de partida para regulamentar melhor o funcionamento da CGU e da comissão.

O governo Lula parece perdido

O Estado de S. Paulo.

Como se já não fosse presidente, Lula atua como oposição ao atacar o BC, enquanto seu governo parece incapaz de apresentar respostas aos problemas que ele mesmo aponta

O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, disse, em uma entrevista ao SBT, que a instituição vai organizar um seminário para debater a política fiscal em março. Segundo ele, a ideia do evento é ajudar o governo a formular a nova âncora que substituirá o teto de gastos. O resultado desse debate será entregue ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Aqui, tudo vai para o Lula”, disse.

A iniciativa, por óbvio, foi recebida como uma tentativa de intromissão nos trabalhos da equipe econômica. Se há um assunto que deveria estar sob a liderança do Ministério da Fazenda é o novo arcabouço fiscal, atualmente a parte mais relevante da política econômica. O debate público sobre a âncora é válido e pode contribuir para a construção de um arcabouço crível e estável. No entanto, essa é uma iniciativa que certamente não cabe a Mercadante ou ao BNDES, mas apenas ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

O episódio, no entanto, não é um caso isolado. Ele ilustra um problema mais amplo, que não se esperava que ocorresse sob a Presidência de Lula. Em seu terceiro mandato na Presidência da República, o petista não é um novato na atividade de governar. Mas, como se não tivesse vencido as eleições e assumido o País, ele mantém a aposta em um discurso de campanha capaz de mobilizar apenas seus próprios seguidores. Enquanto isso, seu governo está paralisado e batendo cabeças em público.

Desde o dia 18 de janeiro, primeira vez em que Lula criticou o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, a autonomia da instituição e o nível da taxa básica de juros, o País assiste a uma novela diária pautada em sua cruzada contra a autoridade monetária. No capítulo mais recente dessa trama de gosto duvidoso, o evento de aniversário de 43 anos do PT foi usado como pretexto para mobilizar sindicatos e militantes a adotar uma nova causa política: “Fora Campos Neto”. Não há como não lembrar o bordão “Fora FHC e FMI” que o partido bradava na década de 1990, período em que se especializou em fazer oposição intransigente ao então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Elegendo Campos Neto como inimigo, Lula dá a entender que os juros altos são uma decisão pessoal do presidente do BC, único problema e verdadeira causa de todos os desafios econômicos e sociais do País. Não são. Há inúmeros outros aspectos da agenda pública a serem tratados com mais urgência e efetividade, a começar pelas relações com o Congresso Nacional.

Até mesmo o economista André Lara Resende, que integrou a equipe de transição e é um dos maiores críticos aos juros elevados, considerou um erro o fato de o governo não ter escolhido o novo regime fiscal como tema a abrir a pauta legislativa neste ano.

A aprovação da âncora fiscal não seria exatamente fácil, pois requer um projeto de lei complementar e a construção de maioria absoluta entre os parlamentares. Mas isso certamente é menos trabalhoso do que aprovar as reformas tributárias que tramitam na Câmara e no Senado, ambas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) e que demandam maioria qualificada. Ainda assim, o governo hesita em adotar uma delas. Enquanto isso, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), criou um grupo de trabalho para discutir o tema, e os setores contrários a quaisquer mudanças já começaram a se articular para barrá-las. Dado o histórico de Lula, a letargia da articulação do governo no Congresso seria inexplicável, não fosse o fato de o Executivo ainda não ter conseguido construir uma base aliada que possa ser chamada de estável para submeter seus projetos sem risco de derrota.

Lula completou 45 dias na Presidência, período em que desperdiçou uma janela rara para apresentar a agenda de um governo recém-eleito e unir o País. Se não a aproveitou, não foi por falta de experiência ou liderança. Das duas uma: ou não sabe o que fazer e para onde ir ou sabe o que precisa fazer pelo País, mas não quer arcar com o alto custo político imposto por essas impopulares decisões.

Os maiores responsáveis pelo 8 de Janeiro

O Estado de S. Paulo.

A investigação não deve se limitar a quem esteve presente na Praça dos Três Poderes. Se, como diz a PGR, houve tentativa de golpe, é preciso incluir os mandantes e autores intelectuais

No dia 14 de fevereiro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou mais 139 pessoas envolvidas nos atos do 8 de Janeiro, pelos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. Ao todo, mais de 800 pessoas já foram denunciadas pela PGR por esses eventos.

Esse trabalho do Ministério Público é fundamental: identificar quem participou do ataque às sedes dos Três Poderes e buscar na Justiça a devida punição. Não cabe impunidade para quem agiu de forma tão contrária ao regime democrático e às leis do País. De toda forma, é sempre bom recordar que, nessas investigações e ações penais, o Poder Judiciário não precisa adotar nenhuma medida de exceção, menos ainda estabelecer um tribunal de exceção, como, por exemplo, uma aventada “força-tarefa” de juízes ad hoc. A Constituição de 1988 é cristalina em seu art. 5.º: “Não haverá juízo ou tribunal de exceção”.

O Estado Democrático de Direito tem meios de investigar e punir dentro do devido processo legal. Essa afirmação fundamental vale para todos: para as centenas de pessoas que invadiram a Praça dos Três Poderes e foram denunciadas pela PGR; para os militares que, de alguma forma, colaboraram com os atos golpistas e precisam ser investigados; e, de forma muito especial, para quem, mesmo não tendo estado presente na Praça dos Três Poderes no dia, foi autor ou partícipe dos crimes do 8 de Janeiro.

O tema é delicado e merece cuidado. Não se trata de fazer um PowerPoint indicando a priori que Jair Bolsonaro é o responsável pelos atos criminosos do 8 de Janeiro. Ou anunciar que os organizadores desses eventos teriam sido pessoas próximas do ex-presidente da República, como os generais da reserva Augusto Heleno e Braga Netto ou o ex-ministro da Justiça Anderson Torres. A apuração e a imputação das responsabilidades penais não funcionam assim. Há o princípio da presunção de inocência, e o sistema de Justiça penal não deve trabalhar com intuições. É preciso investigar, colher os elementos de prova, identificar, de forma concreta, as cadeias de comando. E só depois, por meio do devido processo legal, imputar as respectivas responsabilidades.

Pode ser que, no final dessas investigações, por diversos motivos, não se consiga imputar criminalmente a responsabilidade a quem foi o organizador dos atos criminosos do 8 de Janeiro. Isso faz parte do funcionamento da Justiça, que, mais do que simplesmente punir, deve trabalhar dentro das regras do jogo democrático, respeitando as garantias fundamentais de todos os cidadãos. O que não pode é, desde já, limitar as investigações a quem esteve presente na Praça dos Três Poderes, como se fosse impossível identificar e responsabilizar penalmente os eventuais mandantes e cúmplices dos crimes lá cometidos.

É preciso coerência. Se as denúncias apresentadas até agora pela PGR indicam a existência de fundados indícios da materialidade dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, é preciso que a investigação inclua também os líderes desses movimentos, bem como as pessoas que se beneficiariam com um eventual golpe de Estado. De outra forma, o Ministério Público estaria na prática tratando as ações do 8 de Janeiro como meros atos de vandalismo e de destruição do patrimônio público, mas não como uma efetiva tentativa de golpe de Estado.

A PGR e o Judiciário têm diante de si uma tarefa dificílima, que exige trabalho rigoroso de investigação e apuração de responsabilidades, dentro do mais estrito respeito à lei. Ainda que seja muito desafiador pela quantidade de pessoas envolvidas, é relativamente fácil processar quem esteve presente fisicamente nos atos do 8 de Janeiro. Mas isso é apenas uma parte da história. É preciso identificar e punir os eventuais mandantes e autores intelectuais, que, como a Justiça tem experiência, às vezes estão a muitos quilômetros de distância do local do crime.

Hora do pente-fino no Bolsa Família

O Estado de S. Paulo.

Em vez de racionalizar programa e criar mecanismos de emancipação, Bolsonaro fez o oposto. Hoje, está eivado de fraudes

O governo prepara um pente-fino no Bolsa Família por meio da revisão do Cadastro Único. Desde que o programa foi desmantelado pelo governo de Jair Bolsonaro, não se sabe quem são e como vivem as famílias de baixa renda. A Controladoria-Geral da União estima que 2,5 milhões das famílias beneficiárias estejam recebendo o auxílio de maneira irregular. “Obviamente, tem dinheiro indo duas vezes, três vezes na mesma casa”, afirmou a secretária do Ministério do Desenvolvimento Social, Letícia Bartholo. Ao mesmo tempo, muitas famílias que têm direito ao benefício estão fora do programa.

O caos cadastral é só um dos elementos que explicam um aparente paradoxo. O País nunca gastou tanto e com tantas famílias. Antes da pandemia, o Bolsa Família atendia 14 milhões de famílias com um benefício médio de R$ 191. Hoje, são mais de 22 milhões a R$ 600. Ainda assim, segundo o Ipea, as famílias em extrema pobreza, que em 2014 eram 2,8% do total, hoje são 4%.

À parte os fatores macroeconômicos, no caso dos programas de transferência de renda a explicação é simples: o governo Bolsonaro não os projetou para ajudar os vulneráveis, mas para comprar eleitores. Nas gestões do PT, os programas foram razoavelmente bem-sucedidos em dois aspectos: ajudar os miseráveis e alavancar votos. Isso se fez com programas pela metade, que privilegiavam a distribuição de dinheiro, mas negligenciavam mecanismos de inclusão no mercado de trabalho. Assim, perpetuava-se uma massa de dependentes que serviam de curral eleitoral ao partido. Um estadista teria eliminado os aspectos que fazem desses programas máquinas eleitorais e potencializado os que fazem deles máquinas de inclusão. Bolsonaro fez o contrário.

Ao invés de racionalizar os programas, identificando graus e tipos de vulnerabilidades, adaptando benefícios de acordo com elas e criando mecanismos de emancipação, Bolsonaro eliminou todas as contrapartidas – como a obrigatoriedade de cumprir o currículo escolar e o calendário vacinal –; criou um benefício único distribuído indiscriminadamente – o mesmo para uma pessoa e uma mãe solo com três filhos, por exemplo –; e desbaratou o Cadastro, abrindo espaço a todo tipo de fraude – notadamente a de pessoas que dividem a mesma casa registrando-se como se morassem separadas.

Desde 2020, famílias de uma pessoa só cresceram 224% – suspeita-se que 35% recebam o auxílio irregularmente. Em descompasso com a demografia, a média de pessoas por família caiu de 3,4 para 2,5. Estima-se que só o pente-fino pode garantir uma economia de R$ 10 bilhões a serem canalizados a quem realmente precisa.

Considerando-se que os programas de transferência de renda têm mais de duas décadas, não faltam dados, estudos e propostas para aprimorá-los. Notadamente, o projeto de Lei de Responsabilidade Social combina eficiência das transferências e geração de oportunidades com as regras de responsabilidade fiscal.

Mas é preciso começar pelo começo: excluir quem não deveria estar no atual programa e incluir quem deveria. Para isso, a reconstrução do Cadastro Único é urgente.

BCs terão mais trabalho para domar a inflação

Valor Econômico

É mais que provável que o Fed, que já descartava como prematuro um alívio monetário no curto prazo, terá que seguir adiante com o aumento dos juros

Os dados do início do ano das economias avançadas, em especial os dos Estados Unidos, acrescentaram mais incertezas sobre o rumo do aperto monetário em curso. Após alta de 4,5 pontos percentuais desde março, na mais rápida elevação de juros em décadas nos EUA, consumo e emprego deram saltos surpreendentes em janeiro, enquanto a inflação mensal deixou de cair e a de doze meses recuou marginalmente. Após 3 pontos percentuais de aumento nos juros na zona do euro, e mais 0,5 ponto a caminho em março, segundo a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, os países do bloco exibem o menor desemprego desde a criação da moeda única. Tudo indica que os Bancos Centrais terão de ir além do que previam no atual ciclo contracionista.

Houve melhora nas condições financeiras no início do ano, acompanhada de progresso nos índices de confiança dos consumidores nos países avançados. As projeções de crescimento para as economias avançadas avançaram, colocando a zona do euro e os EUA mais longe de uma recessão que até há pouco era dada como certa. Um pouso suave entrou no radar dos investidores, acompanhado da expectativa de inversão do aperto monetário no fim do ano, com início dos cortes das taxas de juros.

Com a perspectiva de fim do aperto monetário e volta do crescimento europeu, além da expansão da economia da China, que se libertou abruptamente das severas amarras de sua política de covid zero, o dólar começou a perder força, aliviando a pressão sobre moedas emergentes e estimulando até certo ponto as apostas de risco nestes mercados. Agora, o dólar voltou a se fortalecer novamente e, nesta semana, teve seu melhor desempenho no ano em relação a uma cesta de moedas.

As expectativas podem sofrer mais uma vez um rápida reversão. A criação de empregos não-agrícolas nos Estados Unidos em janeiro deu um salto de 517 mil vagas, praticamente o dobro das 260 mil de dezembro, levando o índice de desocupação a cair para 3,4% - o menor em 53 anos. Surpreendentes, esses números foram acompanhados pela forte alta de consumo no mês, quando no fim do ano parecia consolidada a tendência de sua contínua desaceleração.

Perspectivas de fim do ciclo monetário aliviaram as condições financeiras, na contramão do que o Federal Reserve procura para esfriar o suficiente a economia e fazer com que a inflação caminhe de volta para a meta de 2%. Jerome Powell, presidente do Fed, tem seguidamente respondido que interessa a direção geral do aperto, não evidências episódicas, mas os preços dos ativos não espelham hoje isso, o que claramente não ajuda a política monetária.

Com esse quadro, a inflação ao consumidor, medida pelo CPI, subiu de 0,1% para 0,5% em janeiro e seu núcleo, 0,4%. Em 12 meses, ambos recuaram pouco, de 6,5% para 6,4% no índice cheio, e de 5,7% para 5,6% no caso do “core”. Gastos com alimentos subiram 7,2% e até mesmo segmentos que dependem do crédito para avançar, e que tinham apresentado resultados negativos em novembro e dezembro, como o de veículos e partes, viram seus preços avançar 7,2% no mês passado.

Ou seja, pela equação de Powell, a inflação de bens batia em retirada, a dos imóveis deveria fazer isso em breve e o maior problema era a de serviços, dois terços do PIB americano, onde a queda de preços mal começara. O CPI de janeiro mostrou que a inflação de bens, imóveis e serviços (0,6%) subiram. Um índice olhado com atenção pelo Fed, o núcleo de preços dos serviços, excluindo habitação, evoluiu 4% nos 12 meses encerrados em janeiro (FT, ontem).

O crescimento do emprego, exuberante em janeiro nos EUA, ultrapassa a expectativa dos analistas também na zona do euro. Os salários evoluem abaixo da inflação, o que não a realimenta - um dos temores dos BCs -, mas por outro lado são um obstáculo para que os índices de preços caiam mais rápido ou fortemente. O fortalecimento do dólar, por seu lado, tampouco colabora para redução dos preços domésticos nos EUA.

Tudo somado, é mais que provável que o Fed, que já descartava como prematuro um alívio monetário no curto prazo, terá que seguir adiante com o aumento dos juros. Há apostas para o fim do ciclo em 5,5%, mas os investidores por enquanto seguem com os 5,25%, contando com uma guinada do Fed e corte de juros perto do fim do ano, uma perspectiva que já parecia rósea no fim de 2022 e que, pelos índices de janeiro, parece otimista demais.

 

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